VISITA À TWILIGHT ZONE ( DIA 33 DA MARATONA )
Estamos no ano 1345.
É noite de festa, nas ruelas, nos largos junto ao castelo, no adro.
Os nobres estão escondidos, ou entretidos em guerras lá entre eles, um ou outro, vêm-se aqui e acolá, numa esquina escura.
O clero reza nas trevas.
Não se mistura com as prostitutas, com os bêbados, com os mercadores, nem assiste aos espectáculos mais medonhos.
É cobarde.
Inquisição.
Os pobres, em noite de festa e de loucura enchem as ruas de Guimarães, noite dentro, noite carregada, como se não houvesse amanhã.
Um caos perfeitamente ordenado, assustador, ao mesmo tempo uma festa imensa, uma orgia.
Dizem-me que aquela a rua das “quengas”, e avisam-me: “toma cuidado, podem meter-te a mão pelos calções dentro, podem apalpar-te todo”, interrompo; “demoramos muito a lá chegar?”.
Por ordem do rei, naquelas noites, em que o real se confunde com o bom e o mau, as pessoas só podem caminhar numa única direcção, em cada rua.
Desde o castelo até cá ao casario que rodeia o largo principal.
Fez-me lembrar o Colete Encarnado, na minha terra, a movida.
Reparei que a Sílvia já estava à conversa com uma das muitas meretrizes, que aquela é a rua delas, sentada ao lado de uma outra, em cima de uma mesa de madeira, manca, mesmo no meio, no início da rua empedrada.
A mesa e a puta, mancas e gastas.
Se as duas trabalhavam para o taberneiro, que de lá de dentro do estabelecimento espreitava o que se passava cá fora, isso não sei. Reparei-lhes nas unhas, grandes, sujas, e nas sapatilhas de ginástica, daquelas brancas, com um elástico que todos usámos em miúdos, quando faziamos educação Física.
Isso, sapatilhas de ginástica nos pés de uma puta fingida.
Uma irrealidade desconcertante.
Tudo irreal, hiper-real.
Começava aqui uma viagem vertiginosa, na noite anterior à meia maratona (eu sei, não devia andar nestas vidas, mas...)seguimos em fila indiana, controlávamos a marcha com um braço esticado, apoiado no ombro do da frente.
Nunca entendi por que é que se chama fila indiana a uma fila de gente.
Só assim mantenhamos o sentido, misturados com centenas e centenas de pessoas como nós, vestidos como nós, sim, gente que vive no século XXI, só que...
A Sílvia não aprecia mulheres com buço e dentes podres, cabelos desgrenhados e crespos, pelo que começámos a descer a rua, em fila indiana, para não nos perdermos, que aquela é a rua das perdições.
O Francisco, a Joana, a Carla e os restantes seguiam lá mais à frente, que a fila já não era indiana, já não era fila.
“Prostitutas nada, só as duas lá do cimo da rua, gajos bêbados e feios, mulheres com lepra cravada no rosto, pobres almas condenadas ao inferno da Inquisição".
Era a Sílvia que me acompanhava, tinha sido ela a dar-me as dicas para entrar naquela rua, pimba, era ela que levava comigo.
Vai ser difícil esquecer ( e parar de rir ) a cara daquela miúda, olheiras escuras e gigantescas, olhos vidrados, abertos, muito brancos, aquele olhar entre o desespero e o ódio, a compaixão.
Assustei-me, quando a senti parada, junto a mim, bem ali à minha frente.
Eu levava o olhar cravado no chão, para não cair, quando de repente, ali, do nada, uma miúda vestida com um retalho preto como aquela noite, apenas iluminada pelos lampiões e pelas fogueiras das bruxas e pelo fogo do demónio.
A Sílvia conhece essa tal miúda, que me deteve, como se estivesse na presença de um fantasma, mas ao mesmo tempo não, olhando para as pessoas que me rodeavam.
Mostrou-me a foto dela, no telemóvel.
O Facebook ajuda imenso.
Era linda, gira, mais que isso tudo, era mesmo gira.
“ Tens que cá vir a Guimarães, mas sem ser para correr, vais adorar a cidade”, atira a Sílvia.
Continuámos a caminhar;
Uma mulher, numa casota de um cão, que acabára de dar à luz (uma boneca, para o efeito).
Mais adiante as pessoas quase paravam.
Agora sim,
Sinto um lenço, carmim, a passar-me na cara.
Olho, quase em câmara lenta.
Junto à porta, ali está ela, a mulher mais bonita que vi naquela noite.
“Te gusta, guapo?”.
Não me contive,
“Eu dizia-te, guapa, acaba lá isso e vem mas é ver-me correr amanhã de manhã e depois podemos almoçar ou assim…”.
Siga, que aquilo não é para estar parado.
Ainda me lembro da cara dela.
Acabámos a noite com uma sangria, no largo principal, onde desaguava a rua das “quengas”.
Aquela hora os tendeiros ainda vendiam carne viva (animais não racionais), sopas e poções mágicas, algodão doce, porco assado, com pão da zona a acompanhar.
Acabava a noite, para mim, em Guimarães, em plena feira Afonsina.
Uma viagem até às entranhas da Idade Média, só que em pleno século vinte e um.
Por isso não fui dormir em casa de passe nenhuma, nem sequer bebi em casa de pasto alguma.
Dormi no hotel, que já chega de Twilight Zone experiences.
Só que, chegado ao quarto, ligo a televisão, afinal, estamos na Idade dos Media e eu tinha acabado de sair da Idade Média.
Estava a dar aquela situação daquela assembleia geral.
Por pura curiosidade deitei-me, a ver.
Adormeci eram quase três da manhã.
Às sete, a pé.
A Meia Maratona de Guimarães era a única etapa que me faltava no curriculum das Running Wonders.
Casualmente, foi o meu treino longo da semana, assim estava definido.
Mas, isso vem no texto seguinte, porque para correr sem dormir como deve ser já me bastou no fim de semana.
Ontem e hoje foi dia de treino.
Tende paciência.