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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

24.03.15

UMA ESTRANHA MANHÃ DE DOMINGO


The Cat Runner

 

 

Uma meia maratona não se corre em 2.000 caracteres. São 21 quilómetros de muitas histórias. Dramáticas, felizes, sofridas, superadas, conquistadas, vividas, milhares de passadas e de olhares que não cabem na matemática aconselhada da escrita para blogues.

 

Vive-se intensamente durante uma meia maratona, demore e dure o tempo que demorar e durar.

 

Correr uma meia maratona é uma prova de carácter, sobretudo. 

Do nosso, dos outros.

 

Lembro-me de alguém, que correndo em sentido contrário já a caminho da meta levava estendido o braço direito. Na mão carrega uma garrafa de água. Braço estendido para quem a quiser agarrar. Agarrei-a. Estava meio cheia. Não estava meio vazia. Molhei a cara e segui.

 

Caso não tenha reparado, o que disse em cima é basicamente o seguinte:

Não me vou poupar nos caracteres. Tentarei que a escrita seja corrida, como se pretende. Um risco assumido. Um texto um pouco mais longo, como uma meia maratona. Chegar ao fim, sempre esse o desafio, lá bem no fundo.

Correr durante mais de 21 quilómetros a meio de uma manhã de domingo é um risco. Arrisquemos.

 

Esta foi a minha quinta meia maratona. Corri três, sozinho, enquanto treinava. Três em três meses seguidos. Em outubro de 2014 corri a  primeira meia maratona oficial. A da Ponte Vasco da Gama - para não fazer publicidade.

 

Preparei-me com a ajuda do Google e de alguns amigos que correm há muito mais tempo do que eu. Na minha estreia baixei 52 minutos em relação à minha primeira meia maratona corrida sozinho, enquanto treinava, oito meses depois. Check. Correu tudo bem, até eu.

 

Estava com receio de correr a minha segunda meia maratona oficial, a da ponte 25 de Abril. Não me preparei, estou a preparar-me para outra, mas sabia que tinha quilómetros suficientes nas pernas para a fazer. Se terminava ou não isso é outra questão.

 

Pela primeira vez fiquei na cabeça da corrida.

 No final fiquei nos 10.000 primeiros, entre uns 30 ou 40 mil participantes, mas nos últimos 1000 da classificação da meia maratona. Nem por isso deixei de publicar fotografias nas redes sociais (rir).

 

Até pode parecer desculpa, mas não é.

O objectivo - tem que haver sempre um objectivo quando corremos, um qualquer - era fazer menos de duas horas e meia. É um bom tempo para mim. É nesta janela de tempo e de distâncias longas que me realizo. O tempo. Gosto de sonhar acordado. É isso que a corrida me canta ao ouvido.

 

A Rita ia fazer uma reportagem enquanto corria. Criou um "movimento" nas redes sociais, o hastag runningTVI24. Encontrei-a cedo, estava com o António Ferrari que eu não via há long time ago. Entrámos no autocarro. Só havia dois lugares e éramos três. Fui no que estava atrás. Perdi-os. Nunca mais os vi.

 

Já na partida, depois de ter saído do autocarro em andamento, antes do destino, devido a necessidades comumente chamadas fisiológicas, ali,  no meio da multidão, ao meu lado, o Luis Menezes, o meu homem da acupunctura, amigo, mais um amigo que não via há meses.

Bastou-me ir ao wc pela terceira vez naquela manhã para os perder, também a eles. Eu perco os meus amigos nas corridas. Antes, durante e depois. Sou um bicho do mato.

 

É quando dou de caras com o Rui Baioneta. Cigarro na mão, equipado a rigor, saca da selfie da ordem e siga a corrida que ainda sequer não começou. Estava quase. 

 

Olho, pescoço esticado para ver bem e vejo o Mo Farah a alongar. O Mo Farah era a estrela.

 

Já ele ia lá em baixo, em Alcântara, quando em zigues e zagues serpenteio os que caminhavam, os que corriam, os que tiravam fotografias, preocupado em não cair.

A poucos metros de mim, já ao quilómetro dois, um senhor com idade avançada. Uns oitenta, não lhe perguntei.

Nas corridas eu colo-me sempre aos mais velhos. Gosto do ritmo que levam. Ajudam-me, porque eu tenho dificuldades em manter um ritmo, uma cadência. Se calhar tenho oitenta ou mais anos.

 

Passámos o quilómetro quatro, à saída da ponte.

  Olhou-me e disse:

- Faça a sua corrida.

Olhei-o e respondi-lhe:

- A minha corrida vai ser consigo. O seu ritmo é bom. Não se canse a falar. Vamos juntos.

E assim foi.

 

De dois em dois quilómetros perguntava-lhe se estava bem, lembro-me de perguntar se costumava correr, envergonhado com a pergunta que fiz. Que sim, que corria, respondeu-me com alguma sofreguidão.

 

Mais à frente, num dos abastecimentos, foi buscar água e fez-me sinal se queria. Acenei-lhe que não e voltámos a juntar as passadas.

 

Começava a crescer uma estranha preocupação. Tão estranha como a corrida estava a ser. Como foi, depois. Inesquecível, está meia maratona.

 

Pergunto-lhe o nome:

- Victor.

- Eu sou o Quaresma, da TVI.

Olhou-me de novo, um olhar cansado mas feliz por correr.

 

- Ai é...

- No fim tiramos uma foto, pode ser?

- Pode sim senhor.

    

E sorriu, sem parar. Eu também. E seguimos.

Tinha acabado de conhecer mais um amigo ainda que temporário. Uma amizade que durou 21 quilómetros, que vai durar para sempre no código genético dos meus ténis de correr. Eles tiveram uma estreia como nunca imaginaram.

 

Esta meia maratona foi a corrida que mais me fez sentir feliz mas, foi a corrida mais estranha da minha vida. Estava um calor escondido.

 

 

 

Fomos vendo muita gente caída, a ser assistida, em estado de exaustão, ao longo da corrida.

 

Estranha preocupação.

 

- Senhor Victor vai bem?

- Vou.

     

A resposta saiu em esforço.

 

- Olhe, tenho aqui gel, faz bem, dá energia, quer um?

Olhou-me de novo.

Senti-lhe a interrogação do olhar, gel?

 

- Confie em mim, experimente, é líquido, bebe-se bem.

    

Passei-lhe o gel para a mão. Convenci-o e a minha estranha preocupação ficou suspensa durante mais alguns quilómetros. Passou-me o gel de novo, intacto. Falhei, pensei.

 

- Abra aí, não consigo ver bem.

 

À saída de Alcântara torci o pé esquerdo, no limite da lesão. Não sei se foi sorte se foram os ténis. Ele nem reparou. Eu acho que foi as duas coisas.

 

Agora, a horas de distância - sempre a distância - depois de ler, de ver o que foi esta dramática meia maratona, percebo que me preocupei muito pouco comigo e muito com um estranho que conheci ao quilómetro dois e perdi ao quilómetro 18, reencontrando-o apenas nas redes sociais. Nunca mais saberei nada dele.

o faltam fotos desta estranha meia maratona. Registos. Não faltam.

 

 

 

Correr 21 quilómetros é transportar na cabeça a clareza de cada respiração, carregar nas pernas cada passada no asfalto e é tudo o resto.

 

Em alguns momentos achei que o senhor Victor me ia mandar acelerar, para se ver livre de mim. O meu questionário era agora de quilómetro em quilómetro, à medida que ele ia abrandando a passada, quase a passo, eu dava comigo mais à frente, quase parando pra esperar por ele. Passei-lhe a bebida que levava comigo.

 

Beba, hidrata.

    

Levei comigo muito gel, l-carnitina, pastilhas efervescentes.

O calor escondido e traiçoeiro não se me chegou.

Os seis minutos e cinquenta de ritmo por cada quilómetro davam-me a certeza que ia terminar. 

Os meus ténis, estreados na corrida, contra a opinião de alguns amigos mais experientes, fizeram o resto. São uns aviões. Tem gel e tudo. E brilham.

 

 

 

Por volta dos 18 quilómetros:

 

- Senhor Victor já só faltam três, vamos acabar juntos.

     

Olhou-me de baixo para cima, ele é mais baixo do que eu.

 

- Vamos sim senhor.

- Siga o senhor que vou ali ao wc e já o apanho.

 

Nesta altura ele já sabia o que a casa gastava. Nunca fui tantas vezes ao wc na minha vida como nesta estranha meia maratona. Fui mesmo muitas, credo!

 

Recordo que perco sempre os amigos antes, durante e depois das corridas. Não faço de propósito. 

Apenas nos perdemos pela mesma paixão.

 

Ainda fiz uns metros a passo, olhando em redor.

Tinha-o perdido a três quilómetros do fim. A preocupação deu lugar a uma momentânea tristeza. 

Falhei o objectivo. Não cortámos a meta juntos, de mãos dadas no ar. Perdi-o antes de cortar a linha de chegada.

 

 

Era hora de raciocinar.

Fiz 18 quilómetros com o senhor Victor, por opção, porque achei que me ia carregar nos primeiros quilómetros, a um ritmo baixo - tenho  a mania de cometer o erro de acelerar sempre no início - e depois eu ia-me embora. Não fui. Perdi-o.

 

Decidi tentar recuperar alguns, poucos, minutos ao meu tempo.

 

É quando, de repente, ouço gritar o meu nome.

 

Conheci a Joana Malcata há dois anos.

Levou-me atrás dela uns oito quilómetros, no meio do campo e da planície do Ribatejo, nos 15 quilômetros das Lezírias e a dois da meta ia desistir, quando passei por ela.

Carreguei-a. Ficámos amigos, eu ela e o Nuno, o marido. Nunca mais nos vimos mas as redes sociais aproximaram-nos. As corridas também.

 

A Joana ainda não tinha virado no sentido da meta. Uma grade separava-nos. Tudo em segundos. Gritei-lhe: boa corrida.

Estico o pescoço e uns metros à frente o senhor Victor. Estranha meia maratona. Foi a última vez que o vi. Joana, gritei:

 

- Esse senhor aí ao pé de ti carregou-me até aqui, por favor, leva-o até ao fim, um beijo grande, vai, coragem. Acho que foi a primeira meia maratona da Joana. Sei que a acabou.

 

Faltava menos de dois quilómetros e meio para o fim. Acelerei. Fiz a melhor média, como se isso fosse o mais importante. Nunca foi. Já não o era. Há muito tempo e muitos quilómetros lá atrás.

A Ana Morais, que conheci através da Joana, nas corridas, tirou fotos sem fim, as que tem estado a ver ao longo do longo texto.

 

Uma meia maratona diz-se de forma fácil mas é longa, tão longa quanto a vida permite. Mais longa ainda do que este texto.

 

Morreu um homem mais novo do que eu. Um outro entrou na recta a desfalecer. Não a cortou.

Um amigo, que muito estimo, cortou-a, inconsciente, cambaleante. Literalmente.

Caiu prostrado a seguir à linha de chegada.

A paixão é a mesma e só a entende e à beleza da sua violência quem escalda os pés no alcatrão e se faz mover a coragem e ganas.

 

Vi muita, muita gente a ser assistida, as ambulâncias acompanharam-nos quase como se também elas estivessem a correr, estranha corrida.

 

E, no fim, mesmo no fim, na linha da meta, tal como na partida os amigos me  afagaram a alma, sem saberem, na chegada, ao olhar para cima vejo o Ricardo Martins Pereira e a sua Pipoca Mais Doce. Olhavam para baixo, sorridentes. Braços encostados ao varão observando a chegada. As chegadas. Também a minha. Que surpresa. A última. Não creio.

 

Dobro-me. Coloco as mãos nos joelhos. Inclino a cabeça para cima. Cruzo olhares com os deles.

 

- Quanto fizeste?

  

O Ricardo respondeu-me. Percebi que fez um excelente tempo, mas as pernas não me deixaram memorizar. Pensei em esperar pela Joana e pelo senhor Victor, mas não podia ficar ali na zona meta.

 

Trocámos mais umas palavras cá de baixo lá para cima e segui para receber a minha medalha. É linda.

 

Mas a história não acaba aqui. A meia maratona é que chegou ao fim.

 

No autocarro, a caminho do hotel de onde partimos para a corrida, mais um amigo que não via há anos, a não ser nas redes sociais e às vezes na televisão.

 

 

 

O Miguel Guerreiro é um daqueles da velha guarda. O avião que viu a ser lançado na foto é o dorsal dele. Sempre foi assim descontraído, desprendido. Inteligente.

 

Nele, no avião que está na foto voam todas as histórias que esta meia maratona me colocou à frente, me contou.

Ainda não contei uma. Falta esta.

 

O Faísca é meu colega na televisão.

Pesava cento e muitos quilos, muitos mesmo. O Faísca começou a caminhar, todos os dias, há uns dois meses. O Faísca já caminhou 25 quilómetros. Foi parar ao hospital. 

Saiu, foi comer sushi e voltou ao asfalto. 

O Faísca é um exemplo. 

Vai reduzir o estômago, está a perder peso, por isso, por isso caminha todos os dias sem excepção. o Faísca já está mais magro e cada vez mais feliz.

 

Faltava menos de um quilómetro para a meta. Olho para a berma, para o passeio. Gritei:

 

- Faíscaaaaaaaaa (assim mesmo).

    

Não queria acreditar, mesmo antes do fim, depois de tamanha intensidade, alguém, mais alguém que partilha comigo o mesmo caminho.

 

O Faísca entrou na estrada. Eu não parei, apenas abrandei. Deu-me um abraço, apertado, eu transpirado, molhado, ele de blusão.

 

- Vou contigo.

- Não vais nada.  

 

Corremos dez metros juntos, mais coisa menos coisa, abraçados.

Acreditei que ele ia comigo até ao fim. Pelo menos senti que sim, que ia se eu deixasse.

 

Voltei-me para trás e mandei-lhe um beijo, de amigo. Ninguém tirou a foto. Guardamos o instante. Esta congelado. Só eu e ele sabemos o que significou aquele frame em que ficámos suspensos no ar.

 

Voltei-me de frente, para a frente, de novo, cerrei os dentes, esqueci-me dos blocos de cimento nas pernas e fui.

 

O senhor Victor terminou a prova. A Joana cumpriu a promessa. 

Vi-os, de mãos dadas e sorrisos rasgados a cortar a meta. 

E também eu sorri, em casa, a olhar para o Facebook da Joana. Foi quando os vi.

 

Hoje voltei a calçar os ténis novos e fui correr antes de escrever este texto que agora sim chega ao fim.

 

Houve muito de dramático e superação, amizade, solidariedade e tragédia e prazer, coragem, espanto e sorrisos e lágrimas,  nesta estranha meia maratona.

 

Há manhãs assim.

Há domingos assim. Porque tem que ser assim. Porque queremos que seja assim. Porque correr é isto e tudo. Ponto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários

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    The Cat Runner

    26.03.15

    Obrigado, HF.
    Correr é viver. A vida é como cada corrida. Ambas tem as suas histórias. Tantas.
    Forte abraço
    ZGQ
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