“UM CRUZEIRO ATÉ BIRMINGHAM NO SÉCULO PASSADO”
Quando eu era pequeno aconteciam coisas fantásticas.
Era uma vida cheia de tudo, apenas vazia de preocupações, vivida a alta intensidade.
Nem mesmo a hora de ir para casa me preocupava, zero, embora, cumprisse quase sempre aquilo que a minha mãe determinava.
Não gostava de sentir o peso da sua "tairoca" nas minhas costas, nem os castigos, fechado no quarto um bom par de horas.
Nunca gostei de a ver preocupada. Nem ontem, nem hoje.
Havia duas palavras que, tantos anos depois, ainda são usadas por determinadas pessoas.
O “aparelho produtivo”, uma expressão que os comunistas usam muito e que não me fazia qualquer sentido, nessa altura, minto, fazia algum sentido, que não o político.
A gente sonhava, caraças, e brincava, muito e isso fazia todo o sentido.
O “aparelho produtivo” era visível para todos os miúdos que, como eu, passavam os dias a na rua, depois da escola, dentro de mundos que só nós conseguiamos inventar.
Naquela altura o “aparelho produtivo” era apenas duas palavras estranhas, na verdade, o “aparelho produtivo” apenas servia para nós vivermos as nossas aventuras, como nos filmes.
No cais, na vila, os batelões do senhor João Conde eram verdadeiras cidades, nas quais as nossas quimeras jamais terminavam.
Ele não gostava, mas nós invadiamos os batelões e brincávamos no meio da areia molhada pelo suor dos homens que a retiravam do fundo do rio.
Os batelões já não descarregam a areia, as aventuras acabaram.
Morreram.
Na zona onde vivia havia imensas indústrias, o tal “aparelho produtivo”, sobretudo, indústria pesada, metalomecânica, estaleiros, onde o meu pai cresceu, fez-se homem, viveu e, ainda hoje, depois de reformado, continua a exercer o seu ofício.
As pessoas, em Portugal, reformam-se, mas continuam a trabalhar, por necessidade, por necessidade financeira, por necessidade de não pararem no tempo que lhes falta, que nos falta, a todos.
Lembro-me de ele trabalhar na CORAME, que era uma grande empresa metalúrgica, em Santa Iria, quase às portas de Lisboa, de trabalhar nos estaleiros da Argibay, os grandes estaleiros, que recebiam grandes barcos, navios, em Alverca.
Lembro-me, como se fosse hoje, de ir com a minha mãe, às sextas feiras fazer o avio para a semana à Casa do Pessoal, que aquilo era tudo organizado e os trabalhadores ainda tinham direitos e voz activa.
Coisas dos sindicatos a sério, depois do 25 de Abril, sindicatos como os sindicatos ingleses, por alturas da Revolução Industrial.
Sindicatos com peso dentro das fábricas, como em Birmingham, dos anos vinte, do século passado.
A zona onde eu vivia pulsava como Birmingham, na década de vinte, do século passado.
Homens que vestiam fatos de macaco, cheios de pó do ferro, o cheiro do aço, a ferrugem, o fumo das caldeiras, as tubagens, as válvulas, a vida, havia vida, ali, depois acabaram com ela, tal como fizeram com os batelões do senhor João Conde.
Num destes dias, dias que eu tenho vivido à minha maneira, dias muitos especiais, que me remetem para o meu próprio interior, devia ter corrido dez quilómetros, mas a minha mulher, devota do ioga, depois da sessão matinal e porque estava de folga, quis ir caminhar e fez-me o convite.
Em vez de correr eu e ela caminhámos treze quilómetros e em vez do habitual passeio junto ao rio, na vila, fomos para o tal sítio que parecia Birmingham, na década de vinte, do século passado.
Por aquelas bandas, por onde o meu pai andou, ele e os homens que fizeram a história de um país que já foi imensamente grande, como eles.
Qualquer dia a vila liga-se a Lisboa, pela margem do rio.
Qualquer dia, provavelmente, já nem estarei cá para ver. Mas, a coisa vai-se dando.
Se entrar em Alverca já consigo ir, junto ao rio, até quase à zona da Expo.
Precisamente.
Foi para aí que fomos, enquanto ela caminhava, junto a mim, eu ia viajando no tempo, registando os momentos, imaginando-me criança, de fato macaco vestido, cheio de pó do ferro, sentindo o cheiro do aço e da ferrugem, o fumo das caldeiras, a vida que mataram.
Mataram o “aparelho produtivo”.
Não sou comunista.
Só sei que o mataram. Eu vi o crime.
Os esqueletos ainda por lá andam, quais fantasmas que se misturam com as cores do progresso e da modernidade, do passadiço, os batelões, os estaleiros, as caldeiras, as tubagens, as fábricas, esqueletos de memórias, fantasmas que só assombram quem por ali andou.
Fomos e viemos, como as viagens no tempo.
Sem preocupação do ritmo, do relógio, dos passos, das batidas do coração, como quando era miúdo.
Gostava de parar o tempo.
Gostava de o fazer voltar lá atrás.
Gostava de ir às sextas fazer o avio da semana, com a minha mãe, à Casa do Pessoal e, depois, regressarmos à vila, com o meu pai, ao fim do dia de trabalho.
Iamos e vinhamos de combóio e eramos felizes.
Já por ali tinha andado, quando treinei para a maratona e, por isso, as memórias desses fantasmas assombraram-me apenas ao de leve, nada como desta vez em que tive tempo e coração para fazer a viagem.
Caminhei e, quando vamos acompanhado por uma senhora, quando caminhamos com ela, devemos escutar a canção de Sting: “gentleman will walk but never run”.
Não corri. Não se corre contra o tempo.
O meu pai já se reformou, mas ainda trabalha, homem daquele tempo não pode estar parado.
Morre por dentro, se parar, para isso já basta o tempo ter morrido.
Hoje foi o último dia de trabalho da mãe da minha mulher.
Trabalhou toda a vida no mesmo sítio, onde foi imensamente feliz.
Não contou a ninguém que era a última vez.
Só duas ou três pessoas sabiam.
Meteu um lenço bonito ao pescoço, senhora, como sempre, foi e veio, tal como nós naquela viagem.
Toda a vida ali, onde todos gostaram dela, todos aqueles que lá entraram bebés de meses e de lá sairam adolescentes, toda a vida, ali.
Ainda hoje, muitos deles já adultos, voltam ali, para visitar a “Avó Mima”.
Disse-me a minha mulher que ela continua feliz, que irá lá várias vezes, que o corte não será total, e que estava toda bem disposta.
Tenho a certeza que lhe vão fazer um jantar de homenagem, que isto não é gente de despedidas.
São 74 anos, talvez mais quarenta ali, todos os dias, onde viu filhos, serem pais, terem netos, namorados que casaram, que se divorciaram, vidas e vidas atrás de vidas, onde viu e ajudou essas vidas a viverem.
Não, a mãe da minha mulher não é de ficar a viver no passado, ao contrário de mim.
Ela é o exemplo que todos nós seguimos, os que são da família e todos aqueles, imensos, que com ela tiveram o prazer de se cruzar na vida.
Ela trabalhou toda a vida num infantário.
Imagina as vidas que lá viveram?
Mas, ao contrário de mim, ela pouco visita as suas memórias, só quando a questionamos.
Ainda não lhe contei que eu e a filha fomos caminhar, enquanto eu viajava até ao meu passado, com cheiro a ferrugem.
Vou contar-lhe, talvez no domingo, ao almoço, no nosso sagrado almoço de domingo, que ela gosta de escutar as minhas memórias e de cozinhar para nós. Em família.
Só não sei se algum dia lhe contarei que um dos meus sonhos era voltar atrás e visitar Birmingham, dos anos vinte, do século passado.
É que, ao contrário do que diz o povo, o povo que tem a mania que sabe tudo, ao contrário dele, eu gosto da mãe da minha mulher, como se fosse uma mãe.
Qual quê, não gostar da sogra!
A minha mãe não tem ciúmes, eu sei.
São duas mulheres e peras.
Quem sabe se não é agora que a "Avó Mima" realiza o seu sonho: fazer um cruzeiro e eu o meu;
voltar a Birmingham, nos anos vinte, do século passado, onde nunca estive!