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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

05.06.19

PARA TI, STEPHANE


The Cat Runner

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Foi aquele abraço, em Berlim, que nos uniu, para sempre. Como dois irmãos de sangue.

E, só nos conhecíamos há dois dias.

Há abraços que são assim.

Berlim e o teu abraço será para sempre a nossa “história” mais íntima.

Hoje recordei a chegada à meta e aquele momento em que cumpriste a promessa que me fizeste à mesa do café do turco.

O abraço.

Olha que as promessas às vezes são levadas pelo vento. Não havia vento, naquela manhã.

Hoje queria ter estado junto de ti.

É por isso que te dedico este texto.

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A corrida tem sido uma dádiva, de pessoas generosas, de momentos irrepetíveis, de sensações inimagináveis, que se prolongam no resto da vida.

Tem-me ensinado tanto do que é ser-se humano.

Sabes, Stephane, no sábado voltei a correr.

Já não corria desde a meia-maratona de Viseu, que serviu como treino de descompressão, logo a seguir à maratona, onde nos conhecemos.

No final dessa corrida, em Viseu, decidi não voltar a participar em provas.

Coisas minhas.

Não vais acreditar, desleixei-me, voltei a fumar, engordei uns bons dez quilos, porque faço tudo em grande e, pasma-te, deixei de ter prazer em correr.

Deixe de sentir prazer.

O tempo foi passando e eu decidi lutar contra ele. Luto todos os dias. Tenho as minhas lutas. Todos temos as nossas lutas.

Comecei do zero. Outra vez. Também gosto de recomeços, acho que te o disse uma vez.

Caminhar, correr, caminhar, correr, comecei a fazer uns exercícios através de uma aplicação, afinal, eu também sou um ser digital, mas correr provas não. Isso é que não. Coisas minhas.

Só que, na quarta feira, a Carla chegou a casa e disse-me:

“Tu não apareces na televisão há bastante tempo, mas continuam a mandar-te convites, isto estava na portaria da TVI”.

As pessoas gostam de bajular as pessoas da televisão e, quando as conhecem e percebem que são apenas pessoas descartam-nas.

Entregou-me um manjerico, um saco, com uma camisola, um dorsal e disse-me:
“Vai, volta a correr, tu és feliz assim, vai, aceita o convite”.

Eu aceitei.

Estou habituado a dizer sempre “sim” aos amigos e, este convite, foi feito por um amigo, dono de uma empresa de eventos de corrida, que nunca, jamais, me pediu o que quer que fosse em troca.

O gesto foi tão simpático que anui.

Decidi, então, ir correr a corrida do Santo António, em Lisboa.

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Sabes como gosto de correr à noite.

Tu sabes, Stephane, porque é que eu gosto de correr;

Para além as experiências sensorais que vivo, das descobertas que faço, do prazer que tenho, para além disso, são as histórias que me tocam, em todas as corridas.

Uma corrida é uma história, dividida em muitas histórias.

Caraças, são sempre histórias bonitas. Tenho tanta sorte.

São as histórias dessa corrida que te vou contar, hoje, especialmente hoje, porque sei que gostas de ler as minhas histórias, sei que ris com elas, que te comoves, que te delicias, porque gostas de coisas genuínas, como eu.

Imagina, acordei cedo, mas fui o último a chegar à linha de partida. Não fiz de propósito, Stephan, é um problema que tenho, chegar a horas.

Já eles iam lá todos à frente quando eu cheguei, já com o aquecimento feito, fruto da corrida que dei desde o estacionamento do Parque Mayer até ao Rossio.

Cheguei exactamente na hora da partida. Só eu.

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Não te contei mas já perdi três quilos na última semana.

Olha, imagina tu que fiz os primeiros três quilómetros como vocês costumam fazer, rápido, a correr, pouco acima dos cinco minutos. Claro que sabia que lá à frente ia arrear. E arreei.

Mas não ia, como nunca vou, preocupado com tempos e ritmos. Fui, pelo prazer.

Fui parando, aqui e ali, para fotografar pessoas e momentos, e mesmo assim abaixo dos seis minutos por cada quilómetro.

Estava um vento abafado e forte, a garganta secava e eu a pensar que era do tabaco.

Não era.

No final havia pessoas a falarem entre si sobre a sua secura, imagina tu, interrompi-as para perguntar se lhe tinha acontecido o mesmo. Olhavam-me, como se olha para um extraterrestre, reconheciam-me, sorriam e respondiam-me que sim, também lhes tinha acontecido.

Tu sabes o quanto eu sou de me emocionar facilmente.

Por tudo e por nada. Ainda hoje, quando trocámos mensagens os dois.

Emocionei-me quando vi famílias juntas, emocionei-me quando vi pessoas de idade avançada, lutadores de uma vida inteira, ali, a cumprirem o seu desígnio.

Gente forte, como tu, gente gentil, como tu, gente de afectos e resiliência, como tu.

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Sabes, há um senhor que eu conheço, mas a quem não conheço o nome.

Lembro-me dele, na vila, desde que me lembro.

Nunca lhe perguntei o nome. Nem desta vez.

Quando me preparava para a nossa maratona encontrei-o várias vezes, ora no passeio ribeirinho, ora no campo da Cimpor, ora no jardim.

Nunca lhe perguntei o nome.

Encontrei-o, depois, várias vezes, nas corridas.

Ele já vai avançado na idade, passos lentos, determinado. A única coisa que nos diferencia a mim e a ele é a idade.

Reencontrei-o na corrida de sábado, reconheci-o pelas costas, pelos passos, pelo ritmo que levava. Pelos cabelos brancos.

Gente da sabedoria, que com eles aprendo.

Passei por ele, rápido, imagina, eu, rápido, porque só assim o conseguia apanhar de frente para lhe tirar o retrato.

Não lhe perguntei o nome.

Há coisas que não se perguntam, para não roçarmos a indelicadeza.

“Vamos, Vila Franca, vamos lá”, gritei-lhe.

“Vamos embora”, respondeu-me.

“E domingo vamos a Leiria ganhar e subir à segunda divisão”.

“Sem espinhas”, gritei-lhe, “Sem espinhas, somos União, somos da Vila”.

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Não sei se a ti incomoda, mas a mim incomoda-me os cheiros, alguns cheiros, quando corro.

Um gajo vai ali no meio do sofrimento, no meio de um prazer que o comum dos sendentários não entende e de repente, vindo como que de um nevoeiro que não existe, aquele cheiro a churrasco, a salsichas, reconheci o cheiro das salsichas, aposto que eram salsichas frescas.

Enquanto alguns milhares de tolos felizes corriam, numa quente noite de sábado, outros tolos divertiam-se, no Village Underground, que é um espaço cheio de autocarros velhos, transformados em escritórios.

É aquela malta que há uns anos eram chamados de Yuppies e hoje são os nómadas do trabalho, acho que é assim que dizem.

O cheiro agoniou-me, ainda por cima com a garganta seca.

Acho que só lhes perdoava se me convidassem para uma imperial, mas eu ia do lado de lá da rua.

Já na volta vi-me de frente com um amigo – um dia hei-de apresentar-te o João .

O João é um amigo que está sempre cá, como tu, para tudo.

Tira-me dúvidas sobre corrida, ele corre há muitos anos, tira-me dúvidas sobre o computador, ele é programador, tira-me dúvidas sobre tudo.

Lá vinha ele, com a Elsa, a sua mulher, ambos com luzes na cabeça e o carrinho de bebé empurrado por aqueles braços fortes.

O João é forte. Tu também és forte.

Parámos, demos um abraço, sempre o abraço. Escreveu-me, horas depois, no Facebook que tinha adorado rever-me. E eu a ele.

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Tenho saudades tuas, Stephane. Temos que nos ver.

Depois, ouvi gritar o meu nome em alta velocidade, era a nossa Alice. Já não a via há imenso tempo.

Já estava quase a chegar ao fim quando me deixei passar por alguém que me fez parar e ficar ali, estático, a pensar em como somos pequenos perante o nosso destino.

Não irei escrever mais uma palavra sobre ele.

Ele é quem vai aqui, neste vídeo.

Imagina a resiliência, a coragem, a força, sobretudo, a alegria de seguir em frente, depois de tamanhos obstáculos que a vida nos coloca. Não é o destino, é a vida.

E, segue-se em frente.

Voltei a parar, desta vez para ver algo que nunca vi. 

Qual Ronaldo, qual Félix, qual Kipchoge. Este sim, um runner talentoso, ora vê.

Já te deixo ir, deixa-me só contar-te mais esta.

O Hugo Miguel Sousa é o amigo de que te falei, em cima. Ele é dono da HMS, a empresa que organiza as corridas de que te falei, a São Silvestre, por exemplo, que é uma corrida mágica, por ser na altura do Natal, quando a cidade está mais bela do que nunca.

Foi ele que me convidou e organizou a corrida do Santo António.

Mas, sabes o que descobri, Stephane?

Descobri que andamos todos aqui a mentir uns aos outros, a criar mitos, narrativas.

Descobri que o Santo António é uma mulher.

Acredita em mim. Eu sei que acreditas.

Eu passei por ela. Eu tirei-lhe um retrato.

É uma mulher, Stephane.

 

Eu nunca te menti, porque quem recebe um abraço como o que eu recebi em Berlim não consegue mentir.

Depois, já mesmo no fim, reparei que Lisboa está cada vez mais encantadora, bonita, charmosa.

Cheia de gente de fora, turistas, que atravessam as passadeiras enquanto a gente corre, que se metem connosco.

Meteram-se comigo.

Uma das miúdas saiu do grupo, que devia ir em direcção a uma bebedeira qualquer, ou para uma orgia qualquer, ou não sei para onde.

Primeiro mandei-a para um lado obsceno, em português, mas ela, naquele vestido justo e decotado, com padrões de folhas verdes, manteve-se a meu lado, enquanto dizia adeus ao resto do grupo.

Decidi aplicar todo o meu “cámone” e disparei:

“Wanna come?”.

Ainda bem que ela não pensou outra coisa.

“Yes, let´s go”.

Pensei, pensou isso mesmo.

E, deixei-a a falar sozinha, em inglês carregado de álcool.

“Onde é a meta?”, perguntei a um daqueles que ainda andam a correr já depois de terminarem a corrida.

“É ali a trezentos metros, força”.

Entrei no Rossio.

Virei a curva.

Passei a meta.

Vi o Marcelino, que um fotógrafo, sempre presente nas corridas, em Lisboa, vi a Sandra, do Correr Lisboa, uma equipa pela qual tenho enorme estima.

Tirámos fotos, tiraram-me fotos.

A camisola que eu levava é aquela que tu me ofereceste.

A camisola mais bonita da corrida.

Agora, depois deste texto, a camisola que eu mais estimo, com muito afecto, amizade, respeito, arrisco, amor, até.

É linda a camisola que me ofereceste.

Reconforta-me vesti-la, como me reconfortou o teu abraço, como me reconfortou a palavra que me deste e cumpriste em Berlim.

Será sempre a nossa história mais íntima, Stephane.

Muito mais a partir de hoje.

Esta história não teria qualquer importância, nem este texto, nem a minha corrida, não fosse o facto de eu saber que a ias gostar de ler.

Não fosse o facto de eu saber que a ias entender, em cada linha, em cada entrelinha, em cada palavra ou ponto de exclamação.

Não fosse isso não tería qualquer significado.

Assim, Stephane, faz todo o sentido.

Como um ponto final.

Um ponto final é uma mudança de parágrafo.

E, Stephane, o início de cada parágrafo é o começo de uma nova ideia, de uma nova frase, de uma nova vida.

Faz todo o sentido, Stephane.

Tudo faz sentido.

Mesmo quando não faz qualquer sentido.