O TRIUNFO DOS PORCOS
- Ainda bem que vieste.
Vou contar-te uma coisa; ando para aqui a contas com um bloqueio.
- Por causa dos suínos?
- Quais suínos?
- Não foste hoje fazer directos do bloqueio dos produtores e criadores de porcos, por causa da...
- Fui, mas o que é que isso tem a ver com o meu bloqueio?
- Desculpa, não te queria ofender.
- Não ofendeste, embora indirectamente me tenhas chamado porco.
- Não digas uma coisa dessas, pá.
- Foi o que aconteceu. Pelo menos eu senti-me.
- Aquilo deu em nada.
- Acho que eles só queriam pressionar.
Disfarça...
- Então qual é o teu bloqueio?
- Mental (gargalhada).
- Mental...
- Há montes de tempo que não me sai uma ideia para escrever.
- Idiota.
- Menos.
- Menos idiota, na verdade é isso.
- Isso, embora me soe de novo a ofensa gratuita.
- Há ofensas pagas?
- Não, mas às vezes há ofensas legítimas.
- Em legítima ofensa?
- Ou isso.
- Mas porquê?
- Sinceramente, achas que isso é pergunta que se faça?
- Porque não, não somos amigos?
- Somos, mas há pessoas - poucas - a ler isto.
Achas normal vir para aqui responder-te a esse tipo de perguntas?
Acaba-se já aqui. Está entendido?
- O chefe manda!
- Mando-te é para aquele sítio...
- Pára, há pessoas a ler isto!
- Bom, normalizemos.
Sei lá porquê, é um bloqueio constante.
- Se calhar porque andas pouco a pé.
- Eu?
Sim, eu corro de carro, estiveste a fumar cenas?
- Não, meu, passas a vida no carro ou no trabalho.
Andas pouco a pé, pelas ruas, vês pouco, não...
- Calma.
Não o quê?
- Não te confrontas com as histórias das pessoas, passas a vida dentro de um casulo que quase inferniza.
- Achas que ando bloqueado de inspiração por causa...Eu conto histórias de pessoas, não preciso andar nas ruas, embora ande, achas...
- Acho, claro que acho.
- És capaz de ter razão.
Esta tarde um amigo sugeriu-me escrever sobre as coisas pequenas da vida, que são as mais importantes.
- Posto isso decidiste consultar-me.
- Isso.
- Isso o quê?
- Pá, não ia voltar a escrever sobre o facto de precisar de estar sózinho, de tempos a tempos, e depois sentir um imenso vazio.
- Certo.
- Também não vou maçar outra vez as pessoas com aquela coisa de sermos mais humanos, menos maus uns com os outros...
- Sim, já chega de lamechas. Tenho reparado que tens passado os últimos tempos nisso...
- Podia escrever sobre corrida.
- Podias?
Se calhar se tens ido correr hoje até podias, assim...
- Assim o quê, pá?
Estás a insinuar que ando a cortar-me...
- Não, só que podias ter ido.
- E depois estava, como das outras vezes, até às tantas a escrever...
- E então?
É fim de semana.
- Não me digas nada, vou estar a trabalhar no fim de semana da meia maratona.
- Jura?
- Juro (agora dizia uma asneira).
- Ganda galo.
- Primeiro, porco, agora...
- Pelo menos tens o sentido de amor intacto.
- E o de humor também.
- Ias a dizer...
- Ia a dizer que podia ter escrito sobre a cena de hoje dos porcos.
- O triunfo dos porcos.
- Nem vê-los. Não vi nem um. Nem na televisão, não vi televisão.
- Então escrevias o quê?
- Olha, escrevia sobre aquele par de horas em cima da ponte do Pragal a detectar camiões com sinais de suinicultura.
- Deve ter sido interessante.
- Por acaso foi. Fazia vento que se desunhava.
Mas via-se bem o Cristo - Rei, a Paula é uma bacana e os PSP que estavam connosco ajudaram a matar o tempo, salve seja, que não houve recurso a armas de fogo.
- E bloqueio?
- Zero. O trânsito flui normalmente no tabuleiro da ponte 25 de Abril, para esta hora da tarde. Alguma intensidade de trânsito, por causa da hora de ponta, mas nenhuma ocorrência a registar.
- Disseste isso?
- Achas?!
Não, mas podia ter dito.
- E os porcos?
- Zero. Nem um. Mas fazia sentido, Setúbal, Montijo e Alcochete têm muita pecuária e suinicultura, podiam ter entrado por ali.
- Então porque é que não entraram.
- Entraram, mas o grosso veio do Oeste, pelo Oeste e pelo Norte de Lisboa.
- Entraram?
- Ya, só que devem ter-se enganado ou assim, e vieram a conta gotas, quero dizer, eu acho que vieram.
Sabes quantos camiões passam todos os dias na ponte 25 de Abril?
- Não faço a mínima.
- Nem eu, mas são muitos. E com marcas de rações, de talhos, e por aí fora...
- Pois, devem ser muitos.
- Alguns traziam um cartaz com a cara de um porco, os porcos têm cara?
- Essa obriga-me a pensar.
- Rápido, estamos quase a acabar.
- Desenho.
- Queres um?
- Não, os camiões traziam desenhos de porcos...
- Mas não eram porcos inteiros, nem era só focinhos de porco.
- Sim, mas os porcos não têm cara, acho eu.
- Também acho. Há que fale em cabeça de porco.
- Os porcos têm cabeça, disso não tenho dúvidas.
- É um facto.
E pés.
-Também traziam pés de porco?
- Pézinhos.
- Isso quase dava um cozido à portuguesa, em directo.
- Só fiz quatro.
- Claro, os porquinhos têm quatro pézinhos.
- Outra vez?
- Desculpa. Saiu-me.
- Não traziam nenhuns pézinhos de porco, até porque os porcos não tê pés, patas.
Eles têm patas. Eram cabeças de porco desenhadas.
- Calma, acalma-te. Os porcos não têm cara, nem pés. Pronto.
- Pronto.
- Pronto.
- Estamos sem assunto?
- Parece!
- O meu amigo bem dizia que devia escrever sobre as pequenas coisas da vidas...
- Que são as mais importantes?
- Que são as mais importantes.
- E escreveste. Escreveste sobre os porcos. Coisas pequenas...
- Isso são leitões, é crime, mas sim, de facto, se olharmos na perspectiva da salsicha fresca com lombarda, sim, posso dizer que foi isso que aconteceu.
- Amanhã vais ao sushi com os putos, já que estás outra vez pai solteiro?
- Não. Eles acham que sim, mas não.
Vamos ao Chico comer uns pézinhos de coentrada.
- De porco?
- Não, de coentrada.
Se me voltas a chamar porco juro que nunca mais olho para ti.
- Seu porco!
- Porco, mas triunfante...
- Foi por isso que te sugeri o título do texto: O Triunfo dos Porcos.
- Bem visto.
Queres vir amanhã almoçar?
- Não posso, tenho pézinhos de porco.
- O que isso te deve custar a andar...
- Já tenho ortopedista marcado.
- Depois dá notícias, um abraço.
- Agora só na segunda feira.
Fica bem, até amanhã.