O QUILÓMETRO 41 - O PIANO - (DIA 98 DA MARATONA)
Ela caminha por um caminho que não conhece, mas que é sempre o mesmo, sempre igual.
Ali chegada encontra uma pocilga delimitada nos quatro lados por troncos de madeira castanhos.
Todos compostos, alinhados, imaculadamente desenhados.
Decide entrar na pocilga que a faz passar pela mesma porta de sempre, que se abre, lentamente, permitindo que os seus passos leves e silenciosos a conduzam até ao interior daquele enorme salão e belo salão, a lembrar os salões dos grandes castelos que carregam em si histórias de encantar.
Um grande salão, que a recebe, sempre, como sempre, com dezenas de janelas, alinhadas, lá no alto das grandes paredes, assim como numa pintura perfeita, como ela, janelas que, como ela se deixam trespassar por uma luz morna e reconfortante.
Cada janela tem uma cortina, quase invisível, como as cortinas antigas, que albergam minúsculas flores, em tons leves, salmão, azul-bebé, alaranjadas.
Detém-se, muda, é o silêncio que a impele, olhando em redor, no meio daquele salão mágico.
À medida em que a sua cabeça roda e o olhar se fixa no horizonte, transformado em parede feita de rocha firme, começa a escutar um som, atrás de si.
Piano.
Ouve um piano a tocar, suavemente, atrás de si, porque é atrás de si que ela o escuta.
Lá atrás.
Invade o grande salão.
A luz é agora mais intensa, mais reconfortante, mais bonita.
Para trás de si ficou a pocilga, delimitada nos quatro lados por troncos de madeira castanhos.
Todos compostos, alinhados, imaculadamente desenhados.
A música soa-lhe a eternidade. E, sorri.
É um sonho que a acompanha há uma vida inteira, contou-me ontem.
Desde pequena, uma vida inteira, um sonho que se repete, sempre igual.
Há-de ter um significado, porque tudo tem o seu próprio significado, há-de ter, embora ela não saiba qual.
Uma vida inteira.
A vida dela, que me faz sonhar, por viver a minha a seu lado, dia após dia, todos os dias da minha vida, da vida dela.
Ninguém sabe, porque nunca o contei, conto agora.
Conheço um mundo inteiro de fé.
Gente como eu, que caminha, como ela, para um lado qualquer, que é sempre o mesmo.
Mágico.
Piano.
Luz.
Gente que, levada pela sua fé, pés cravados de bolhas, alma que guarda chagas só suas, gente que é gente, naquela caminhada até ao final da viagem, onde as lágrimas correm pelo rosto, salgam os lábios, que sorriem naquele intenso momento da chegada.
Já devo umas quantas promessas não cumpridas, umas quantas caminhadas até Fátima, onde a fé dos homens se mistura com a sua incomensurável bondade.
Prometo que é desta, levado pelo sonho que ela tem desde menina, guiado pela minha própria fé, em busca da bondade. Prometo.
Ninguém sabe, porque nunca o contei, conto agora.
Quando, num acto de fé, porque foi isso que foi, um acto de fé, decidi ir a Berlim correr a minha maratona, foi como se me tivesse obrigado a percorrer, finalmente, esse caminho, o meu próprio caminho, o meu próprio calvário, como num sonho, porque é isso que tudo isto também foi, o meu sonho.
E o dela.
O sonho que eu desconhecia;
chegar àquele enorme salão, onde cada janela tem uma cortina, quase invisível, como as cortinas antigas, que albergam minúsculas flores em tons leves, salmão, azul-bebé, alaranjadas e ali ficar, como ela, no seu sonho.
Fui sem saber, fui sem conhecer, fui por ela e, isso ninguém sabia, nem ela, porque eu nunca o tinha contado, até hoje.
Correr esta (única) maratona foi o meu acto de fé, porque precisava de provar a mim mesmo que sou um homem de palavra, de promessas cumpridas.
Uma espécie de garantia, guardada no mais secreto canto de mim, que irei pagar tudo, promessa a promessa, até à última promessa.
Isso é fé.
E, no momento da decisão, no momento em que me propus calcorrear o meu próprio calvário de provação, foi nela que pensei.
Nem ela sabe.
Mas irá saber, se chegar a ler este quilómetro.
Vou fazer com que o leia, afinal, estamos a chegar ao fim e o fim não é, forcosamente, o terminar de nada.
Pode até significar o começo de tudo.
Porque ela agora consegue ler, este e todos os quilómetros do seu sonho, quinze anos depois de viver em escuridão quase completa.
Mas, nos nossos sonhos, nem a escuridão consegue penetrar.
Aprendi, nesta jornada incrível a acreditar no milagre, porque é a nossa fé que nos alimenta e nos impele para fazermos esse nosso caminho.
Disso eu já não dúvido mais. Não tenho como.
Eu quis correr a maratona para pagar os meus pecados, para acreditar nas minhas promessas e na palavra do meu coração.
E, fui.
Eu quis correr a maratona por centenas, milhares, de motivos só meus, tantos quantas aquelas cortinas iguais às do seu sonho, que a acompanha durante toda a vida.
E, fui.
Se isto me acontecer, se aquilo se concretizar, se aquilo se resolver, se eu me tentar expressar e se for ouvido eu vou correr todos aqueles quilómetros, até ao fim.
E, fui.
Lembrei-me da gente de fé que caminha assente nos seus joelhos feridos, na sua inabalável crença. Gente que eu admiro, por saber que nunca serei igual, gente a quem eu me quis comparar.
Mas, não, quem sou eu ao pé de tamanha gente?
Gente como ela.
A minha mãe chama-se Adelaide.
Um nome tão doce, doce como o sonho que ela me contou e que a acompanha toda a vida.
A Adelaide tem uma doença incurável.
Há quinze anos ela começou a perder a capacidade de ver, sem nunca perder a capacidade de sorrir, sem nunca perder a capacidade de sonhar.
Ontem contou-me o seu sonho.
Só hoje, aqui, tive coragem para lhe contar o meu, aqui, nestas linhas deste quase último quilómetro desta brutal maratona.
O quilómetro que me abriu a porta, lenta e suavemente, para que eu pudesse entrar naquele salão mágico, grande e admirar as belas cortinas em tons suaves.
Confessou-me que as cortinas estavam apanhadas por uns laços aos quais não conseguiu descortinar a cor.
Foi acompanhado por ela que me fiz ao caminho, foi com ela no pensamento que passei dores inimagináveis, que sorri como nunca havia sorrido, de dor, de felicidade, mas nunca como ela, porque o seu sorriso é incomparável.
Foi ela que levei nos meus pensamentos, porque é nela que eu penso todos os dias da minha vida.
Fiz o meu caminho de fé, nas ruas de Berlim, qual peregrino, com sapatilhas encarnadas, de calções vestido, como um menino.
O seu menino.
Serei sempre o teu menino.
Foste tu que me o disseste e eu em ti acredito, a vida inteira e para lá dos tempos.
Há quinze anos ela começou a perder a capacidade de ver, sem nunca perder a capacidade de sorrir, sem nunca perder a capacidade de sonhar.
Hoje, hoje, quinze anos depois, como que por milagre das mãos mágicas de um homem bom, ela voltou a ver a luz que trespassava as belas cortinas do grande e mágico salão.
Vou fazer chegar-lhe este texto, e se ela não o quiser ler vou obrigá-la, porque sei que agora ela ela o vai conseguir ler.
O que ela não sabe, só o vai saber agora, é que foi por ela que aqui cheguei.
E, fui.
Foi nela que pensei, em primeiro lugar, quando cruzei aquela linha de chegada, aquela porta que se abriu lenta e suavemente e que me levou àquele lugar, que só existe no seu coração e que a chama sempre que a noite cai.
Finalmente, tal como no seu sonho, escutei aquela música, daquele piano, que tocava atrás de mim.
E, guardei-a no meu coração.
Para sempre.
Nem um milhão de anos apagará a minha maratona.
Os sonhos não se apagam.
Jamais se apagam.
Entrámos no quilómetro 42!