O QUILÓMETRO 32 - EXORCIZAR A NEGRITUDE - (DIA 89 DA MARATONA)
Prazer.
Prazeres há muitos, seu palerma, diria Vasco Santana, no filme, se soubesse o que eu sei hoje.
Uma das coisas que mais gosto de fazer, mais prazer me dá é correr.
A outra é escrever.
Correr dá-me liberdade, permite-me ser apenas eu e ser feliz.
Escrever exorciza-me a negritude que, por vezes, me invade.
Dois actos, uma liturgia.
Gostava de escrever mais, mas a minha corrida, no último ano e no início deste tem tido imensas pedras no caminho, não as suficientes para construir o tal castelo.
Nem um Super-Homem é sempre o Super-Homem, basta ver quando tira a capa.
Começámos a corrida deste ano, ainda vamos no princípio e quase nada mudou, a não ser o calendário.
Não comi as doze passas, na mudança do ano, algo que já deixei de fazer há alguns anos, em primeiro lugar porque não gosto de passas comidas assim à bruta, depois porque não acredito em coisas dessas.
Gosto de sultanas com mel.
Há um ano, em vez de comer as doze passas decidi correr a maratona.
Este ano, nem isso, não decidi nada. Tudo o que me acontecer irá acontecer porque tem que acontecer. Já não tenho estômago para comer passas por imposição.
Este é o primeiro quilómetro deste novo ano. Doze meses.
Faltam dez, para acabar esta maratona, neste blog, que me é tão especial, tão meu, tão único.
Aqui, sou eu, mais do que em qualquer outro lugar.
Se há algo em mim que gosto, gostar é diferente de ter prazer, essa coisa é levar até ao fim aquilo com que me comprometo.
Foi assim em Berlim. É assim há uma carrada de tempo.
Assim será esta saga, até ao fim, já faltou mais, faltam os tais doze quilómetros para chegar aso quarenta e dois. Doze quilómetros de escrita, como quantos mesmos faltam para voltarmos a virar o calendário e a acreditar que o mundo corre ao nosso lado.
Depois, independentemente daquilo que me possa acontecer irei escrever um livro.
Sem objectivos comerciais, sem querer parecer escritor, sem querer o que quer que seja senão ser eu mesmo, como o fui e serei toda a vida.
Um livro diferente dos que já escrevi, um livro meu.
Entre os dias, este ano já corri uma meia dúzia de vezes, não destoando do habitual.
Voltei a treinar Muay Thai, um ano depois de ter parado, por causa da maratona, e por força das saudades daquela família, onde me sinto querido e acarinhado e por força dos quilos que ganhei desde Setembro.
Iniciei-me, desta forma, na gastronomia do exercício, criei um novo parto, a entremeada de desporto, Muay Thai às segundas, corrida às terças, e assim sucessivamente, dia sim, dia não. Ao fim de semana não treino. Em um desses dois dias vou namorar.
Pego na mão dela e vamos caminhar para o passeio ribeirinho, que o rio continua lindo. Depois descanso.
Acaba por ser um treino, porque caminhamos oito quilómetros, mas é mais do que isso, é um momento exclusivo. Afecto, amor.
Só que, os treinos e as corridas, não funcionam apenas para me manter activo, feliz, eles servem, sobretudo, para segurar a auto-estima, para que ela não venha por aí abaixo porque, garanto, quando ela cai é extremamente difícil voltar a vir cá a cima.
Resiliência, foi o que me ensinou Berlim.
É uma palavra feia, mas cheia de força.
Aprendi a conhecê-la no ano passado, antes, durante e depois da maratona.
A maratona de Berlim teve várias consequências. Ensinou-me outras coisas sobre mim próprio.
As boas, tem vossa excelência lido por aqui, as menos boas reservo-as, na sua maiora.
Uma delas, por incrível que pareça foi retirar-me o prazer de correr. Dessa eu não estava à espera.
Sobrecarga física e emocional. Obrigação.
Correr uma maratona é personificar a metáfora da nossa própria vida. É mesmo.
Não é uma prova de corrida.
Para mim não é, por isso, dificilmente, irei correr outra. Vivi essa catarse, chegou-me.
Admiro que gosta de correr maratonas, pelo prazer de correr, mas admiro mesmo.
Eu não tive esse prazer, apenas luta, luta titânica, uma batalha contra mim próprio e contra os quilómetros, lentos, lentos e lentos. Foi assim que quis que fosse.
Desistir era olhar-me ao espelho e ver um homem fraco.
Fui, fomos, até ao fim.
Mas gosto de correr e irei correr até que o corpo me obrigue a parar.
Voltando à terra,
a escrita faz-me sentir outro, não faz sentido não escrever todos os dias, só que é isso que acontece e não tem sido por falta de tempo, infelizmente. Tenho tido todo o tempo do mundo, infelizmente.
Não sei se acontece a mais gente, mas quando sinto em baixo, quando as coisas não me aparecem, nem parecem como eu quero, às vezes basta um telefonema desanimador, perco a vontade, a vontade de correr, a vontade de escrever, a vontade de fazer as coisas que mais prazer me dão.
Bicho estranho, o ser humano, não me bastava ser bicho do mato.
Ando para aqui às voltas, dia-após-dia, à procura da meta, de uma meta que não se consegue ver quando estamos no início da corrida, por fica muito longe.
À medida que vamos correndo e gastando os quilómetros a meta continua invisível, ela só começa a vislumbrar-se no último quilómetro, mas para isso é preciso lá chegar.
É preciso ter força, ter forças.
Ter pernas e pulmões, alma e coragem, paciência e uma mão apertada, agarrada à nossa.
Resiliência,
independentemente daquilo que me possa acontecer irei escrever um livro.
Vou começar hoje.
Depois vou treinar Muay Thai.
Exorcizar a negritude.
Antes disso vou correr.
Basta-me ser feliz durante essa janela de tempo.
Amanhã começa tudo outra vez.
Entrámos no quilómetro 33!