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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

05.06.17

LEVEI OS PAIS AO PARQUE INFANTIL


The Cat Runner

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O meu domingo foi especial.

Levei os meus pais a uma corrida.

Foi, aos 65 e 68 anos, a sua primeira vez, e a minha, também.

Uma das mais belas manhãs dos meus domingos, e como os meus domingos são belos, mesmo aqueles que teimam em fazer-me cara de mau. Às vezes acontece-me o domingo fazer-me cara de mau, que não há dias perfeitos.

Nem eu sou perfeito, eu atraso-me, em tudo, até mesmo enquanto corro.

Mas, nunca me atraso quando vou correr, isso nunca.

Às sete e meia da manhã estava à porta de casa dos meus pais.

O meu filho disse que queria ir, o meu irmão também disse, mas eles são tão, mas tão parecidos, que até nesta falta de afecto, porque esta foi uma prova de afecto, eles falham da mesma foram.

Irrito-me, quando os meus não dão o valor devido às coisas, ao casamento, aos pais, aos momentos únicos.

Depois, tudo passa.

Eles ficaram a dormir, bons sonhos a ambos.

Foi a única coisa que me irritou, nesta especial manhã de domingo.

Passou-me rápido, assim que os meus pais entraram no carro.

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Fizemo-nos à estrada, parámos na Casa das Queijadas, um café e um Pastel de Nata, que Canha ficava a meia hora de distância.

Por causa das corridas, pondero mudar de casa, construir uma, com uma adega enorme. É que à conta das corridas começo a não ter onde guardar tanta garrafa de vinho, nem mesmo as medalhas e os dorsais.

Não posso ser mais padrinho de nenhuma corrida, sob pena de ter que esvaziar a garrafeira, à mesa, para guardar novas garrafas.

Todos os males fossem esses.

Seguimos viagem pela estrada de Pegões, virámos à esquerda, logo a seguir ao antigo posto emissor do Rádio Clube.

Canha fica uns poucos quilómetros mais à frente.

A Provedora da Santa Casa da Misericórdia lançou-me o desafio; ser o padrinho da “Corrida pela Arte”. Eu aceitei. Não se diz não a uma senhora.

Honorina Silvestre é uma mulher com ideias. Sonha construir, em Canha, uma residência para reformados poderem passar férias com os seus netos, sonha que o mundo conheça a gastronomia da terra, os valados, os riachos, as vinhas, sonha construir uma casa para guardar mais de mil quadros originais, de arte naif.

A corrida foi com esse propósito, lançar a primeira pedra desse projecto.

Enquanto fui correr os dez quilómetros, os meus pais foram caminhar os oito.

Convidei o Marco para ir connosco, foi lá ter, levou a sua Alice, uma princesa linda, como o são as princesas.

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Partimos juntos, cedo percebi que ele quase ia a passo.

Pedi-lhe que fosse.

Foi, a custo, porque ele estava ali também por mim.

Foi quando o vi partir, passo largo, que me detive.

Este domingo fiz uma corrida de reflexão.

Ainda estou a reflectir se deixo de correr.

Foi depois do Marco partir para um ritmo mais elevado que este céu escuro voltou a pairar sobre mim, desistir. Eu nunca desisti de nada, obrigado.

Percebi, ao ver o Marco acelerar, que aquilo que eu faço, actualmente, é arrastar-me. Não consegui imprimir nem mais um passo no meu trote.

As pernas há muito que pesam toneladas, as dores há muito que estão no limite do suportável, sem que encontre explicação.

O Marco foi e eu fiz a minha corrida.

No meio da Lezíria, subindo os socalcos da charneca, atravessando o riacho com água pelo joelho, admirando tudo em redor.

Apreciando a beleza, mas cada vez mais desiludido comigo.

Ao longe, em sentido contrário, vejo o Marco.

Terminou a corrida em menos de uma hora e decidiu vir puxar-me até ao fim.

Ele viu que eu fiz uma hora e três, ele viu que eu estava bem ao nível do cárdio, ele ainda hoje deve estar para acreditar no factor que me impede de continuar a ser tão feliz, como até aqui tenho sido, as pernas e as dores nas pernas.

Não são normais. Duram há muito tempo, tempo de mais.

Tirou a fita molhada da cabeça e deu-me "toma,a juda, a sério"...

"Marco, não preciso, vou bem, não consigo é puxar as pernas, de resto estou bem", e estava, apesar de ter vomitado ao quilómetro seis, coisas da noite anterior, nada de especial.

Percebi a preocupação genunína do Marco comigo.

Descansei-o.

"Já fizeste muito, vamos lá até ao fim, devagar", enquanto lhe perguntava constantemente se faltava muito para o fim.

O Marco é um daqueles seres humanos a quem olhamos nos olhos e vimos claro e definitivo, não engana, é um homem-bom.

E, é um pai daqueles que qualquer filha queria ter, adoro ver as suas fotos e da sua Alice, só os dois, cúmplices, nos sorrisos, nos abraços.

Alice é linda, conheci-a no domingo. Tão bonita que ficou ao cuidado de uma amiga comum, enquanto corremos, e já não queria regressar, Alice, comprovei-o, adora brincar e é feliz.

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Quando cortámos a meta, Alice mal queria vir connosco, não fosse o Marco tê-la convencido com uma bela sopa caramela e ainda hoje ali estaria a brincar, junto à entrada da escola, onde as crianças penduram sonhos na vedação, para que todos os vejam.

Alice brinca e sorri, como qualquer menina feliz.

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Canha é terra de ninguém, fica no concelho do Montijo, perdeu os jovens, a força activa, está ali, sozinha, bem perto de nós.

Interior, Ribatejo, velhos, sol, calor, é este o país que construimos e que vamos deixar a Alice, o país que não quer cuidar dos seus, embora haja bolsas resistentes como a Santa Casa da Misericórdia de Canha, que que, através da arte - e o desporto é arte - mudar o estado de coisas.

“Vamos buscar os teus pais...”, disse-me Marco.

Eu estava a ficar preocupado, tinham passado quase duas horas, a dona Adelaide e o senhor Helder não havia maneira de aparecer.

Mas, eu acho que o que o Marco queria mesmo era correr mais um bocadinho, embora a intenção fosse ir buscar os meus pais, juntar o útil ao agradável, que dez quilómetros não chegam para quem fez cem no fim de semana anterior..

Um quilómetro e tal depois sentámo-nos à sombra de uma oliveira, num entroncamento, no meio do campo.

Inspirámos aquele cheiro da Lezíria bonita, que só nós conhecemos, trocámos palavras com que passava, quando, lá ao fundo, avistamos um ponto cor de rosa.

“Vem ali a minha mãe, mas não vejo o meu pai, vejo, vem lá ao fundo, em cima, de azul”.

Eu estava preocupado, porque o meu pai já perdeu a conta ao número de tumores, ataques de coração, operações e coisas dessas.

A minha mãe está, há anos, a perder a visão, porque não temos dinheiro para consultar os médicos que fazem milagres, porque o dinheiro comanda o sonho, neste caso a realidade.

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Quer um, quer outro, são o meu exemplo de vida, da forma como nos devemos e podemos agarrar à vida.

“Que bom, ter um filho que nos vem buscar, preocupado”, disse uma das caminhantes que por nós passou.

"É a minha obrigação", respondi, sorrindo.

A vida teimou, toda a vida, em pregar partidas aos meus pais.

Mas, eles amam a vida, e enquanto forem vivos, a vida viverá com eles, que queira, quer não.

Eu adorei pregar a partida aos meus pais, quando os convidei para virem passar uma manhã comigo, a fazer uma das coisas que mais adoro, a correr, mas que está em risco de terminar porque estou prestes a desistir.

Os meus pais são um milagre da vida.

O milagre da minha vida.

Quis, por isso, prestar a minha homenagem e eles morderam o isco e foram comigo.

Por isso eu acredito em milagres, acredito que um destes dias as minhas pernas não serão mais o meu maior obstáculo, que me arrasta para baixo, me puxa e me quer roubar o sorriso, a vontade.

Ainda acredito, embora cada vez menos.

Enquanto os meus pais existirem sorrirei sempre, por maiores que sejam as minhas dores, até as dores do amor.

Adorei pregar-lhes esta partida, e eles a mim.

O Marco, disse-me, adorou conhecer os meus pais.

Nós adorámos conhecer a bela Alice.

No fim, comemos uma sopa caramela, igual à que a Alice comeu, mais uma sandes de porco assado no espeto, e a seguir ao café, seguimos viagem de regresso a casa.

Com o porta-bagagens cheio de garrafas de vinho, o coração cheio de amor, os olhos cheios de alegria.

Nesta manhã de domingo, tantos anos, tanta vida depois, voltamos a ser só pai, mãe e filho. Amor.

Vi-os sorrir muito. Há muito que não te via sorri assim, mãe. Pai, nunca mais vás caminhar com ténis de futsal, no meio da lezíria.

Naquele momento, quando pela primeira vez na vida cortaram a meta, naquela manhã inteira, voltámos a ser só nós, pai, mãe, filho, amor.

Não é qualquer um que passa a meta, nem na vida, nem na corrida.

Por esta altura, Alice já dormia a sesta, estou certo.

Por esta altura tínhamos, os quatro, o maior de todos os sorrisos espelhado no rosto.

 

( Foi este, o momento)

(TODAS AS FOTOS E VÍDEOS SÃO DO AUTOR, TIRADAS E GRAVADOS COM HUAWEI P10)