HOJE FAÇO CINQUENTA ANOS
Hoje faço cinquenta anos.
Assim mesmo, por extenso.
Acho que tem sido assim a minha vida, extensa, intensa, cruel e bonita.
Dez mais dez mais dez mais dez mais dez.
Cinquenta anos que só podem ser escritos por extenso, não há atalhos.
A vida e os seus próprios caminhos.
Como nas maratonas;
quando dividimos a distância total, a vida, por pequenas etapas, pequenas metas, os anos, que não páram, como a corrida e somamos tudo no final, quando cruzamos a última linha.
A meta.
Parece uma fatalidade.
E, talvez seja.
Para mim, que hoje faço cinquenta anos, assim mesmo, por extenso, foi uma fatalidade, que me obrigou a fechar-me em mim próprio.
Um fantasma, que me atormenta, um dia atrás do outro.
Foi assim que vivi no último ano, eu, frustrado comigo, eu, que sentia tantas saudades de mim.
Eu sinto saudades de mim.
Estou perfeitamente consciente que sería relativizar tudo se dissesse que a minha inquietação derivava do simples facto de não me sentir com cinquenta anos.
Em nenhum aspecto, em nenhum momento.
Também era reduzir ao óbvio, tentar convencer-me que a vida que vivemos só a vivemos uma única vez, em fracções de segundos e, portanto, toca a todos. Era simples e eu gosto de coisas simples, não neste caso. É um caso sério, este, o meu.
Talvez seja qualquer coisa inédita, isto que está a acontecer neste instante:
está a ler um texto sobre um tipo que chega aos cinquenta, no dia em que ele enfrenta todas as sombras do mundo, no dia em que começa a ser um homem a caminhar para o seu final.
Eu, nunca tinha tido a experiência de ler sobre esta passagem, em tempo real.
Arrisquei, arrisco, e continuo.
Ninguém vive o mesmo momento duas vezes.
Não há passado, nem presente, apenas há o agora.
Dizemos todos isso, quando chegamos aos cinquenta, aos quarenta, aos trinta, vá.
Mas, os cinquenta, caro amigo ou amiga, os cinquenta, a mim, têm-me feito sentir como um boneco em cima de um touro grande, enquanto uma única mão tenta segurar-me e proteger-me dos saltos loucos e violentos da besta.
A multidão aplaudia, a escorrer finos traços de sangue pelos poros.
Eu estava prestes a cair.
Faltava-me a força, contra a força bruta.
O tempo.
O relógio.
O passar.
O já não voltar.
Já não se volta mais.
Força bruta, como o touro grande e, eu, quase a cair.
Mantive esta ousadia insana - dez mais dez mais dez mais dez mais dez - exclusivamente dentro de mim, não a contei, não falei sobre ela com ninguém, nem mesmo com o meu núcleo mais restricto, os que me trouxeram até aqui. A rede invisível.
Meio-por-meio, cinquenta, assim mesmo, por extenso.
Quis ser dono do meu próprio tormento, viver com os meus próprios fantasmas, lutar contra a minha própria ansiedade e deixar os outros absorvidos naquilo que é seu. Quis chegar aqui com a mesma dignidade que faz de nós homens sós, quando a solidão é aquilo que entendemos como nossa.
Estou aqui a contar-lhe, em primeira mão, o que é chegar aos cinquenta anos de vida.
É relativa, a importância de tudo isto, ou porque acha que só os outros têm cinquenta anos ou porque já lá chegou.
Mas, não, para mim. É aqui, aqui mesmo, a escrever, que exorcizo tudo o que me agarra, impede, perturba.
E, tudo mudou, porque tudo muda no presente, neste segundo, porque o passado e o futuro são apenas momentos transitórios.
Era terça feira de manhã.
A primeira coisa que faço quando acordo é pegar no smartphone, espreitar os push-ups das notícias, correr as minhas redes sociais, publicar as minhas rubricas e...
Fico mais um bocado na cama. Como que a convencer-me que preciso ir viver e a vida corre quase sempre do lado de fora de nós.
Só depois me ligo ao dia.
Sou primeiro digital, só depois analógico.
Nessa manhã, quando acordei, peguei no telemóvel mas, imediata e estranhamente, voltei a colocá-lo onde antes o tinha tirado.
Desta única vez fui, coisa rara, primeiro analógico e só depois digital.
Estava com vontade de sorrir para mim.
E, sorri. Fiquei ali, deitado, a sorrir.
Só me faltou o abraço.
Falta-nos sempre uma coisa qualquer.
Epifania.
Tomada de consciência.
Os meus fantasmas privados, que tanto me atormentavam, ali despojados, desprezados, junto ao telemóvel.
Estavam mortos.
Revelador, tétrico não, que estes fantasmas, os meus, até eram simpáticos, embora brutais, como um torturador de almas e afectos.
Só que não gosto de ser atormentado.
Foi há duas semanas, numa terça feira de manhã.
Durante estas duas semanas tive tempo para treinar até chegar ao fim desta corrida.
Até chegar aqui.
Nessa terça feira de manhã ficou claro, em mim, que a corrida recomeça neste preciso momento, hoje.
Foi um rasgo de magia.
Nada mais que isso.
Faço cinquenta anos e já matei os meus fantasmas:
Aqui chegado ficou mais límpido e perceptível, o horizonte à minha frente.
Queremos mudar de vida, mudemos.
O nosso filho ou a nossa filha entra-nos pela sala e diz-nos que vai casar ou que está grávida ou que vai ser pai, festejemos.
Se ainda tivermos aqueles que amamos connosco, celebremos todos os dias com eles.
Se queremos ser felizes, porque não sabemos se chegamos ao dobro da idade que faço hoje, embora seja uma probabilidade, afastemos de nós todos aqueles que nos incutem cargas negativas.
Se temos amigos de sempre, façamos com que saibam que os estimamos.
Se o carro se avariar, há-de ser arranjado.
Se encontrar uma pedra no caminho, fume-a, deixe lá os castelos em paz.
Aos cinquenta anos somos nós!
É a grande lição que recebi de mim próprio.
Há um fim, lá à frente.
O tempo não corre.
O relógio continua a fazer com que os ponteiros rodem, doidos, impiedosos, cada vez mais rápidos e pensamos na morte.
Na nossa, na dos nossos, é isso que, na verdade, deprime, puxa para baixo, suga, impede de ver o dia nascer.
É esse é o ponto-chave.
Foi esse o ponto chave.
Encaremo-lo de frente, ou não tivesse eu já morto os fantasmas, que se diluíram no caminho entre o meu quarto e a cozinha, naquela manhã de terça feira, antes do pequeno almoço.
Nestas duas últimas semanas, que antecederam o dia de hoje, perdi duas pessoas, com quem tinha profundos laços afectivos, desde a minha infância.
Morreram!
Uma delas foi como uma segunda mãe.
A outra foi a última pessoa a desejar-me felicidades, antes de entrar na igreja, no dia em que casei com o meu grande amor.
E, o Artur, o Pitas, a avó, os meus avôs, tive três, a avó velhinha, o Renato, o meu irmão bebé e todos os outros que morreram, retirando-me a possibilidade de lhes agradecer os parabéns. Agradeço-lhes a vida.
Os meus mortos.
A morte. Miserável, que não nos deixas.
Não nos pode deixar, ela faz parte da vida.
Não saber isso é envelhecer e morrer por dentro.
Era isso que, na verdade, estava subjacente à minha revolta, quando criava as imagens do que está para vir, do que vou deixar para trás.
Caraças, quanto tempo, é muito tempo!
Olho as minhas mãos, as minhas pernas, os meus braços, cinquenta anos, e o coração. Vivo um momento privado e irrepetível, como qualquer momento. E, gosto.
Afago-me.
Imagino o meu coração que bate durante cinquenta longos anos, que passaram a uma velocidade mentirosa, por mim?
O caminho, inexorável, até ao fim.
Acho que matei morte.
Nós matamos a morte quando fazemos cinquenta anos.
Meu caro(a), a equação é a mais simples possível: se tens cinquenta anos assume-os.
Chegaste à idade adulta.
Não fosse a idade adulta a idade da eterna inocência.
Hoje, assumidamente, sou um cinquentão.
Só não me chamem "quinquagenário". Isso não.
A ver se aproveito os próximos cinquenta.
Ainda quero ir correr a meia-maratona da Muralha da China, ainda quero fazer uma Spartan Race, ainda quero continua a treinar Muay Thai, ainda quero continuar a correr as minhas corridas, ainda quero evoluir profissionalmente, ainda quero começar uma carreira, sim, começar uma carreira aos cinquenta anos.
Ainda quero escrever muito (comecei a escrever o meu primeiro romance, o meu terceiro livro e, imagine onde começa: no quarto secreto de Salazar, apesar de ser uma espécie de auto-biografia, uma espécie, porque um gajo de cinquenta anos ainda só tem a sua própria história a metade),.
Ainda quero aprender, ainda quero ensinar, ainda quero amar, ainda quero rir, quero rir muito, ainda quero ver os sorrisos dos outros, os que ainda tenho comigo.
Ainda quero ter um cão, ainda quero abraçar, ainda quero dar, ainda quero viajar, ainda quero ler, ainda quero ver, ainda quero escutar e, não nego, até gostava que me saísse o Euromilhões.
Ontem, fiz a minha última corrida, que encerrou a década dos 40.
Hoje irei fazer a primeira dos cinquenta, porque não faz qualquer sentido ser de outra forma.
Lou Holtz, que só conheço do Google, tem uma frase que eu cortei a meio, em proveito próprio e que diz assim:
"Neste mundo, ou você está crescendo ou está morrendo...".
Hoje faço cinquenta anos.
Hoje deixei todos os meus fantasmas pelo caminho.
Sou um homem feliz.
(Parabéns, mamã, parabéns, papá, amo-vos, eternamente)
(Obrigado, Carla, Rodrigo, Maria e Ricardo, vocês serão sempre a minha rede invisível)
( Se eu fosse uma música, hoje, era esta)