EU, EX - ESTAGIÁRIO, ME CONFESSO
(...continuação do texto anterior...)
Sexta feira.
Finalmente um fim de semana em casa.
Que o dia passe rápido que preciso de me desligar do mundo.
Olho para a agenda, parece-me um dia tranquilo, Marcelo fala, fala sempre, Costa também e Cristiano Ronaldo vai ser nome de aeroporto, consulto as várias equipas da redacção, verificamos directos, troco impressões sobre o alinhamento com a apresentadora, começo a alinhar o primeiro jornal que ia editar, o das dezasseis, enquanto a apresentadora, trata da maquilhagem, para depois se dedicar a escrita dos pivots, ajudando-me a ultimar o alinhamento.
Olho para o relógio, falta menos de um quarto de hora, começo a sentir ansiedade, apelo à memória recente, dos últimos dias, e penso; "vais conseguir, deixa-te de merdas, hoje é tranquilo".
Era o que eu estava mesmo a precisar, uma sexta feira tranquila, depois de uma semana e de um fim de semana totalmente alucinantes.
Estava tudo a correr tão bem que já só faltavam dois noticiários para saltar para fora da bolha e respirar ar puro.
Começámos o jornal, metemos ali dois directos, a coisa correu tranquilamente.
Enquanto isso já tinha alinhado o jornal das 17 e o das 18.
É assim, está um jornal no ar mas há outro um minuto depois desse acabar.
As coisas não aparecem na televisão por milagre, alguém tem que as fazer.
Estávamos em velocidade de cruzeiro.
A régie estranhamente tranquila.
A escuridão da régie, cortada por luzes quentes, estrategicamente colocadas e pela luz dos ecrãs, convida a alguma tranquilidade, estranha tranquilidade, intimista, que acaba no segundo a seguir, quando tudo se transforma, quando o céu é inferno, onde há sempre um deus e um diabo.
E um mediador.
Enquanto todos deixávamos o avião voar em velocidade de cruzeiro a minha preocupação era apenas uma, fazer contas ao tempo, fazer o intervalo e fechar o jornal.
Seguir para o próximo aeroporto.
Aterrar, levantar outra vez, até ao aeroporto final, até a missão ficar cumprida.
Estranha tranquilidade, que acaba no segundo a seguir.
Entre o final de um jornal e o início do outro dista um minuto.
Sessenta segundos.
Um minuto de respiração suspensa, sei lá porquê.
O avião vai levantar vôo e isso mete-nos sempre em sentido.
Estamos a falar de um canal de televisão que só faz informação, com tudo o que lhe está inerente..
Digo à apresentadora que pode ver os destaques que estão prontos, que vamos para intervalo e que está tudo tranquilo.
Nesse instante alguém, lá à frente, diz com voz alta: tiroteio em Munique!
Depois de tantos e intensos dias, depois de tantos e intensos anos, eu sabia o que estava para vir.
Todos nós sabiamos.
Cinco da tarde.
Fomos até quase às oito e meia da noite, sem parar.
Fizemos leads, segundo-a-segundo, à medida que as agências internacionais soltavam informação confirmada.
Colocámos imagens no ar, com o cuidado devido para não mostrar imagens chocantes, porque todos sabiam o que se estava a passar, é aquela questão dos muitos anos a virar frangos, ainda assim fomos surpreendidos com um corpo, deitado no chão, envolto em sangue.
Foi a uma só voz, em segundos estava fora do ar.
Fomos apanhados por uma das televisões internacionais que nós estávamos a picar, mas corrigimos em segundos.
Nós chegámos a um ponto, em que as decisões a tomar, as interpelações e as respostas a dar eram tantas, que a tal hierarquia de que existe numa régie, em termos de tarefas individuais e em grupo, começou a funcionar sózinha.
Quem nunca fez televisão, a não ser nas redes sociais ou no metro ou nos cafés é que não sabe como tudo se passa, não tem que saber, sequer.
O realizador realizava, a assistente de realização fazia a ligação entre o editor, o realizador e as suas próprias tarefas, o áudio estava tranquilo, a iluminação também, a misturadora mais atarefada, cada qual a fazer o seu, para o todo.
Sim, durante quase três horas e meia alucinantes fomos um todo.
O avião deixava de estar em cruise control para passar a estar em crise control.
A rota planeada estava rasgada, o piloto automático não funcionava, era tudo à unha.
O avião voava à vista, em função da cadência dos acontecimentos.
A tripulação estava focadíssima, concentrada.
Todos os nossos sentidos estavam colocados na missão.
Mas a tensão era brutal, este avião estava a ser totalmente colocado à prova, qual a sua capacidade para voar.
Um dos nossos assistentes de estúdio chegou a ir comprar comida ao bar.
A apresentadora garantia-nos imensa segurança, no fim da cadeia que liga uma equipa de televisão é último elo.
Por ali estávamos safos.
O convidado já estava em estúdio, havia telefonemas em linha, ganhávamos tempo à realidade, para decidir para onde voar a seguir.
Poucos segundos, que em televisão o tempo mede-se em segundos e/ou frames.
Tentei durante todo o tempo transmitir-lhe serenidade, à apresentadora, se ela nos transmitia segurança nós tínhamos que fazer exactamente o mesmo, cheguei ao ponto de estarem treze pessoas - contei-as - dentro da régie, havia conversas em volume alto, cruzadas, à minha volta, e eu berrar para que se calassem, para logo de seguida ligar o botão e suavemente dizer-lhe: "Tens um telefonema para lançar", ao que anuiu ela com a cabeça.
"Podem voltar a falar, obrigado".
Aquelas conversas eram obrigatórias, todos estavam a trabalhar para o mesmo, mas a última pessoa a sentir toda aquela pressão é que está em frente à câmara.
Isso nunca.
É simples de imaginar.
Imagine que está a boiar nas ondas, tranquilamente.
Agora, imagine que em vez de uma de cada vez, de repente, chegam ondas atrás de ondas e em vez de boiar já está enrolado(a) dentro de água.
Tem duas hipóteses, ou morre afogado ou ganha calma e toma decisões.
Foi quando dei conta, aliás, confirmei, porque já desconfiava, que respondo bem ao stress.
Sim, porque quando saio dali daquele cockpit, entro no meu carro, regresso à terra (com dificuldade) e não há trânsito que me incomode, durante a meia hora que faço até casa.
E já não me sinto estagiário, mas a confissão mantém a validade.
Agora sinto-me alguém que está a começar, a dar os primeiros passos.
Como se tivesse estado a fazer provas de admissão a uma força especial.
Mal ou bem passei no teste, com a ajuda dos camaradas de armas.
Hoje tive, quase vinte e um anos depois, uma das maiores provas de fogo da minha carreira, hoje mesmo.
Mais, muito mais do que naquela noite em que foi preso um ex-primeiro ministro e eu estava em directo, muito mais que nessa noite, de longe.
Vi, verdadeiramente, e vivi, literalmente, dentro das entranhas da televisão, a decisão ao segundo, os ecrãs com tanta informação que fizeram o coração bater quase a duzentos, o lead que vai com 4 pontos em vez de 2 pontos antes da frase, mas que eu li e reli antes, e que alguém menos informado irá gozar nas redes sociais, o intervalo que tinha que fazer, mas não devia ter feito, o telefonema que conseguimos colocar no ar e que festejámos como um golo, são assim as entranhas da televisão.
São mais ainda, que não deixo aqui.
Coordenar uma emissão de televisão, nestes termos, sem rede, com tudo a acontecer com uma cadência irrespirável, com a informação a chegar como se fosse chuva forte, não é fácil.
Tomar a decisão de colocar o que quer que seja no ar, nesta dinâmica, é assustador, digo-vos.
Pode ser a decisão errada.
Pode ser a melhor decisão.
Tem que se decidir.
Disso não se consegue fugir.
É para isso que ali estamos.
Algumas vezes perguntei a opinião de quem me rodeava, interrompendo as suas tarefas, várias vezes, e escutei-os.
E, decidi.
E, chegou ao fim.
Cumprimentei um a um e agradeci a ajuda um a um, não porque tivesse sido "eu", mas porque era eu quem estava mais alíviado.
Aquilo tinha chegado ao fim, por agora.
Munique continuou noite dentro.
Agora tenho as pernas esticadas, em cima da mesa de centro, quadrada, porque acredito que o mundo ainda é redondo.
Estou, finalmente, de fim de semana, que de tragédias está o inferno cheio.
Agora vou ver as notícias da meia noite.
É a minha senhora que as apresenta.
Porque isto não é como começa é como acaba.
Saudações,
do ex-estagiário...