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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

23.05.16

ERVAS AROMÁTICAS, TERNURA E SAUDADE!


The Cat Runner

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A casa da avó continua igual.

A laranjeira continua a precisar que alguém suba ao escadote, de tempos a tempos,  para apanhar as laranjas, como faziamos aos fins de semana, os limões continuam a encher de perfume as nossas mãos, quando os colhemos, as rosas continuam a parecer que passaram por um filtro de saturação do Instagram, lindas, simples, como tudo ali, naqueles metros quadrados.

Havemos de trazer pedacinhos de madeira e pinhas e lenha e fósforos queimados, para arder na nossa lareira. Ainda hoje te pergunto onde é que ela arranjava aquilo tudo e tu respondes-me, como sempre, que não fazes ideia.

Ontem, quando lá foste, não te acompanhei. A avó já não nos abre a porta, mas a casa continua igual, sem ela. Eu é que não costumava apanhar laranjas, só no início, lembras-te?

Por isso não fui.

Os cheiros, as imagens, os sabores, são-me emprestados, na verdade não são meus.

A laranjeira, o limoeiro, a roseira, os alecrins e tudo o resto que cheira a nós, a ela, à planície, ao sol, ao nosso campo raso de água.

 Eu sei isto tudo porque quando chegaste a casa trazias contigo todos esses perfumes de uma vida inteira, colados com saudade.

Deitaste-me a adivinhar, num jogo-surpresa, para o qual eu não estava preparado.

Adivinhei a hortelã.

Essa era fácil, conheces-me tão bem que sabes que a primeira é sempre fácil.

Começaste a ficar curiosa, quando adivinhei a hortelã, ainda assim, confessa.

A hortelã do quintal da avó tem um cheiro único, por isso não era nada fácil.

O  alecrim dá no mesmo.

O alecrim do quintal da avó cheira diferente.

Confesso que adivinhei, mais pelo aspecto, que não sou parvo, apenas maluco, do que pelo perfume que se misturava.

Só depois associei tudo.

E, quando adivinheio o poejo?!

Diz lá, não ficaste admirada?

Logo, um tipo como eu!

Conheces-me como ninguém, melhor do que a avó conhecia as ervas aromáticas, as frutas das árvores, o cantar dos pássaros, o nascer e o pôr-do-sol.

Conheces-me melhor do que eu me conheço, e olha que já me conheço há imenso tempo, tanto que me fartei de mim mesmo, às vezes farto-me de mim. Não acredito que não te fartes de mim, às vezes!

Também não sei se te dás conta que conheço-te, também, como mais ninguém, se calhar como tu não te conheces.

Talvez não te dês conta, mas acreditas em mim, porque eu acredito em ti.

Ontem, quando chegaste a casa e me colocaste todas aquelas perguntas sobre furtos, ervas, árvores e saudades, juro que enquanto te escutava, uma pergunta se formava dentro da minha cabeça.

Era óbiva. Era óbvio.

Foi a primeira vez que foste a casa da avó, apanhar laranjas e flores e ervas e amor, depois de ela ter fechado a porta, tranquila e suavemente.

Foi um momento, sei eu, só teu e dela.

Mal entraste em casa, na nossa casa, senti que vinhas feliz, via-te no sorriso, no olhar, nas perguntas que nunca me fizeste sobre alecrins, poejos e hortelãs.

Nas histórias das laranjas, e dos miúdos pequenos empoleirados no escadote, nas histórias dos gatos que saltavam o muro, das vizinhas que ficaram mais sós.

“Olha, sente, todo o cheiro do campo!”, disseste-me.

Estive para te responder que estava a sentir o cheiro do amor inteiro, como o nosso, eterno, como esse campo que nós imaginamos, cheio de sol e sorrisos, que nos afaga quando estamos em tormento.

Era para te responder isso, mas não me saiu.

Era para te perguntar sobre a saudade, mas não me saiu.

“…E tive saudades dela”,

disseste, de repente, numa surpresa que eu aguardava, com todo o contra-senso que é uma supresa aguardada, como quando partimos, tranquila e serenamente.

Não sei se percebeste que fiquei com um nó na garganta, que me limitei a confirmar os perfumes e os odores da nossa vida, porque somos gente da planície e do campo que cheira bem, que não tive coragem de te falar da saudade, que quase não te olhei fundo.

Tu, há muito que me conheces. Tu, há muito que sabes que choro com facilidade, raramente em frente a ti. Foi por isso, eu sei que sabes, o meu silêncio foi por isso.

Também tenho saudades dela.

Mas sei, sei muito bem, que ela tem saudades tuas e que ainda não parou de sorrir, ternamente, como nos habituou este tempo, e no outro, e sempre.

Sei muito bem que foi por isso nunca perdeste o teu tímido sorriso, mesmo carregado de saudade.

Ontem, ontem cheirei, vi, vivi isso tudo, ali, na nossa cozinha, naquela pequena fracção de tempo, enquanto tiravas do saco a hortelã, o alecrim, o poejo, as laranjas e os limões e as rosas.

Desta vez não trouxeste as pinhas, os pauzinhos, os fósforos queimados, para fazer fogo na nossa lareira, porque a avó já não nos abre a porta, porque nós não sabemos sequer onde é que ela os ia apanhar. Só por isso, eu sei, meu amor.

Meu amor!

Surpreendi-te, ao dizer isto assim, para toda a gente ouvir?

Sabes que, como disse lá em cima, ou insinuei, em outra parte deste texto, sou maluco mas não sou parvo e sou sério, nestas coisas do coração, sobretudo.

Não se brinca com os afectos.

Então, vou surpreender-te outra vez:

Há 18 anos, quando entraste, vestida de branco, pela mão da tua mãe, na igreja onde sonhaste casar, eu pasmei. Nunca te tinha visto tão mais linda, como naquele fim de manhã.

Há 18 anos, quando saímos, já juntos, a tua na minha mão, pela porta daquela igreja, enquanto nos molhavam com chuva de arroz e flores, como manda a tradição, eu sussurrei-lhe ao ouvido:

“Avó, prometo tomar conta da sua menina para toda a vida”.

Ela olhou-me, de baixo para cima, com aquele olhar silencioso, abriu o sorriso, aquele sorriso permanente que ela tinha, passou-me a mão direita na cara, fez-me uma festa, em silêncio, como só ela sabia fazer e eu percebi que ela depositava em mim tudo o que faltava.

Ainda agora sinto a sua pele macia no meu rosto.

Ternura adoptada.

Tamanha responsabilidade a minha.

Tamanha tarefa a minha.

Meu amor, que o amor deve ser gritado sim, não sei se consegui, não sei se falhei, não sei, juro que não sei, ela me julgará.

Das coisas certas só tenho uma; a casa da avó continua igual.

Enquanto os cheiros do campo se espalharem  no ar, enquanto as laranjas continuarem laranjas e gordas, enquanto os limões continuarem amarelos e ácidos, enquanto o poejo, o alecrim e a hortelã cheirarem ao quintal dela, enquanto as unhas ficarem sujas de terra, enquanto a saudade se mantiver assim, bela e perfumada, enquanto isso acontecer eu continuarei a gritar o amor, para que ela consiga ouvi-lo, sem dificuldade alguma.

Das coisas certas é a única certeza que tenho.

Passaram 18 anos.

Só o tempo passa por nós.

Nada mais que isso, meu amor.