ERA UMA VEZ NA AMÉRICA (CONTRASTES)
Prometo ser rápido.
Ontem andei à vela.
Aquilo parece um avião em vez de um barco. Anda muito o sacana do Volvo 65. Quase voa.
Os tipos, lá dentro, são atletas de altíssima competição.
Dizia o Rafael Nadal, um dia, quando conversava com um destes velejadores, que eles são exactamente isso, atletas de alta competição e, espantado, dizia o seguinte, como é possível atletas como ele, como Ronaldo, como Messi, não tomarem banho, comerem comida hidratada e cozinhada em água a ferver, quase não dormirem durante uma série de dias seguidos. Nadal estava horrorizadamente espantado. Afinal ele tem nutricionista, psicólogo, treinador, etc.
Os velejadores da Volvo Ocean Race têm só o prazer, mais nada, no mar, porque em terra também são tratados como Nadal. Eles perdem muito peso, quando em competição. Gordura não há, por isso perdem massa magra - toda a gente sabe o que é, não é esparguete fininho -.
Ora bem, ontem eu e o Carlos Rodrigues fizémo-nos ao mar.
O incansável Rodrigo Moreira Rato, o media and yatch manager da VOR Lisbon meteu-nos no barco espanhol da Mapfre. E eu meti-o a trabalhar, que não há cá almoços grátis.
O único português neste espectáculo brutal é Renato Conde, ele pertence à equipa de terra da Mapfre. Ele é só o maior especialista em mastros na crew da VOR.
Sobre mastros falaremos mais tarde, mas garanto que aquilo não é só o que se vê.
A regata foi porreira, pá.
Enchemos a cabeça de adrenalina durante três horas, andámos em primeiro a regata toda, mas a sacana da vela tinha que enrolar. Morremos na praia. Ficámos em último. Dizia o americano do Boston Herald que ia connosco que Iker Martinez, o nosso skiper, tinha feito uma regata ao estilo Cristiano Ronaldo. Enquanto todos foram por um lado ele arriscou e foi por outro e ficou tão à frente que dentro do barco se ouviu: be cool, we have got plenty of time.
Voltando um pouco atrás, o Renato Conde é um dos maiores especialistas em mastros e em tudo o que diz respeito a vela.
O pai tem uns estaleiros navais e o irmão, Gil Conde, também é um nome importante mas, o Renato, aos meus olhos, tem sido injustiçado. Viva o futebol.
A sua humildade não lhe tem dado grande destaque, mas percebe-se que ainda vai dar muito que falar.
Costuma andar descalço, por opção.
Tal como a equipa sueca, que não andam descalças - as velejadoras - como o Renato, mas dão que falar.
O cor de rosa dá que falar.
São só mulheres na tripulação.
É a primeira equipa feminina nos últimos dez anos da Volvo.
E são todas muito giras, até mesmo as mais feias são giras.
Mas, o que gostei mesmo foi de ter pegado no pesado e grande troféu no fim da regata.
Simulei a minha própria vitória.
Posto isto:
- "Tu não és da televisão?"
O Fernando fez questão de colocar a sua dúvida em voz alta, em plena Race Village.
Ele reconheceu-me. E
Está aqui na América há sete anos. É de Sacavém. Trabalha nas limpezas.
Ganha mais do que eu e paga de renda de casa menos de metade do que eu pago em Portugal.
Aqui não há passos e os coelhos são animais estimados.
O Fernando é um tipo feliz.
Ele aponta para o braço, para a cor da pele, enquanto fala comigo.
- " A malta aqui é toda fixe, os portugueses são fixes. Só estranham quando eu digo que sou português".
Na lógica do Fernando os portugueses daqui acham que não há pretos em Portugal.
Ele é preto, eles - a maioria - são dos Açores.
Portugal - continental - é-lhes desconhecido, na lógica dele.
Ainda assim, o Fernando diz que é muito feliz, na América. Pudera, em Portugal não tinha trabalho.
O gajo da televisão sou eu, mas é ele que se safa à grande.
Contrastes!
Os meus companheiros de aventura ficaram surprendidos quando, pela manhã, antes de entrar no barco que nos levou a Fort Adams, me viram a dar um autógrafo.
Não era autógrafo coisa nenhuma.
Era um grupo de crianças, crianças como aquela que foi morta em Salvaterra de Magos, com a idade do meu filho mais velho, tal como a outra criança que foi espancada por outras crianças. Entre os dez e os quinze anos, por aí.
Elas estavam com o professor a fazer um trabalho de campo.
Tinham uma lista com várias tarefas, como por exemplo, tirar uma foto com um homem vestido de encarnado e recolher uma assinatura de um estrangeiro.
Assim, os meus companheiros foram enganados.
Não dei autógrafo nenhum, nem percebi o objectivo da lista de tarefas dos alunos. No fim tirámos uma foto e segui viagem.
Ao longo do dia recolhi material para mais quatro programas "Jornal da Regata" que começam dia 18, todos os dias, na TVI24.
Almoçámos - meus amigos come-se tão bem em Portugal - e estivemos a espera de um autocarro ou táxi quase uma hora. Trocaram-nos as voltas.
Uma hora, o tempo que tinhamos para tomar banho, mudar de roupa, meter um perfumezinho e ir jantar com um dos "donos" da equipa Abu Dhabi e a mulher, uma sueca que fala melhor português do que eu.
Jantámos no restaurante que tem a licença de venda de bebidas alcoólicas mais antiga dos EUA, o bar/restaurante mais antigo de todos, portanto.
Aqui sim, o filet mignon dava para chorar por mais. A água, desculpem, só de garrafa. Eles têm o hábito de beber água da torneira - eu não bebo - com gelo. Mas valeu pela companhia e por ter estado no restaurante mais antigo da América.
Quando cai na cama apaguei-me.
Hoje, acordei ás seis da manhã, tal como ontem.
Aí eram 11 da manhã.
Decidi escrever a crónica já porque daqui nada vamos trabalhar e à noite temos um jantar de gala e uma festa e depois não dá para tudo.
Só que já são oito e meia.
O Rodrigo já enviou um email a dizer que já foi para baixo.
Nós combinámos sair do hotel ás dez.
Está na hora de ir correr.
Hoje vou com o Zé Pedro ou vai ele comigo.
Vou ligar, não vá ele ter adormecido.
Até porque estou a ouvir uma cama a ranger, suspiros profundos, no quarto aqui ao lado.
E, pasme-se, deve estar a correr tão bem que já estão na segunda volta.
Está a ser bom, a julgar pelos gemidos.
É um quarto para as nove da manhã.
Isto aqui é a América e, nunca se sabe. É melhor ir correr.