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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

11.09.18

DIAS DE RAIVA ( DIA 52 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Está a chegar ao fim um dia normal.

Um dia que, há 17 anos, foi tudo menos normal.

Não vou cair nos clichés porque, obviamente, o 11 de Setembro, há 17 anos, mudou o mundo tal como o conhecíamos até então.

Sublinhar isso é gastar linhas de texto. Isso é para as redes sociais, as frases feitas, vazias de conteúdo.

Há 17 anos eu achava que tinha a vida toda pela frente. Tinha 31 anos, um filho, uma profissão que amava, ganhava dinheiro, faltava-me muito pouco. Depois, depois cresci.

Cresci porque a vida me obrigou, cresci porque aquele dia mudou-me, não mudou apenas o mundo tal como o conhecíamos até então.

Mudou-nos a quase todos.

Há 17 anos, cheio de mim, cheio de vida, cheio de tudo e, afinal, tão vazio em tantas coisas, há 17 anos eu não corria.

Não tinha necessidade disso, achava.

Ocupava o tempo com outras coisas.

Por essa altura, nas minhas folgas semanais ( trabalhei aos fins de semana durante 15 longos e cheios anos, quando apresentava o Contra-Ataque, aos sábados ) costumava ir almoçar fora, normalmente, a Lisboa com o meu compadre Pedro Pato.

Ia eu, ele e o meu filho Rodrigo.

Grandes bifes devorámos na Portugália. O Rodrigo limitava-se a sorrir-nos, com a barriga cheia de papa, que os bifes e as imperiais eram só para os mais velhos.

Nesse dia, 11 de Setembro, o meu compadre estava de férias, o meu filho estava no infantário e eu fui almoçar sozinho, ao Vila Franca Centro.

Antes de ser um centro comercial, o único no país com ecrã IMAX, o Vila Franca Centro era o cine-teatro (como a foto mostra), onde vi o E.T. e o Grease e os Encontros Imediatos do Terceiro Grau.

Bem me lembro, no fim da sessão o medo que me seguia, pela calçada da Barroca até à Quinta da Mina.

Naquela altura eu adorava ir ao cine-teatro ver filmes de ficção e de terror. Adorava a adrenalina que era regressar a casa, pela noite, vendo sombras e vultos que nunca existiram, fantasmas que só eu criei na minha cabeça.

Depois, construiram um centro comercial, na minha cidade, que era o ponto mais vital, naqueles dias, e que hoje está abandonado.

Roubaram-nos pedaços do nosso passado e deitaram-os ao lixo.

Nunca lhes foi pedida responsabilidade, antes, foi-lhes dada impunidade, ainda hoje se passeiam pelas ruas, olhar arrogante, como se nunca tivessem cometido aquele crime.

Tenho saudades de ir ao cinema e de comer rebuçados Bola de Neve e brincar a apanhada, nos intervalos, escadaria abaixo. Tenho saudades de escolher se queria sentar-me na plateia ou em um dos camarotes e de enganar o senhor Rocha, o porteiro, porque eu nunca comprava bilhete.

Roubaram-me isso e isso é crime.

Não se roubam as memórias de uma criança.

É verdade, a minha cidade é tão, mas tão mal governada que nos damos ao luxo de ter um centro comercial que ocupa um quarteirão inteiro, votado ao abandono total.

Há tantos anos, está assim há tantos anos que se confundem com o próprio tempo, o tempo em que ali está ele, abandonado, numa cidade cada vez mais só mas que continua a ser minha, a minha.

Mas, não vou aqui gastar mais tinta com a política, porque a política mete-me nojo.

Almocei, nesse dia, num dos restaurantes com vista sobre o rio e sobre a Lezíria, no restaurante do “Manel do Pote”.

Ainda sinto o sabor do bife com molho  três pimentas.

Eu gostava tanto de vaguear pelo Vila Franca Centro, adorava ir espreitar o Bowling, adorava visitar a papelaria Ricardo, que tinha filofaxes (vá ao Google) lindíssimos, adroava tomar café no bar do Filipe do PizzBurguer, amava olhar os retratos a cores que decoravam a vitrine do fotógrafo, do qual agora não me recordo o nome.

Mas, uma das coisas que eu mais gostava era de me deter na montra da loja da Singer e ficar a olhar para aqueles ecrãs de televisão - eram tantos - durante alguns minutos, e o motivo era simples;

Nessa altura eu era apaixonado pela televisão, dentro e fora dela.

Eram tempos fantásticos.

Quando estamos apaixonados são dias sempre brutais, os nossos dias, o nosso tempo, e eu detinha-me, ali, em frente à montra, minutos eternos, a olhar para todos aqueles ecrãs, a cores.

Ali estava eu, do lado de cá e do lado de lá do vidro.

A loja da Singer, no Vila Franca Centro, costumava passar nos ecrãs os programas que eram gravados no gravador de vídeo.

Eu, ali, do lado de cá da montra, em dia de folga, sem o meu compadre e sem o meu Rodrigo, eu, do lado de lá da montra, gravata bonita, cara bonacheirona a apresentar o Contra-Ataque.

A meu lado aquele homem, boné castanho aos quadrados, camisa branca, mãos nos bolsos, a fitar-me, como que a um fantasma de carne e osso.

Nunca lhe guardei os traços do rosto.

Quando alguém me reconhece eu não consigo olhar-lhe o rosto, por vergonha minha, não sei de quê. Talvez de nada.

Eu, ali, nós os dois, não era apenas eu, eu e eu, eu e ele.

Nunca fui só eu, ao longo da minha vida.

Espantado, lembro-me como se fosse agora, espantado a olhar para mim, aquele homem não reparou no meu espanto, mais que isso, na minha total impotência, quando vi, no ecrã ao lado daquele onde a minha gravata brilhava a imagem de um avião a embater numa das duas torres, em Nova Iorque, no dia em que o mudou o mundo tal como o conhecíamos até então.

Já havia telemóveis, há 17 anos.

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O meu era uma espécie de pioneiro dos smartphones de agora, tinha tudo, até uma tecla que dizia “internet”, mas quase não havia internet. Fazia chamadas, isso fazia.

Liguei à minha mulher. A Carla estava na fila do bar, para almoçar.

Por momentos acreditámos que estávamos a ver um filme hiper-real. Até hoje. Até mesmo depois do segundo avião embater na torre.

Fui a correr  buscar o Rodrigo ao infantário, impelido por um estúpido impulso de sobrevivência, como se Nova Iorque estivesse dentro do Vila Franca Centro. E estava.

Não voltei a olhar para aquele homem de chapéu aos quadrados, camisa branca, mãos nos bolsos.

Ainda hoje ele lá deve estar, cristalizado no seu espanto, dentro do centro comercial abandonado, que outrora, cheio de vida, os mostrava filems de terror, entre Bolas de Neve e caramelos que se colavam aos dentes, enquanto a fita rolava.

Nessa altura, eu não corria, achava-me o dono do mundo, o mundo que mudou tal como o conhecíamos até então.

Não precisava de correr, achava eu.

Na verdade, se nessa altura eu corresse, em vez de ter ido buscar o Rodrigo, e de ainda hoje estar sentado no meu sofá azul, a olhar para aquele filme hiper-real, eu teria ido para o passeio ribeirinho queimar asfalto.

O mundo mudou.

Eu comecei a correr.

Nunca mais parei em frente à montra da Singer, a ver os ecrãs, a ver-me na televisão, a cores.

Com o passar dos anos ela desencantou-me.

O centro comercial faliu e fechou.

O mundo mudou.

O Rodrigo fez-se homem.

Tenho pena que ele não vá comigo a Berlim.

Foi lá que o mundo mudou, pela primeira vez,  tal como o conhecíamos até então.

Só depois é que aconteceu o 11 de Setembro.

 

 

 

 

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