Deus levou-te por isso eu não acredito em Deus
Chamava-se Alexandre, Alexandre António.
Morreu com um mês e meio, poucos dias depois desta foto.
Era meu irmão.
“Vai, que eu fico aqui à tua espera, em luta com esta saudade tão abrupta, lembrando-me de ti, deste pijaminha azul e fofo, acariciando-te a pele, com as fotografias que ficaram nas minhas mãos.
Fico aqui à tua espera, sentindo o doce e morno o perfume das tuas bochechas.
E, assim, Xaninho – era assim que eu te iria chamar e será assim que te chamarei de hoje para a frente – e assim vou tentar viver longe de ti, certo que voltarás aos meus braços. Será a dádiva da vida, pela minha espera.
Hoje voltaste para o meu colo, no meio de dezenas de fotografias.
Não sabia que tínhamos uma juntos.
A mais bela de todas.
Um beijo, meu maninho tão lindo.”
É a primeira vez que falo sobre este acontecimento, da minha vida, na minha vida.
Dentro de mim um milhões de palavras que querem saltar para aqui.
Um peso no peito que me trava a respiração.
O suficiente para me deixar, com o olhar perdido, nesta página, durante tanto tempo, até que consiga ordenar, sistematizar e vomitar a escrita que quero escrever.
O acto de escrever, para além de ser um acto brutalmente solitário, ele é também um acto de profunda dor ou prazer, ou ambas as coisas.
O Xaninho nasceu no dia ... e morreu no dia...
É um momento que nunca esteve presente em mim, durante toda a minha vida, até hoje.
Em 1977 eu tinha oito anos.
Lembro-me de ter ficado feliz até mais não quando a mãe foi para o hospital.
O hospital ficava em frente ao nosso prédio, atravessado pela auto-estrada.
Como vivíamos no quarto andar dava para ver os militares que vieram de Santarém para fazer o 25 de Abril, a passarem em caravana bem ao nível dos nossos olhos, mas também dava para ver a janela do hospital, de onde o meu maninho nunca saiu.
Hoje voltei a ver aquela luz amarelada e morna, lá naquela janela, que eu vi todos os dias, à noite, numa esperança que a minha infância impedia de perceber.
É um momento que nunca esteve presente em mim, durante toda a minha vida, até hoje, porque fui um espectador que observava do lado de fora da história.
Perdoa-me, mano.
Fui crescendo e tu não fazias parte das minhas memórias, nem sequer nesta tarde, em que sorriste para mim, enquanto eu sentia algo que nunca mais me permiti sentir.
O único pedaço que guardo é esta eternidade, tu nos meus braços, embalado por um fascínio que só as crianças conseguem transportar em si.
Mano, não me acompanhaste ao longo do caminho, mas o mano às vezes pergunta por ti à mãe.
Muito poucas vezes, porque não sei se a mamã e o papá terão saudades tuas, como eu tenho agora e não os quero magoar. Sei que eles não ficariam magoados, ficariam felizes, por eu querer saber de ti, mas nunca quis correr o risco, mano.
Sabes o que era giro?
Hoje tinhas 43 anos, eras mais velho que o mano Ricardo, que só tem 35, e eu era o “boss”, andavam os dois pianinho. Ia ser o máximo.
Ia-mos os três almoçar ao Batalha, mais o pai, ias levar o Gu e a Maria a casa e eu ficavam com os teus meninos a tomar conta deles ao Sábado à noite para ires sair com a tua mulher.
Ia ser o máximo, mano.
Qualquer dia isso vai acontecer com o mano Ricardo e eu vou adorar.
Eu vou dizer-te, mano, sim, eu vou dizer-te porque é que nunca estiveste presente na minha vida, até hoje;
o mano era pequeno, só tinha estado contigo naquela vez, só sabia de ti pelas conversas que os pais tinham, mesmo depois da mamã ter saído do hospital e de tu teres lá ficado.
Perdoa-me, mas eu era ainda pequenino.
Hoje, não, mano.
Olha, faço cinquenta anos daqui a um mês e hoje decidi arrumar memórias.
Devias conhecer o Gu e a Maria, são tão lindos.
Sabes, tu a apareceste-me entre duas fotografias do Gu e da Maria.
Tu deves ser cá um malandrinho, mano.
Até me estás a fazer sorrir, como naquele momento em que te tive nos braços.
Ao fim de 43 anos chegaste, finalmente, à minha vida.
Chegaste com uma intensidade, com um amor, com uma saudade, com um sorriso e comoção tal que o mano não consegue sequer escrever.
O mano é “Técnico Instalador de Palavras”. É uma profissão que o mano inventou.
Por isso é que ninguém pode saber desta nossa conversa;
É que o mano escreveu que não consegue sequer escrever e isso é mau para o negócio.
Sorte a nossa que naquela altura não havia cá o digital e estas coisas todas. Era em papel.
Corria-mos o risco de não ter esta fotografia.
Tenho estado comovido, mas não tenho tido vontade de chorar. Até agora.
Quem está a ler a nossa conversa não sabe, mas o mano agora chorou, como quando tinha oito anos.
A mamã mandou-me esta foto.
Ao fim de 47 anos de amnésia veio-me tudo à memória, em cascata, poderosa, imparável, demolidora e bela.
Lembro-me, agora, de tudo, mano.
Lembro-me da tua coragem, da tua luta, daquelas agulhas medonhas cravadas em ti, por causa de tantas e tantas transfusões de sangue, lembro-me do teu terno sorriso, aconchegado pelo afago das luzes da incubadora, lembro-me que te tive mais vezes no meu colo do que desta vez, nos meus braços.
E, neste preciso momento, mano, lembro-me do teu pequenino caixão branco e dourado. Pequenino como tu.
Lembro-me de ver este telegrama na mesa do hall de entrada.
Lembro-me de ter pensado que nunca mais iria ter um irmão.
Mas, os pais, deram-nos um mano.
Eu acho que tu e o Ricardo iam era dar-me cabo da cabeça, tenho a certeza que iam combinar os dois, quando fossem à casa de banho, dar-me a volta para ser eu a pagar o almoço no Batalha.
Já jantei.
A Carla veio chamar-me, no preciso momento eu que eu me estava a ir abaixo e a comoção no topo mais alto de mim.
Fez-me uma festa na cara, deu-me um beijo e sorriu para mim.
O Gu e a Maria são dois miúdos que tu vais adorar.
Eles são unha com carne com o Ricardo, vais ter que te entender com ele, mas vocês vão divertir-se à brava.
Eu fico aqui à espera, vou observando e garantindo que a tua luz também os irá iluminar ao longo da vida.
Descobri isso hoje, mano, a luz que me guia és tu.
Porque é que deixaste passar tanto tempo?
Eu fico aqui à espera.
A Carla é a minha namorada de uma vida toda.
Quando nasceste e morreste ela ainda não tinha entrado nas nossas vidas.
Apareceu-me, um dia, no liceu e eu apaixonei-me. Acho que ela também.
Meses depois nasceu o mano Ricardo.
Foi nessa altura que eu e a Carla começamos a namorar.
Vais gostar muito dela.
É uma mulher e um ser humano brutal.
Os pais estão bem.
A vida foi um campo de batalha. Eles ficaram com cicatrizes, mas são tão fortes e tão bonitos que vão ganhando batalhas atrás de batalhas.
A mamã passou 15 anos quase cega.
Agora vê melhor à noite do que eu.
O papá reformou-se, mas continuou a trabalhar.
No mês passado ficou sem metade de um dedo, no trabalho.
Acho que tu ias ser como o pai, forte e verdadeiro.
Sabes o que é que ele fez?
Apanhou a outra metade do dedo dentro da luva e meteu numa caixa com gelo, para ver se chegava ao hospital em condições de o voltarem a colocar.
Ele diz que a mulher do patrão chorava como se não houvesse amanha, ahahahaha.
Dizia-me ele: “andei por todo o mundo e nunca deixei nada meu em lado nenhum, não era agora...”
O pai é rijo.
Mas, o teu sorriso é da mamã, mano.
Não engana.
Olha, já eu acho que devo ter sido trocado.
Dou ares de cigano.
Sendo que o Quaresma ainda é da nossa família.
O Gu, também é Quaresma, claro, também joga de caraças.
Eu cá acho que tu vês os jogos dele, confessa lá?
Passaram 47 anos de memória em branco, mano.
Esta tarde, enquanto arrumava umas coisas, umas fotos, reencontrei-te, reencontrámo-nos.
Vamos aproveitar o tempo que é justiceiro.
Jamais deixarei que te levem dos meus braços, outra vez.
Só não te prometo fotografias.
Apenas amor eterno.
Porque sei que voltarei a pegar-te ao colo, a olhar-te e sorrir, um para o outro.
Na eternidade.
É lá que iremos contar todas as histórias que nos aconteceram neste anos todos.
Deves ter tantas para contar.
Um beijo, Xaninho.
Amo-te, mano.
Muito.
( Este texto é dedicado aos meus pais, ao meu irmão Ricardo e ao meu irmão Alexandre)