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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

20.04.15

DE LAMPEDUSA A AUSCHWITZ


The Cat Runner

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Hoje é um daqueles dias em que era fácil escrever um texto no blog.

Hoje todos os olhos e corações estão no Mediterrâneo. Hoje todos sabemos que há um sítio, não muito longe, que se chama Lampedusa. Mas, hoje, eu não vou escrever sobre o drama que tentámos não ver, até hoje.

As redes sociais estão cheias de considerações moralistas e acusatórias, cheias de fotos chocantes. O ecrã do computador parece exalar cheiro. O cheiro da morte.

Por isso prefiro de partir da morte para chegar até à vida.

Descobri uma vida que me surpreendeu. A vida de Sylvia Weiner.

Descobri-a por causa da maratona de Boston.

Ela foi a primeira mulher na história a ganhar a divisão Masters na maratona de Boston, isto não era de relevo, não tivesse Sylvia 84 anos. Mas, nem mesmo facto de ter 84 anos e correr a maratona – eu não consigo e tenho metade da idade dela – retira aquilo que aqui me trás: a vida e a morte.

Sylvia Weiner diz que correr lhe salvou a vida.

Em 1942, Sylvia tinha apenas doze anos. Nesse ano de dor e morte ela foi separada dos sete irmãos e dos pais. Eles foram metidos como gado dentro de carruagens carregadas de gente rumo a Treblinka. Ela nunca mais os viu.

Treblinka é um lugar que cheira a morte.

Sylvia conhece o cheiro da morte. É o mesmo cheiro em Majdanek, Auschwitz e Bergen-Belsen. Ela viveu lá a fase mais bonita da vida, quando crescemos, na fase mais horrenda da humanidade.

“Quando chegámos a Auschwitz conseguíamos sentir o cheiro da carne humana queimada, no ar”.

Por razões que ainda hoje desconhece, Sylvia Weiner foi poupada pelos loucos que eram comandados por um louco profundo.

Foi-lhe poupada a vida, mas só isso.

Jamais alguém esquecerá que andou sobre corpos de centenas de mortos à procura de roupas que pudessem ser aproveitadas.

Sylvia esteve em vários campos de concentração, onde morreram milhões de pessoas às mãos do regime nazi, nojento, abjecto, insano.

Foi em Bergen-Belsen que conheceu  uma jovem holandesa que lutava a dobrar pela vida. Anne estava muito doente. Tinha febre tifóide. Elas dormiam no chão sem colchão nem cobertor. Havia piolhos e ratos por todo o lado.

Sopa – uma àgua suja a fingir sopa – era o único alimento, como se o horrível alimentasse mais do que almas cruéis.

Estavam juntas quando Anne morreu.

Estavam ambas cercadas pela morte. Viver era quase impossível.

Só dez anos depois, já em Montreal, é que Sylvia Weiner ouviu falar de um diário de uma rapariga.

O Diário de Anne Frank.

“Meu deus, esta é a Anne”.

Foi apenas nesse momento que percebeu que aquela tinha sido a sua melhor amiga no campo da morte.

Syilvia divide-se e à sua vida entre Montreal e Miami.

Foi no Canadá que casou e foi lá que teve os três filhos. Foi lá, que sem nunca conseguir, tentou levar aquilo a que chamamos uma vida normal. As memórias e o cheiro da morte nunca a deixaram. Costumava ter pesadelos e depressões frequentes.

Esta mulher, uma lutadora da vida, com 84 anos, passou os últimos 50 a correr. Raramente ela perdeu um dia de corrida. Há 50 anos que acorda bem cedo. Os amigos esperam-na à porta e juntos correm entre seis a oito quilómetros todos os dias.

“Nós vamos devagar e conversamos sobre tudo, menos política”.

Há 40 anos, em 1975, quando a maratona de Boston reconheceu pela primeira vez homens e mulheres vencedores na classe Masters, foi Sylvia Weiner, de origem polaca, quem conquistou o título. Correu três horas, 21 minutos e 38 segundos. Tinha 44 anos.

Foi esta vida recheada de corridas que lhe fez renascer o espírito e lhe lavou a alma, ao ponto de parar de tomar a medicação que lhe evitava os pesadelos e a ajudava a dormir.

“Eu quase tinha vergonha porque eu corria muito, de mais. Eu tinha uma vontade tão forte de sobreviver, naquela época eu precisava de correr muito. Era a única mulher a correr em Montreal e a maioria das pessoas dizia que eu era louca”.

Nas décadas que se seguiram, Sylvia continuou a correr maratonas.

Parou de correr como corria quando fez 75 anos.

Agora, aos 84, faz uma ou duas maratonas por ano, mas é o seu passeio diário que mais lhe importa.

“Correr salvou a minha vida. Primeiro Deus, através do milagre da minha sobrevivência no campo de concentração. E, em seguida, a corrida.  Sem correr, a minha vida tinha-se desmoronado como um castelo de cartas”.

Hoje é um daqueles dias em que era fácil escrever um texto no blog.

Hoje todos os olhos e corações estão no Mediterrâneo. Hoje todos sabemos que há um sítio, não muito longe, que se chama Lampedusa. Mas, hoje, eu não quis escrever sobre o drama que tentámos não ver, até hoje.

Tinha sido a opção mais fácil.

 

 

 

 

 

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