CUIDADO COM AS PALAVRAS MESMO QUE SEJAS UM SIMPLES PAR DE TÉNIS
Cenário:
Prateleira no armário do hall de entrada.
Personagens:
Três pares – laranja, amarelos e os novos, seis ténis.
Assunto:
As frustrações, as faltas de respeito, as pressões, as cedências e a vontade de revolta. A tristeza de uns, a alegria de outros. Como em tudo na vida.
Tomei o banho matinal – não consigo sair de casa sem tomar banho - e depois de retocar a barba, espalhar creme no corpo, cera no cabelo e aquele perfume que fica encaminhei-me, como sempre, para o hall de entrada, para escolher os ténis ou os sapatos, depende do feeling.
Imediatamente antes de abrir a porta do armário, que acabei por não abrir, escutei um burburinho vindo de lá de dentro. Alguém falava baixinho.
Sentei-me no chão e limitei-me a escutar.
No fim, tinha aprendido uma coisa, mas fica para final de conversa.
- Há coisas que não entendo, amarelos.
- Tais como, cor de laranja?
- Tal como um gajo ser colocado na prateleira, de repente.
- Um gajo?
- Sim, eu sou um par de ténis. Sou dois ténis, mas sou um par, porra. Ou até esse direito me querem tirar, já agora com a tua ajuda e com as tuas palmadinhas nas costas?
- Acalma-te lá, agir a quente nunca deu bons resultados.
- A quente?
Tens noção de quanto tempo passou, tens noção do que me aconteceu?
- Tenho, claro que tenho, acompanhei tudo e, se queres saber, sinto-me culpado, de alguma forma.
- Deixa-te disso. A tua responsabilidade é indirecta, tu não pediste a ninguém para me obrigar a deixar de fazer aquilo que mais gosto e a colocar-me numa prateleira. Foi uma decisão dele.
- É um facto, mas fui eu quem te foi substituir e isso pesa, e se eu te disser que tinhas que ir para a prateleira ainda me levas a mal.
- A única coisa que te aponto foi nunca me teres defendido. Não te levo a mal dizeres isso, mas isso nunca devia ter acontecido. É falta de respeito. Pelo menos usava-me para caminhar.
- Porra, eu defendi-te. Eu falei com ele, onde é que foste buscar essa ideia?
- Amarelos, eu lembro-me bem da nossa conversa, olhos nos olhos.
O ele era eu.
Os sacanas dos amarelos estavam a mentir aos cor de laranja. Hoje é dia um de Abril, esqueci-me, mas estavam a mentir. Deliberadamente. Cínicos. Também eles descartados, revoltados e agora a tentarem conseguir apoio dos cor de laranja. Continuei a escutá-los.
- Deves ter falado deves. Nós, ténis, nessas coisas somos como os humanos, se há um que está em baixo o outro coloca-lhe o pé em cima da cabeça para o afundar ainda mais.
- Não somos todos assim. sabes que eu não sou assim.
- Os humanos também não são todos assim. A maioria é.
Viste o que lhe aconteceu?
- Vi, claro, toda a gente viu. Aquela corrida em que ele se espalhou?
- Essa, mas…
- Mas o quê?
- Cala-te agora, vem aí o novo par de ténis do gajo.
- E o que é que tem? Tens medo que lhe vá contar a nossa conversa? Assim como assim já fomos encostados à box. Já estamos na prateleira. Medo de quê?
- Não é medo, eu pelo menos não tenho, já são muitos quilómetros, muitos mais do que os que eles já fizeram, mas pelo sim pelo não deixa ver como é que eles entram na conversa.
- E ficamos a meio?
- Nós, não. Deixa-o entrar e vais ver.
- Estás mesmo revoltado.
- Como nunca.
- Relaxa. Facto: já não te “fardas” mais. Por isso, relaxa.
- Não imaginas as saudades que tenho de uma corrida.
- Cala-te, ele está a entrar.
- Ok, já continuamos.