Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

10.04.20

CARTA PARA OS MEUS FILHOS


The Cat Runner

IMG2020041023260801EasyResizecom (1).jpg

São onze da noite.

A mãe está a trabalhar. Hoje só apanhou uma barreira policial à ida para lá. Nos últimos dois dias é a oitava vez.

Já arrumei a cozinha toda, já tirei a louça da máquina, falta apanhar e dobrar a roupa mas isso é tarefa vossa.

Enquanto acabava de arrumar a cozinha vocês vieram-me ao pensamento.

Queria dizer-vos que já pedi desculpas a muita gente, nesta vida. Agora, confesso-vos, peço menos. Já não tenho idade.

Agora só peço desculpa a duas pessoas, a vocês os dois. Duas metades de mim.

Disse-vos, há dias, no carro, uma coisa que não sei se vos ficou, quando estávamos dentro do carro, em viagem para casa, quando ainda era possível andarem três pessoas dentro de um carro.

Vínhamos da “vila”, numa fugida, para levar coisas do supermercado aos avós. E para os olhar nos olhos e nos seus sorrisos bonitos.

Sete quilómetros de distância.

Ainda era possível ir de um concelho para o outro, separados por sete quilómetros, isso faz o pai todos os dias a correr.

Disse-vos que "nunca imaginei que vocês tivessem que viver uma experiência tão transformadora como esta. Que isto é uma guerra e vocês são filhos desta guerra, como a avó foi de outras e o avô de outras. Esta só é diferente, porque é diferente e porque vocês estão a vivê-la. Mas, vejam o lado positivo, não há bombas, tiros, prisões, ataques. Há o invísivel”.

Não sei se o que vos disse vos ficou.

“Mas, reparem, eu vi os computadores a aparecer, a internet a nascer, o Muro de Berlim (vocês sabem o que é) a cair, vi há muitos anos um concerto transmitido para todo o mundo, para ajudar a combater a fome em África e nem havia internet, já vi tanta coisa e agora isto, como vocês”.

Não sei se o que vos disse vos ficou.

“Isto não é o fim do mundo. É apenas a sua renovação, como consequência do ataque de um bicho mau, por isso, estamos em guerra. No fim haverá alguém culpado. No entretanto temos que sibreviver e vamos sobreviver porque ainda temos tanto para amar.

Acho que devemos aprender e tirar de tudo isto o que tudo isto nos deixar de positivo”.

Não sei se o que vos disse vos ficou.

“E, vocês, a vossa geração, acaba por ser privilegiada. Estão a viver o momento mais impactante da vossa e da nossa existência. Ainda por cima já viram Portugal ser campeão da Europa, não durante quatro anos, durante cinco anos, melhor preparação do que isto para a vossa vida não deve haver”.

Não sei se o que vos disse vos ficou.

Sei que as nossas vidas mudaram.

As vossas, a minha, a da mãe, a dos avós, a dos tios, a dos amigos, as vidas mudaram e isso não é forçosamente algo de mal que nos tenha acontecido, porque vamos voltar a viver. Não fomos feitos para apenas sobreviver.

Decidi escrever-vos esta carta enquanto arrumava a cozinha e escutava a música que está ali em baixo, no vídeo, no final da carta. Queria que soubessem que vocês são, com todas as imperfeições, a mais bela obra que jamais fiz, viva eu cem dias ou cem anos.

Nunca imaginámos viver estes dias tão extraordinários.

Eu nunca imaginei voltar a ter-vos tão junto de mim, todos estes anos depois. Filhos, de novo, na pausa das nossas vidas.

Que exemplo que vocês são para mim.

O mano começou a cozinhar – dos 21 bifes que fritou já só há 13 -, até já faz sumo de laranja.

Tu começaste a ser a “quase-senhora-da-casa”, eu e a mãe temos estado mais presentes, estão acontecer-nos coisas tão más e tão boas ao mesmo tempo.

Só a vocês peço desculpa.

A mais ninguém.

Os dias já não são passados em casa dos avós, ou na vila, ou na escola, ou nos treinos, já não almoçamos com a avó, aos domingos, já não vos vou levar ou buscar à vila, nem ver os jogos do mano, já nem se fala do União à mesa.

Os dias, já sem conta, são passados dentro dos nossos corações e, que orgulho, que felicidade escutar as vossas conversas na cozinha, sem que vocês se dêem conta.

As indicações que a mana te dá por causa do refogado, o teu ar de chef a dar-lhe reprimendas porque o lume está muito alto, e os vosso riso cúmplice, de irmãos.

"Maria vais lá a baixo perfumada?".

"Vou, mano", mano, "é sexta à noite".

Sexta à noite, lá em baixo, em casa. Não é justo, eu sei, mas prometo que quando a guerra acabar vos deixo ficarem fora de casa o tempo que quiserem, desde que voltem, para vos abraçar.

Não sei se vai ficar tudo bem, mas sei, Rodrigo e Maria, que voltarão a ensinar aos avós a criar conta no Instagram, sei que voltarão a ir lanchar com os avós na esplanada do Tradicional juntamente com os vossos amigos. Sei que irão voltar a passear com a avó lá em baixo no jardim do condomínio e que no fim ela vos dá 20 euros a cada um. Sei que vão voltar a trocar roupa com o tio. Sei que vão voltar a fazer festas ao Gabirú.

Sacana do cão é tão resistente como vocês os dois, saem ao avô e às avós. Vocês e o Gabirú.

Isso, sei, porque vos juro que vai acontecer e, sabem bem, nunca falho ao juramento.

Não sei se o que vos disse vos ficou.

Sei que vocês os dois voltaram a ser irmãos, como quando eram pequeninos. Não ter cada um a sua própria vida não é justo, mas que essa beleza jamais se perca, outra vez, quando voltarem a ter cada um a vossa vida.

Voltei a sentir o vosso cheiro e a vossa pele doce e vocês ainda nem deram conta. Que feliz que sou.

Não sei há quantos dias vocês estão em casa, há já mais de um mês.

Resistentes. Guerreiros. Inteligentes. Conscientes. Bonitos. Gente. Humanos. Filhos.

Tanto tempo a conviver obrigatória e constantemente uns com os outros, aqui na nossa casa, no nosso castelo, no nosso amor e, vocês os dois, que exemplo, quando eu e a mãe nos chateamos, a chamarme-nos a atenção, qual adulto que na verdade há muito que o são, ou quando vos disse que já não podiam sequer ir à rua uma hora (grande ideia minha, irem lá a baixo o tempo que quiserem), quando só o telemóvel vos aproxima do mundo que está em suspenso, lá fora.

A vida inteira vocês ensinaram-me mais do que aprenderam comigo.

Não vos sei dizer quando tudo vai começar.

Sei que todos os filmes têm um final feliz. Este também terá.

Somos nós que escolhemos os filmes vemos, tem sido assim sempre.

O único que nos foi imposto foi este.

Não o escolhemos, mas somos nós que decidimos como será o seu final.

E, nesse final, temos tanto para sermos ainda mais felizes.

Sinto o mesmo que senti quando vocês nasceram:

um privilégio tão grande por ser o vosso pai, por ver os seres humanos brutais que vocês são, por sentir o vosso amor, por quem vos ama.

Se soubesse o que nos ia acontecer ao fim destes anos faria tudo igual.

Por isso vos peço desculpa.

Por isso, não há outro final para este filme. Não pode haver.

Ele não é sobre uma tragédia imensa.

Ele é sobre amor.

Será feliz, o final.

O pai jura !

Agora só falta ver se a mãe não apanha mais barreiras policiais quando vier para casa.

Amor.

É sobre isso.

 

3 comentários

Comentar post