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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

20.04.15

AMIZADES ETERNAS E CORRIDAS SEM FIM


The Cat Runner

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                                   ( Foto by The Cat) 

 

 Eu corro atrás de sonhos. Sem vergonha de o dizer.

Ouço música, enquanto corro atrás deles. Como agora.

Eu escrevo como sonho.

Não me interessa a conversa do lado de fora, o ruído é ensurdecedor.

Não me interessa, aqui, defender pontos de vista, discutir opiniões, ouvir as verdades de cada um. Não me interessa justificar.

Gosto a cada dia que passa, cada vez mais, de ter este blog. Dá-me cada vez mais prazer escrever aqui.

À medida que corro - esta semana corri todos os dias - sinto cada vez mais vontade de misturar tudo, a corrida, os dias, as raivas e os amores, as cores e o vento, as provações e as amizades. É aqui que termino quase todas as minhas corridas, traduzindo-as em linhas que gosto que leiam, mesmo que poucos as leiam, gosto de as escrever. Por isso estou a escrever sobre a amizade. A corrida e a amizade, não no sentido alargado, a amizade mesmo, que nasce assim.

Ao longo da minha vida, já não é curta, tenho perdido amigos, não é só nas corridas que me perco deles, às vezes também os perco na vida. Uns voltam, para uns volto, para outros não, não voltam. É sofrer, perder um amigo. O tempo encarrega-se de contornar e conduzir o quase caos ao curso natural das coisas.

O tempo repensa-te e perder pode não ser sofrer.

Quando corro há momentos em que me perco, desoriento-me, por momentos. Recomponho-me. São aqueles momentos em que levanto a cabeça, foco o horizonte e sinto nas pernas que é lá longe. Depois, volto a baixar a cabeça, sigo olhando a passada, tento concentrar-me na respiração, mas a música desconcentra-me, lembra-me o horizonte, longe.

Hoje, a meio dos cinco quilómetros, que não tínhamos que correr porque era dia de "folga" e só fomos porque estava a apetecer, disse ao João:

- Johnny, sabes aquelas quotes tipo "quando as pernas te mandam desistir é a cabeça que manda continuar"?

Ou tipo "vens correr, não vens caminhar, nem vens para parar, vens aqui para correr, então corre"?

Olhou-me, com aquele afecto que tem no olhar, sorriu, com aquele sorriso acolhedor e anuiu. Estava em dificuldades. Fui-me embora porque ele me disse para ir. Esperava por ele mais à frente.

Eu e o João somos amigos há quase 13 anos. Eu tenho 45 e ele 16. Quando me mudei com a família para o condomínio onde vivo o João tinha quase 3 anos e o meu filho mais velho 2 anos. É desde essa idade que brincam juntos. Brincavam. Agora é mais jogos de futebol, festas de amigos, namoradas e coisas de adolescentes ou pré.

Vi o João tornar-se quase homem, vou vê-lo realizar o sonho dele, um dia vai ser comandante de linha aérea.

Obviamente, com esta diferença de idades, eu não brinquei com o João, jogámos umas duas ou três vezes Playstation com o meu filho mais velho. O João é também um dos melhores amigos da minha filha Maria.

O João cresceu e eu ganhei um amigo que já tinha, mas ganhei-o para a corrida, foi por causa da corrida que ganhei o João como amigo e ele a mim.

Estamo-nos a conhecer a cada passo que corremos juntos.

FOTO JOAO

 

O João tem peso a mais para a idade, basicamente nunca praticou desporto, jogou umas épocas na equipa de futebol onde jogou o meu filho, o João está gordo, agora menos, cada vez menos.

Ele nunca me disse, mas tenho quase a certeza, ele começou a correr porque pensou qualquer coisa como: eu sou um puto, não me mexo, o Rodrigo joga à bola e está todo fit, o Zé começou a correr e já não é gordo e é mais feliz, mais de bem com a vida. Nã...

Deve ter sido isto que o João pensou. Um dia, depois de umas mini - férias na neve o João disse-me que ia começar a correr. Acreditei pouco, confesso.

Estamos em Abril, isto foi em Janeiro. Eu já corria há mais de dois anos, inspirado por aqueles que correm há 20. O João começou a correr como eu, sózinho. Sózinho sofre-se diferente. O prazer é diferente. A solidão faz-nos bem à alma e às pernas.

As semanas foram passando, quase todos os dias o João manda-me mensagens. Desde o dia em que me disse que ia começar a correr. Ao início, mandava mensagens com assuntos tão complicados como instalar a app que regista as corridas. Outras vezes para perguntar "o que é que eu como, o que é que eu tomo para correr?". Outras, para me pedir ajuda para preparar o batido de proteína ou a bebida energética. Para saber se bebe antes ou depois. Coisas complicadas.

Respondo-lhe sempre, de forma curta e remeto-o para o Google. É assim comigo. Resulta.

No Natal passado ofereci-lhe um cinto para levar o bidon e uma bolsa para o telemóvel. Ele trocou de telemóvel e este novo é enorme e não cabia na bolsa. O João comprou uma nova.

Lá para o fim de Fevereiro já as sms que me mandou eram consistentes.

O João, em um mês, estava a correr quatro quilómetros, praticamente todos os dias. Adicionei-o e ele a mim na app e agora divertimo-nos a ver os quilómetros que faz o Ricardo Martins Pereira, o Marco Oliveira Domingos, que vão sempre com uma rodagem que impressiona, mas que também nos motiva, e o que vai sempre em primeiro, esse sim, faz-nos rir, um japonês que não conhecemos, mas que já leva quase 300 quilómetros este mês, enquanto eu, por exemplo, vou pela metade e o João só agora fez trinta.

O João passou a fase em que a maioria é obrigada a desistir. Não aguenta. A base. Quilómetros nas pernas, de forma duradoura. Duro! Já corre com regularidade. Já começa a ter quilómetros nas pernas e quilos a menos no corpo, já perdeu três.

Eu corro há muito pouco tempo. Eu escrevo sobre corrida há muito pouco tempo. Eu escrevo sobre a vida todos os dias. Por isso estou a escrever sobre a minha amizade e a do João, que começou por causa da corrida, embora tenha andado com ele às cavalitas quando era pequeno, embora tenhamos feito a mosca da prancha da piscina do condomínio, embora lhe tenha ensinado uns movimentos de guarda redes quando ele se juntava a mim e ao meu filho nos nossos treinos, descalços, no relvado do jardim.

Ele cresceu e a corrida tornou-nos amigos. O João é daqueles amigos que eu não quero perder e mesmo que um dia o perca hei - de recuperá-lo, porque às vezes reencontro amigos que perdi. Tantas vezes, nas corridas, na corrida.

Para ser sincero, já contaminei muita gente à minha volta. O meu círculo mais próximo já caminha junto ao rio, já corre pista fora. Há sorrisos diferentes. Para ser sincero, o que acabo de escrever resume-se a facto, não o escrevi para me auto - idolatrar, porque não sou um bom exemplo. Em quase tudo. Mas dá-me prazer ver.

Há umas semanas o João mandou-me mais um sms:

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- "Vamos correr, no Sábado, junto ao rio?"

Ele meteu um smile no fim, mas não foi por isso.

- "Claro que sim. Por volta das dez. Vamos falando. Tens corrido todos os dias?"

- " Quase todos. Quando falho um compenso depois".

- "OK".

Fiquei preocupado. Correr junto ao rio é o acto mais sublime do dia. Correr pela manhã é por vezes duro. O sol reflecte no gigantesco espelho de água e o calor envolve-nos como que numa bolha individual. Os bebedouros estão quase sempre avariados. Só ao fim de quatro quilómetros é que há água.

Depois pensei: eu não sou nenhum atleta, vou com ele, conversamos e adapto-me ao ritmo dele.

O João já fazia seis, sete quilómetros a correr e a caminhar.

Senti-lhe a dificuldade e a vontade. Agarrei-me à segunda.

- "Já só falta voltar, já só faltam quatro. Pensa que nunca fizeste oito quilómetros na vida e hoje vais ter que fazer, porque tens que voltar. Vamos devagar, ao teu ritmo".

Ele nem falava. Só abanava a cabeça.

Quando termina a pista começa o jardim. Cresci naquele jardim. Eu e os meus amigos. O João está a crescer naquele jardim, junto ao rio, debaixo do sol que queima a Lezíria e que nos aquece o caminho.

Senti-lhe a dificuldade e a vontade e o sorriso largo. Tínhamos chegado ao fim. Os sms agora não seguiram para mim. O momento era dele.

E, ele voltou à sua rotina. Três, quatro, cinco quilómetros por dia.

Há pouco tempo ofereci-lhe uns ténis fantásticos que tinha, mas com os quais não gostava de correr. Corri duas vezes. Assentam-lhe que nem umas luvas. O João corre com umas luvas nos pés.

Eu corro junto ao rio quase todos os dias. É lá que corre toda a gente da minha cidade. O rio as vezes parece seda. Depois do João, a minha mãe foi a vítima seguinte. Agora, também ela caminha todas as manhãs para ver o sol nascer, como nunca. A minha mulher calças os ténis sempre que pode. Está no limiar.

Por isso é hábito, agora, aos fins de semana, corrermos todos juntos, junto ao nosso rio.

Durante muitos anos não fui uma pessoa normal. Enquanto meio mundo descansava aos fins de semana, eu passei quase 20 anos a trabalhar aos fins de semana. Depois, um episódio surreal obrigou-me a passar a ser uma pessoa quase normal. De tudo o que de menos bom me acontece tento tirar sempre qualquer coisa que acrescente. Depois de um episódio surreal passei a ter fins de semana, como as pessoas normais.

Desde há dois meses correremos juntos, quase todos os sábados e às vezes aos domingos, na pista que acompanha o rio até à foz. Está a tornar-se rotina e a saber tão bem.

Este Sábado foi o João quem abriu as hostilidades. Sempre por sms:
- "Vamos correr este Sábado para o passeio ribeirinho?"

- "Check"

- "Vamos todos?"

- "Todos, mais a Maria".

A Maria pratica muai thai, mas esteve quase um mês parada. Foi correndo connosco, tirando fotos a nosso pedido e caminhando quando lhe apetecia.

A Carla pratica jornalismo, nunca está parada. Foi correndo, lenta e regularmente.

O João saiu disparado. Gritei-lhe:

- "Aquece no primeiro quilómetro, tens que voltar para trás".

Fui rolando com elas. Perdi a conta aos bons dias que dei, à Catarina, à Clara, ao Paulo. Perdi o João de vista. Deixei-as. Acelerei.

O fim da pista marca quatro quilómetros. Não vi o João. Fiz mais um quilómetro sózinho. Dava tempo. Quando voltasse eles deviam estar a alongar.

Estava uma manhã fantástica.

Decidi regressar soltando um bocado as pernas e aumentei o ritmo.

Lá ao fundo a Maria e o João caminhavam. Já os via. A Carla, já não a via.

- "Meninos, vamos fazer o resto a correr, devagarinho?"

- "Vamos, papi".

- "Zé já fiz nove quilómetros".

- "Johnny, falta um para fazeres os dez, pela primeira vez na vida. Agora, já não falta nada, vamos".

E seguimos os três. Ritmo constante e lento, bastante lento, mas doce. Eles não repararam, mas enquanto corria olhava para um e para outro. Admirei-os e aos seus sorrisos.

- "Olha a Carla..."

Ela estava sentada no parapeito que separa a pista do rio, a alongar.

Juntou-se a nós. Fizemos o último quilómetro, os quatro, juntos.

Os abraços no final foram sentidos. As fotos ficaram fantásticas. A manhã de Sábado eternizou-se até agora.

Ontem de manhã, adoro as manhãs de Domingo, fomos todos ver o Rodrigo jogar. Ele não corre connosco porque joga futebol e treina quase todos os dias, mas nós vamos todos, sempre, vê-lo jogar.

Na volta, no banco de trás do Golf, o João atira-se para fora de pé:

- "Zé, vamos correr hoje?"

- "Eh pá, hoje é Domingo, é folga. Vamos".

E, às seis e meia lá fomos. Estávamos de folga das corridas. Fomos rolar cinco quilómetros.

Senti-lhe a dificuldade.

- "João, um gajo vem aqui para correr, não é para andar. Vamos correr".

Senti-lhe a dificuldade e a vontade.

Quando chegámos ao nosso condomínio já tínhamos cumprido o objectivo. Cinco quilómetros feitos.

- "João, vou fazer mais um bocadinho, vai alongar".

- "Então também faço".

O nosso condomínio tem perto de 400 metros, à volta. Duas voltas e meia e um quilómetro está feito.

- "Johnny, corremos um lado devagar e ao lado do court de ténis aceleramos como os malucos, sprint..."

- "Ya".

Ele disse ya, mas senti-lhe o sofrimento. E a vontade.

- "Duzentos metros, prepara-te. Cinco, quatro, três, dois, boraaaaaaaaaaaaaaaa".

Estávamos a fazer de Bolt. Ele não acompanhou. Eu deixei de ter dores nas pernas. Mais duzentos metros quase a passo, e a cena repetiu-se, uma vez mais, às gargalhadas. Corremos e demos gargalhadas, como os malucos.

As fotos ficaram do caraças.

Não sei se hoje eu e o João fomos correr porque isto vicia, se foi porque isto apaixona, se foi porque isto faz-nos felizes.

Não sei se eu e o João fomos correr por causa disso ou se foi porque estamos a aprender a ser amigos.

Hoje, começo a semana com oito quilómetros para fazer e ele cinco.

A ver se vou correr de manhã, junto ao rio. Estou a aprender a gostar de correr pela manhã, porque o sol é bonito, quando nasce, porque o calor faz brilhar os olhos, porque as viagens também são bonitas, porque eu corro atrás de sonhos.

Sem vergonha de o dizer.