ADORO QUANDO ME ABRAÇAS
Os miúdos estão lá dentro, no quarto, com uma amiga de sempre. É lá entre eles.
Eu e eles, não apenas os que estão lá dentro do quarto, mas todos eles, os miúdos que se abraçam..
A senhora da casa está fora, uma vez mais, a trabalhar, que é preciso alguém que leve este país para a frente.
Eu, cá estou, manta a tapar as pernas, televisão no silêncio, só para ter alguma luz na sala.
Toca Macy Grey no tocador de música digital, que isto de ter internet é uma coisa do novo mundo.
Este é um mundo novo, disso não tenho agora qualquer dúvida.
É um tempo de massificação da desgraça, um tempo em que é difícil fugir à selva, mas, um tempo de mudança, e por via disso um tempo de procura obrigatória de equilíbrio, um tempo de revolução.
Não há revolução ( pelo menos com sucesso ) sem evolução e eu acredito nos abraços.
Os miúdos estão lá dentro, no quarto, com uma amiga, de sempre. É lá com eles.
Eles entendem-se.
Creio que são maduros o suficiente para se auto-protegerem, que a minha protecção é cada vez mais diluída, nas vidas dos dois, porque esta história é sobre três, os que estão no quarto e outros três, mas só dois é que são meus.
Creio que foi por esse caminho que os temos conduzido ao longo da vida.
Os amigos deles, muitos comuns a ambos, são cada vez mais presença assídua na nossa casa e isso faz-nos bem. Aprendemos.
Aprendemos quando escutamos as conversas em voz alta, aprendemos quando falam sobre a vida, aprendemos a ouvi-los rir às gargalhadas.
Num destes fins de semana, penso que foram dois fins de semana, alguns amigos vieram cá a casa.
Vinham fazer um trabalho de grupo.
Curiosamente, dois fins de semana em que não estava cá a supervisão adulta e falível, sim, falível, é claro, mas responsável e afectuosa, ternurenta e dura, quando assim tem que ser.
Pensei: sim, trabalho de grupo.
Depois veremos, no final do período.
Pensei, mas não o disse.
Pensei mal.
Pensei que tinham vindo para passar umas horas juntos, eles lá se entendem, todos, nos seus próprios dialectos de vida.
Pensei mal, e disso tive consciência quando me foi dado a ver o produto final do trabalho de grupo, em casa, na minha casa, na nossa casa, que é onde o amor está.
É engraçado, como as crianças nos surpreendem, como são cruéis na sua própria verdade, mesmo que adolescentes, ou a caminharem para lá. Mais ainda.
Mais maduros, que isso é a vida, cada qual com a sua maturidade.
Sinto-me de bem com a minha consciência.
Tive a certeza, depois de ver o trabalho que fizeram.
O tema era a violência entre jovens, adolescentes, namorados.
Pertinente.
O enfoque do vídeo vinha na sequência de uma agressão entre namorados, numa escola.
Foi mediatizada, como tudo é mediatizado.
Só não sei se tema obrigatório ou facultativo. Não me ocupou a mente, essa parte.
Desde logo fui surpreendido pelo tema, depois pela forma como o trataram e o abordaram.
Três jovens. Duas raparigas. Um rapaz. Uma curta-metragem carregada de tudo. Está lá tudo.
Eles fizeram um vídeo, com banda sonora de um rapper que admiram, e no qual os três protagonistas eram eles.
O objectivo era deixar uma marca, passar uma mensagem clara, assumir clareza.
Vi ali muita influência da cultura da rua, do bairro, a música, a dualidade e a dicotomia assumidas, a estética.
Vi também inteligência bastante, olhares claros que observam a vida inteira, vi carácter e coragem.
Um nó na (minha) garganta, quando o vídeo chegou ao fim.
Boca aberta, pela inteligência, pela coragem, pela lucidez do olhar, sobretudo pela consciência pragmática de duas miúdas e de um miúdo, confrontados consigo próprios.
E não, o meu filho está lá dentro no quarto, mas não foi ele o protagonista, desta vez.
Foi um amigo e colega delas, de escola.
Andam todos na mesma escola, ela, ele, os amigos. No liceu, da vila, no liceu da vida.
E, tudo isto faz sentido, porque eles nunca andaram em escolas privadas.
Sempre frequentaram escolas públicas, sempre conviveram com quem escolheram para conviver, do bairro, do condomínio, da rua, da vila, do futebol, da ginástica, do inglês, do muay thai, sem restrições, como se isso fosse a lógica das coisas.
O mundo não é uma redoma.
O mundo apenas deixa que se criem redomas, aqui e ali, que quando rebentam, ao mínimo toque de agulha, produzem consequências no mínimo nefastas.
Foi, tenho a certeza, essa liberdade de escolha responsável, que os formatou e empurrou para o início de uma vida diferente da que até então tinham tido.
Crescem como gente.
Já não são os bebés que ocupavam dois terços e meio de tudo, mas que adoravam fazer "tenda", pela manhã, na minha cama. Ainda gostam, de vez em quando. E eu adoro tê-los, ali, junto a mim, aquela eternidade efémera.
São seres humanos responsáveis, no seu próprio registo, adaptados à sua idade, à sua evolução como pessoas, à sua consciência, sempre ajudada por nós, ao seu carácter e verticalidade, à sua vontade e aventura.
Depois, cada um deles, com a sua personalidade, defeitos e virtudes segue o seu próprio caminho, feito de ideias claras e amparo sem fim.
Foi por isso menos surpreendente a foto que tirei, no último fim de semana, no Douro.
Fiquei com vontade de ler mais o poeta, por culpa dela, ela que também participa no vídeo que para aqui me arrastou.
Nunca tinha visto.
Parou de repente. Agachou-se. Leu. Registou. Depois fomos almoçar.
Só reforçou o que eu pensava e estou a escrever sobre os miúdos de hoje, e sobre os miúdos que fomos e esquecemos.
Há revolução nos corações deles.
Há interesses que desconhecemos, há pontos que achamos divergir, mas afinal aproximam-nos, há tanta coisa que parece e tanta coisa que é.
Eles são os da era digital, mas continuam a ter coração, a sentir, a sofrer, a conquistar, no mundo real, cada vez mais real, para eles, para nós.
O vídeo, que resultou de dois fins de semana em minha casa, palco das filmagens com os iPhones, também no jardim e na piscina do "bairro" onde vivemos, devia passar a constar das aulas de cidadania, devia passar nos media, devia ser utilizado para mostrar o olhar de três jovens, de uma geração digital e apanhada por mudanças para as quais quase ninguém está preparado;
Esta geração, na qual eu tanto aposto, para mudar o mundo, para fazer a revolução, este vídeo devia passar a ser utilizado pelas organizações que combatem a violência, não apenas pelas que mencionei, e por outras, o mundo devia, metaforicamente, ou não, ver este vídeo feito por três pré-adolescentes, com cabeça de grande.
É que ele foi feito por actores reais, aqueles que interpretam o papel, a cada dia que passa, que a vida lhes atribui. Os que vivem e sentem na carne e na alma todas as provações, aventuras e descobertas que fazem parte do crescer.
Violência entre os jovens, os namorados, entre pessoas que atravessam a ponte para uma outra idade. Eles sentem assim, como mostram no vídeo. Cumpriram à risca o objectivo, com tamanha desfaçatez, que gela.
Se quiser, o vídeo no fim da página, se quiser, não é obrigado(a) a vê-lo!
Eu vi-o vezes sem conta.
E, sim, escrevo este texto porque acredito na mudança.
Tudo muda.
O emprego, o amor, a conta bancária, até os pneus do carro, que se gastam, tudo muda, e mudar é revolução. Eu acredito na mudança, nesta mudança, na mudança que só eles podem pensar.
Posso já cá não estar para ver, mas isso é a parte que menos importa.
Violência é colocar rótulos, mal colados, colados a cuspo.
Há putos assim. Isso deixa-me acreditar.
Está tudo a mudar tanto.
Até eu!
Afinal este texto é sobre revolução, no todo.
Se pensou que era sobre violência, enganei-o(a), peço desculpa.
Há coisas mais belas do que isso, até mesmo a forma como disso se fala, como aqui, neste texto.
(Se decidiu ver o vídeo, espreite)