ACIDENTE EM PASSO DE CORRIDA
Os gatos têm sete vidas. Hoje gastei uma delas.
Só nos lembramos que a água molha quando chove. Pena.
Deviamos lembrar-nos todos os dias, horas, minutos, segundos.
Talvez fossemos gente melhor, connosco próprios e com os outros, mas faz parte da condição humana, a água molha.
Lembro-me que era perto das oito da manhã.
Foi esta manhã. Foi há horas.
Eu gosto de trabalhar aos fins de semana, quando o mundo inteiro descansa. Trabalho muito mais, mas há muito menos caras e vozes, menos trânsito e filas, menos stress e complicações.
Perto das oito da manhã.
Passei as portagens em Alverca. Tinha terminado a subida, na auto-estrada, já seguia em estrada plana.
Pelo retrovisor reparo num BMW preto lá ao fundo. À frente ninguém.
A pancada foi de repente. Por trás.
Senti-a. Seca.
O meu carro começou a entrar em despiste, aos círculos.
Instantes reveladores. Enquanto circulávamos, literalmente, aos círculos, conseguimos fitar a cara um do outro.
Segundos.
Conseguimos perceber a preocupação de um com o outro, trocámos olhares, em círculos, debaixo de um estranho silêncio.
Sim, durante três ou quatro piões o mundo parou, fez-se um silêncio absorvente.
Vi o azul do céu, vi o Norte, de onde vinha, vi o Sul, para onde ia.
Foi durante esses segundos que nos fitámos, olhos nos olhos.
De repente os dois carros estão encostados, lado-a-lado, como que a ampararem-se.
Deslizaram uns bons duzentos metros assim, colados, como se se conhecessem há muito.
Senti aquela coisa esquizofrénica, quando temos um acidente e o carro anda ali aos trambolhões, até que lentamente se vai quedando, para de repente ganhar força, de novo, energia e violência, de novo, e disparar, embatendo em tudo o que existe e não existe.
Depois do silêncio agarrei-me com todas as forças ao volante, prevendo que ia bater no separador central, e a partir daí o meu carro sería um cavalo selvagem, indomável.
Agarrei o volante com toda a força do mundo.
Já tinha visto os meus filhos, já tinha pensado que não saía dali com vida, já tinha feito a tal “retrospectiva”.
Faz-se mesmo, acredite.
Por chocante que pareça, estava pronto para ali ficar, à medida que o carro se ia quedando, em direcção ao separador central. Esperava por uma pancada brutal, fatal.
Foi tudo em menos de trinta segundos.
Lembro-me de olhar para o lado, controlar a distância para o separador, em cimento, e de ter guinado o volante, de modo a bater com a traseira do carro, e ali ficar.
Porque os milagres existem consegui abrir, a custo, a minha porta.
Já tinha gasto meia vida e meio milagre, nesta altura.
Nem um carro passou, o que evitou ainda mais uma tragédia.
Um minuto depois de tudo isto ter acontecido, virado para o sentido contrário, dirigi-me a um homem vestido de preto que saía do BMW.
Vinha de calções, ténis, camisola de corrida. Percebi logo que ia para a meia-maratona de Lisboa.
Chegado junto dele, no meio da faixa de rodagem, a mesma onde o carro dele abalroou o meu, olhámo-nos nos olhos, em silêncio, demos um abraço tão grande quanto as lágrimas.
Pediu-me desculpas.
Era administrador da EDP, vinha do Porto, ia para a meia-maratona.
Calma lá!
Se ia para a meia-maratona então é porque corre, se corre é porque é boa gente.
Nem eu nem ele tínhamos declaração amigável nos carros.
Tirámos fotos aos documentos e aos seguros, trocámos número de telemóvel e cada um foi à sua vida. Em dez minutos despachámos a coisa.
Ele seguiu para a meia-maratona e eu segui para o trabalho.
Cheguei apenas 40 minutos mais tarde, mas feliz.
Tinha gasto uma vida.
Não estou certo que ainda tenha mais seis vidas para gastar, até porque a ligeira dor na cabeça – o galo está proibido de cantar – e no ombro passam mais logo, quando for correr, por isso não contam. Mas, não estou certo que as tenha.
O carro fico com um dos lados em mau-estado, mas arranja-se.
Mau mesmo foi aquilo que era previsível:
Não corri, pela primeira vez, desde que comecei a correr, a meia-maratona da ponte 25 de Abril.
Era previsível porque sabia que tinha que vir trabalhar, e sim, troco o trabalho pela corrida, de caras. Mas vim e não fui.
Há muito que estava mentalizado para o facto, aliás, a caminho do trabalho nem pensava na corrida.
Só que tive o acidente. Que raio!!
Não havia mais ninguém para me bater no carro?
Tinha que ser um administrador da empresa que patrocina a corrida, equipado a rigor, a caminho da prova?
Tudo se resolve, menos o facto de não ter ido a uma das corridas que mais gosto de ir.
Fui a todas as meias-maratonas da ponte, desde há três anos a esta parte.
Desculpo tudo, o susto, o milagre, a chapa amolgada, as dores, tudo, só não desculpo o resto.
Espero que a prova lhe tenha corrido bem, ao menos.
Daqui nada já lhe pergunto, quando ele chegar para assinar os documentos que faltam.
Ao menos que tenha feito um bom tempo.
Conclusão:
Os problemas que tinha até às oito da manhã de hoje ficaram ali, no meio da auto - estrada do Norte, a seguir a Alverca. Mais logo ainda lá devem estar, quando eu passar de regresso a casa.
Depois do acidente arrumei a felicidade no bolso, meti um sorriso, há muito desparecido, pensei nos problemas espalhados no asfalto e aprendi a lição.
Não morri porque não tinha que ser esta manhã.
Não morri porque tenho sete vidas. Uma está gasta.
O Nuno está a chegar para assinar a declaração amigável e eu tenho que me despachar, hoje ainda quero ir correr e tenho uma moto para ir ver quando sair.
É que isto de andar de carro é muito perigoso.