A TERRA ONDE OS VELHOS MORREM DE VELHICE
(TODAS AS FOTOS SÃO DA AUTORIA DO GATO QUE CORRE)
Sou do contra!
Gosto de voltar a lugares onde fui feliz.
A maioria das pessoas que conheço aplica o mandamento contrário, eu não.
Eu sou feliz longe das cidades grandes - também sou feliz nas cidades grandes, mas longe delas também -, até porque posso delas matar saudade sempre que assim for necessário.
Mas, é longe, que sinto o esplendor. Longe, vivo, descubro, olho, sinto, sou eu, livre, longe.
Desta vez tudo foi diferente.
Voltei ao Alto Douro Vinhateiro.
Livre num pedaço do mundo, que o mundo só admira das fotos dos websites (já não são os postais), mas que lhe desconhece o frio da pedra, as curvas da montanha, as aldeias onde se morre de velho, o novo há muito que se foi embora, a maioria desconhece a pisa, o mosto e o vento cortante do mais alto dos miradouros.
A imponência, a resiliência, a solidão, a coragem, a vinha e o vinho, os socalcos e as entranhas, o granito azul e a água que pinga, em marcas brancas sobre garrafas que dormem, milhões, de anos diferentes, numa hibernação sacramental, fria, mas impediosa.
Livre num pedaço do mundo, que o mundo só admira das fotos dos websites (já não são os postais).
Fica lá para o nordeste, aquela terra exacta, rodeada de montanhas divorciadas do rio, que as admira lá de baixo, a terra exacta que se curva ao sol que a banha em todo o corpo e curvas, o fresco que a acalma, a chuva lhe lava a alma e lhe molha os olhos. É ali que é assim e em mais nenhum outro lado.
Já passaram mais de dois mil anos.
O vinho, a vinha, o rio, as gentes, as aldeias e as histórias.
Até mosteiros, as Ordens andaram por ali acima, enquanto o Douro, lá em baixo, não dava tréguas a ninguém. A religiosidade, a devoção, a entrega e a beleza.
Naquelas curvas encontra-se a estrada mais bonita do mundo.
Foi (recentemente) assim considerada, porque o rio acompanha-a ao longo do seu próprio corpo, enquanto na outra margem são visíveis as cores, as linhas da terra, marcadas à mão, cavadas por braços torrados pelo sol.
A linha e o combóio que vai para o Pinhão, que tem um cais maravilhoso.
- "Podes correr aqui, olha, ali em baixo, na barragem é a partida da meia maratona do Douro, a Running Wonders, só que tens que ter cuidado. É a estrada mais bonita do mundo, mas não tem bermas".
-"Isso reparei eu. É uma pena, vou para a cidade".
E, lá fui eu, até ao lugar onde já tinha sido feliz, porque a estrada mais bonita do mundo não me quis.
Peso da Régua e na consciência.
Pista ao longo do Douro, passando pelo cais dos cruzeiros, pelos pescadores amadores, gente que caminha, corre, árvores do lado direito, do outro lado a margem de onde vim, pela estrada mais bonita do mundo, que não me quis.
E, pontes.
Há muitas pontes, e não se paga para as atravessar.
As gentes dali sabem o que custa passar a margem e subir à montanha.
Há perto de um ano passei um fim de semana na Régua e corri na pista mesmo colada ao hotel. A pista onde me encontrava quando decidi escrever este texto.
Um ano depois voltei a correr lá, a sentir tudo de novo, um lugar no qual reconheci todos os cantos, detalhes, marcas, cheiros, parecia que nunca dali tinha saído.
Decidi correr até ao final do circuito, ao contrário da primeira vez em que me fiquei pelas bandas do hotel.
Descobri um pouco mais sobre o rio, encimado pelo museu do Douro, as quintas na outra margem. O Capa Negra imponente, no alto do seu chapéu!
Há ali gente que tem ganho à história o seu próprio lugar, naquelas montanhas disfarçadas de serpente, onde os carros quase não passam, quando dois, a não ser que o da direita se atire lá para baixo.
Estou certo que se isso acontecesse o carro voava pelo vale fora.
A corrida custou-me, era de manhã, mas só as pernas se queixaram.
Eu acho que de manhã é na caminha, deixe-se disso, não sou nenhum desportista, pratico desporto por puro prazer.
Para comer.
Ali comi tão bem, como nunca.
Em maio volto, para a meia maratona. Prometido.
Devo confessar, nunca visitei o Douro, no Porto.
O Douro dos turistas, das visitas guiadas às caves, da Ribeira e dos navios de cruzeiro do senhor que quer ser astronauta..
Parece mentira, mas nunca lá fui.
Do Porto para cima sim.
Passei a conhecer o rio, palmilhei quilómetros pelas margens, rio abaixo, rio acima, como canta a canção.
Não é o mesmo rio.
Ali, o rio e a montanha não se dão.
Dão-se, mas é como um casal em permanente desalinho, ao contrário dos socalcos, nas encostas serpenteantes.
Foi o Douro da montanha que me foi oferecido, porque o rio dali nunca sairá, poderei visitá-lo sempre que assim tiver que ser.
Património Mundial da Humanidade.
Bem dito, da humanidade.
Vamos então subir os degraus das montanhas, onde se planta a vinha, de onde nasce o mais exclusivo dos vinhos, porque só ali ele nasce, vive e morre, como os velhos da montanha do Douro.
Vamos subir à montanha da humanidade.
Dentro do carro todos exclamavam:
- " Olha ali, pai, brutal!".
- " Zé olha lá em baixo!"
-"Malta, curtam, vou a conduzir com cuidado, porque apesar de tudo parece que aqui não há vôo livre, sim..."
Não adiantou.
Não lhes disse, mas pelo canto do olho ia ficando absorvido cada vez mais, à medida que subia a montanha.
Chegado ao alto, a Armamar.
Os de lá chamam-lhe a Terra das Emoções.
Eu chamo-lhe terra de contrastes.
O verde dos extensos pomares de macieiras contrastam com o verde escuro da vinha.
Armamar é a capital da maçã de montanha. Ali se cultiva e produz 80 mil milhões de toneladas de maçãs, todos os anos.
Os que ganham a vida com a maçã contrastam com os que ganham a vida com a uva.
Tal como com a vinha, também no alto da montanha, em Armamar, as maçãs nascem de um chão em desova amena. O clima encarrega-se do que falta.
Os políticos contrastam com os políticos.
O presidente da câmara, um jovem da minha idade (se tiver mais, desculpe-me), com quem almocei durante umas três horas - e com mais amigos -, conseguiu estar comigo o tempo suficiente para vermos dois jogos de futebol, sem conversar sobre política pura e dura e sobre jornalismo.
O cabrito contrasta com o peixe do rio.
O cabrito da montanha chega à mesa inteiro.
Abrem-lhe desde o ventre a garganta ( o animal está morto e assado no forno, não se escandalize), e de dentro dele tiram as entranhas, previamente cozinhadas, as miudezas, as batatas em pequenos quadrados, o molhos.
Junta-se ao arroz e aos grelos, porque a alheira tem carne, o vinho sabor e o pão mata qualquer dieta.
A montanha contrasta com o rio.
E, como Armamar, existem outros sítios na montanha, onde os barcos de cruzeiro não despejam turistas, que despejam lixo, mas que se deslumbram, porque assim tem que ser.
Tudo ou tanto, mas muito.
E, as pessoas contrastam com as pessoas.
Olham de forma próxima, sorriem naturalmente, falam com tal sotaque que torna muito mais perceptível a língua, e recebem como poucos.
Na montanha não há centros comerciais, carros de luxo em catadupa, estradas largas e cuidadas.
Na montanha há mulheres que se sentam nas pedras, na pausa para a merenda, homens que esperam a carrinha que os leva a casa, ao fim da tarde, o filho que ajuda o pai a observar a macieira do quintal, as caves de espumante, de vinho do Porto, a vinha que espalha o seu manto de rainha de um e do outro lado do seu rio.
O rio que a ama, mas que não quer viver com ela.
O rio que vê os velhos morrerem de velhice e os novos que já partiram.
O rio que tem a estrada mais bela do mundo e a linha e combóio mais ternurenta da Terra inteira.
O rio que antes não queira barcos dentro de si, mas que agora cede a tudo e com todos vai, venham eles de onde vierem.
Os estrangeiros.
Um estrangeiro, meu amigo, velho jornalista espanhol, premiado, velejador colorido, de barbas brancas, disse-me, a propósito da fotografia principal deste texto, que parece uma pintura de "El Greco".
Respondi-lhe que era dos filtros, adoro usar filtros, saturação, sobretudo.
Ele acreditou, mas eu menti, mesmo sem filtros parece "El Greco", afinal tudo foi desenhado à mão, pela mão do homem.
Só que o rio que não deixa a montanha ser feliz.
E, não tinha que ser assim.