A MINHA CABEÇA A ANDAR À RODA
“O que é que andas aqui a fazer?”.
“Existo”.
“Este pode ser o ponto de partida. Partimos sempre para chegar”.
“Existo”.
“Como qualquer um de nós, também tu já imaginaste alguma vez encontrar o Santo Graal da vida”.
“Não, como poucos de nós, limito-me a existir”.
“Existir ou viver?”.
“Uma e a mesma coisa”.
“O Santo Graal da Vida, a sua busca, é a corrente que faz o rio fluir para a sua foz. O homem busca algo, busca a vida”.
“O homem busca algo na vida, ele não busca a vida, ele é incapaz de, apenas, existir.”.
“Isso torna-o em alguma coisa?”.
“Transforma-o em um indigente da alma, num pedaço de matéria, ávida por agarrar o Graal, que ninguém jamais agarrou, nem Jesus.
Era fake news, essa coisa do Cálice”.
“Estamos na era da pós-verdade, verdade?”.
“Mentira.
Estamos na era da mentira, da crueldade intelectual, na era das fake news, que matam as real news, que se misturam, em cumplicidades obscenas, em hard news híper-reais.
Mais que a era das fake news, vivemos a era das híper-real news”.
“E, dizes apenas que existes?!”
“Viver, existir é viver.
Começaste por perguntar o que andava aqui a fazer. Respondi-te: existo!”.
“E eu questionei se existir era viver!”.
“E eu respondi afirmativamente.
Insististes em puxar-me para o banal. O Santo Graal, o mal do mundo, que o mundo julga ser o seu mais precioso bem”.
“Achas, por isso, que a maldade existe?”.
“Não é a busca que move o homem, o homem que não vive, que não se dá conta que existe, a busca pelo seu Santo Graal personalizado?”.
“E, isso torna-o mau?”.
“Isso descompensa os tempos. Desde o início do tempo.
Abriga o pior do diabo.
Passeia-te pela política, senta-te na esplanada da Justiça, na bancada do futebol, liga-te, por segundos apenas, ao mundo virtual, espreita a janela das notícias, e vê se ainda lhes descobres as diferenças. Faz tudo isso”.
“Porque cada um busca o seu Santo Graal?”.
“E, perde a capacidade de olhar, a nada, olha a nada, e pisa, e passa por cima e por baixo, e chuta para o lado, e descarta, e empurra, e violenta, e viola, e infringe, e impune, sempre impune, mesmo no dia em que é algemado”.
“Isso era uma prisão da alma, pensar que a busca do Graal é o que move cada cabeça”.
“Vivemos, por dentro. Enquanto não nos limitarmos a existir”.
“Toca a utopia!”.
“Não é o Santo Graal isso mesmo?”.
“Depende, se tiveres um Porsche, uma casa enorme, uma conta bancária sem fundo, uma vida feliz, é isso mesmo, poder, ter”.
“E, não existes.
Morres por dentro, enquanto festejas por fora”.
“No fim, morremos todos!”.
“E, não acredito que alguém se volte a lembrar do Santo Graal, puta que o pariu!”.