VOZES DE COMANDO
A Marshall toca à sua vontade.
Alguma vez tinha que ser.
Dei-lhe a primeira folga na vida.
Random, tal e qual a vida, como tem que ser.
Ao fundo, o som da máquina de lavar louça, como se fosse um monstro marinho que vem à superfície e faz “glughrgh” (isso, é imaginar um monstro marinho a fazer“glughrgh”).
Mas, passa bem, o som da máquina, lá ao fundo e, como numa espécie de hipnose, só a música é perceptível, todos os outros sons limitam-se a existir.
Rodeiam e fazem parte do ambiente, mas não se destacam.
Como a multidão. Há sempre um que olha para a frente, enquanto todos os outros olham para o céu.
Escrevo muitas vezes muitas coisas que não fazem sentido, eu sinto.
Escrevo-as porque fazem sentido.
Escrevo porque não têm que fazer sentido nenhum.
Como hoje.
Hoje foi um dia bom.
Reencontrei um amigo, tínhamos umas conversas a ajustar, como em jeito de contas.
Atrasou o almoço e tomámos café na esplanada.
Quanto ao mais, foi como qualquer outro dia de folga, a ida à missa, em passo-de-corrida, que eu sou muito religioso nestas coisas e trabalhar, até nas folgas, é verdade.
E, sonhar.
Faz parte do dia.
Sonho imenso acordado.
Gosto de sonhar com os olhos abertos e os pés nas nuvens.
Sonhos são sonhos e cada um tem os seus.
Há quem sonhe com os olhos fechados, mas não é aquele power!
Sonho com almoços infindáveis, quando era apenas um café entre amigos, sonho com conversas que se atropelam de vontade, por dentro da tarde e dos corações, sonho com uma praia, verdade.
Uma praia e gente vestida de branco.
Sonho em ter um motorista, não para parecer petulante, mas porque odeio conduzir.
Logo eu, que fui condutor na tropa, imagine...
Uma vez estava de serviço como CDU (Condutor de Dia à Unidade) e calhou-me na escala ir buscar os recrutas à meia noite, que o dia tem sempre dois meios dias.
Eram uns 45.
Acontece que fui buscá-los com um autocarro. Juro!
Foi a primeira e a última vez.
Mas, não por mim, embora o alívio maior até tivesse sido meu.
O autocarro tinha as longarinas assimétricas, empanadas, mesmo e, para levar a frente do autocarro de passageiros na estrada meia traseira ia na berma.
Aquilo, via eu pelos espelhos, era um filme de terror hiper-real para aquela gente toda.
Eu ria, aquele riso nervoso, mas meio sarcástico, a ver quando é que aquilo terminava, mas nunca dei parte fraca, eu é que era o condutor
Não contente, quem me meteu o serviço na escala, a estrada para a base aérea era metade às curvas e a outra metade também às curvas.
Minto.
A recta da base era a direito.
Aí, fui em ponto-morto até à porta de armas.
Ao meu lado, em lugar de destaque, o SDU (Sargento de Dia à Unidade), que era o comandante do autocarro – eu era só o tipo que conduzia aquilo pela primeira vez – , e que estava branco.
Morto-vivo, sem força na voz para me dar qualquer instrução.
Não me lembro do nome dele, mas lembro-me da cara de horror, ahahahaha.
A esta distância creio até que tería os olhos meio revirados, que só voltaram ao lugar quando, finalmente, travei aquilo, na parada, e abri as portas da frente e de trás para descarregar os maçaricos.
Ia tudo a passo lento, como que a flutuar, num pesadelo (ahahahaha, de novo).
Os 45 tinham o olhar mais assustado, naqueles olhos, que jamais vi e eles jamais se esquecerão (raramente uso este tempo verbal).
Eu dei o meu melhor. A sério, conduzi aquilo mesmo com alma.
Conduzir um autocarro é uma sensação de poder absoluto, nada nos faz parar, nem o sargento de dia.
Era o que mais faltava, cortar o barato ao condutor.
Mandassem o autocarro para a oficina antes de me o darem para as mãos.
Foi “one shot”.
Nunca mais fiz serviço com autocarros.
Passei a ir às cinco da manhã à vacaria buscar as bilhas do leite para levar para as messes.
Àquela hora dava para fazer umas cenas com a WV “Pão de Forma”.
Das dez bilhas conseguia sempre entregar umas três ou quatro cheias.
Na volta da vacaria havia uma descida e descer aquilo em quarta e travar no cruzamento, ainda tapado pela noite, era uma sensação brutal.
Escutava os galos.
O galo é o único animal que nuncia o dia ainda de noite.
Depois, passava a manhã a limpar a viatura, até à hora de ir levar os civis a casa.
Cinco da tarde, em ponto. Na tropa não se brinca e respeita-se a voz de comando sem questionar. Aprende-se um bocado, lá. Sobre valores. Adiante...
No caso dos civis não havia problemas, era uma carrinha de nove lugares e verdade seja dita eu tinha carta de pesados e ainda tenho. Condutor militar não assusta civis. É como a chuva que não molha militares. Experimente um TFM (Treino Físico Militar) à chuva e depois diga. Até lama tira dos dentes.
Também durou pouco tempo.
O prejuízo leiteiro era tal que passei a ir buscar o preso todos os dias. E, a levar.
Isso eu gostava.
Ia a Alcoentre na WV azul, às 5 da manhã, pegava no preso, trazia-o para a base, deixava-o na pecuária e ao fim do dia ia levá-lo, para a sua própria liberdade, fechada atrás de um grosso portão.
Aquilo corria bem. Acho que tinhamos ali um "crushzinho de amigos", se corria bem, vem sempre alguém mexer. Típico.
Pouco tempo depois passei a fazer serviço de MDU (Mecânico de Dia à Unidade), uma espécie de DDT (chefe de secção dos transportes) durante 24 horas por dia, sobretudo, entre o arrear e o hastear da bandeira.
Uma promoção, acho que ainda hoje não há quem se esqueça daquele autocarro do terror.
Fazia zero.
Passou uma vida e eu gostava de ter uma pão de forma azul.
Obviamente, isto tem a ver com os sonhos.
Cada um tem o seu.
Daí ter dito que gosto sonhar com os olhos abertos e os pés nas nuvens.
Faz sentido.
Quando tiver a minha WV "Pão de Forma" vou voar com ela para o sítio onde os carros voam.
Acho que vou mudar a playlist da Marshall .
Está na hora de mudar.