ESTRANHA FORMA DE VIDA ( PARA A MINHA AVÓ QUE MORREU ESTA NOITE)
Normalmente a minha mãe, quando me liga, começa por dizer: “filho, está tudo bem, estou só a ligar para...”.
Na noite passada, a minha mãe ligou-me para me pedir para lhe arranjar o número de um dos meus tios, para dar à minha tia mais velha - eles são seis irmãos - para ser ela a avisar todos os outros irmãos: “a tua avó morreu hoje”!
A minha avó Helena sempre me fez lembrar, fisicamente, a Amália Rodrigues que, ela venerava, como a outras fadistas, adorava ouvi-la, e o que eu ouvi Amália, na casa que era da minha avó e de mais de uma dezena de gente, quando era pequeno. Crescemos, parte do nosso crescimento, naquela casa, tios, netos, sobrinhos, primos, avôs, avós, uma casa cheia de gente.
De todos os netos, e somos uma mão cheia deles, eu sempre tive uma relação diferente com a minha avó.
Ela gostava de todos, por igual e, cada um de nós desenhou-a à sua própria imagem, eu também.
A minha avó Helena morreu esta noite, morreu a um domingo.
Os domingos são sempre dias profundamente marcantes.
O dia diferente de todos os dias.
Nesta narrativa da minha relação com a minha avó Helena, cumpre dizer que, eu tive três avós.
A minha avó Ana, que era só minha madrinha, mas foi quem me criou até aos onze anos e com quem vivi e por isso era “a minha avó”.
A mãe da minha mãe, que conheci vagamente, mas que nunca passou de uma desconhecida.
E, a minha avó Helena, a mãe do meu pai.
Quando o meu avô, Palatino, o patriarca, morreu, a minha avó tomou conta das rédeas de uma família cheia de “particularidades”.
Eu, afastei-me dessas “particularidades” há dezenas de anos. Por opção e porque a vida me levou por caminhos diferentes.
A minha avó tentou o melhor, à sua maneira, bem ou mal, à sua maneira, e todos nós crescemos, tornámo-nos homens e mulheres, vivemos, experienciámos, e de repente somos adultos.
E, tudo se relativiza, em memória, com a memória de cheiros, de manhãs de sábado, no chão da sala, do peixe frito, com pão com manteiga e café Tofina.
Amália, em fundo, eu, no quarto do fundo, que era da avó velha e que foi meu, quando eu ficava na casa do pátio do Alfredo Lopes, onde vivia a minha avó Helena.
Eu relativizei o meu afastamento, a erosão que o tempo provoca, sem nunca perder de vista a minha avó Helena, a mulher que, bem ou mal, à sua maneira, tentou fazer navegar um barco, num mar seco.
À sua maneira e, isso, perdoa o que haja para perdoar e afasta fantasmas de devolve-me às memórias boas que, eu, da minha avó Helena é isso que irei para sempre guardar.
Esta crónica é-lhe devida e a mim também, é a primeira vez que escrevo sobre a minha avó Helena, o neto mais velho (as minhas primas mais velhas são netas), que sempre teve a sua própria relação com a sua avó, estranha relação, mas a sua. Respeito, por isso, a dela.
A família sempre respeitou essa minha distância, o que me faz crer no que vou escrever a seguir.
O meu afastamento da família, por razões minhas, levou ao afastamento da minha avó. Ambos. Natural.
Mas, nunca lhe perdi de vista os passos, porque a minha mãe, nora da minha avó, se comunicava, regularmente, com a minha tia, com quem a minha avó vivia, agora, com os seus 90 ou mais anos.
Tenho uma tia da minha idade, dez meses mais velha e, também é a ela, à minha tia Tuxa, que dedico esta crónica, ela sabe porquê, dentro do seu coração.
Gosto muito dela e ela sabe disso.
Gosto muito da minha avó, mas não sei se ela sabia disso.
Muito.
O meu afastamento fez com que estivesse sempre fora do processo, salvo excepções.
Por isso, não conheço a relação que a minha avó Helena, a minha Amália Rodrigues, manteve com os meus primos, os outros netos.
A minha relação foi esta, assim.
Nesta fase desta crónica poderá existir o sentimento de distância, frieza, insensibilidade, admito.
É errado.
Esta noite, quando a minha mãe me ligou e me disse que a minha avó tinha morrido, entrou-me pelas narinas o cheiro dos paposecos torrados na torradeira antiga, carregados de manteiga, com carapaus fritos dentro deles, e aquela caneca de café Tofina, a fumegar. O cheiro espalhava-se pela casa, como neste momento.
Eu e os meus primos, acabados de acordar, no chão da sala, tapados com cobertores, a ver a televisão, à espera que os pais regressassem do mercado, do café, do largo da praça, ladeira acima, nas manhãs de fim de semana, quando o Filipe “maluco” não se lembrava de despejar sacos do lixo, lá de cima da muralha do Castelo, para cima do Fiat 128, do meu avô, estragando-nos as manhãs, que ainda assim, nos faziam rir à gargalhada. Eramos pequenos e inocentes.
Perdi o rasto ao Fiat azul do meu avô Palatino.
Ainda sinto o cheiro das torradas.
À tarde íamos brincar para o Castelo, subíamos e descíamos a ladeira do Zé Lourenço e bebíamos água, cá em baixo, no fontanário a seguir à oficina.
A minha avó Helena nunca me tratou como o neto preferido.
Avó, eu sei que nunca te tratei como avó preferida.
Mas, hoje, senti muitas saudades de ouvir Amália Rodrigues, quando chegava da escola e a tua casa estava fresca.
“Não comas os iogurtes todos que a tua tia Tuxa também tem direito”!
Olha, dá um beijinho meu à dona Amália, avó.
Outro, para ti, também.
Nós os dois, apenas nós os dois, sabemos como escrevemos a nossa história.
E, não te preocupes, eu cuido do meu pai, fica descansada.
Dá um beijinho ao avô Palatino e diz-lhe que lhe sinto a falta.