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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

09.05.21

ENGANOS E JANELAS ABERTAS


The Cat Runner

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Hoje, enquanto arrumava a cozinha, depois do almoço, tardio, como sempre, entrou-me um pombo pela janela, aberta, por onde deixo chegar a brisa calma.

Nem sei bem explicar porquê, mas convidei-o a sentar-se, para que não se sentisse um intruso, que nos invade por cima e por baixo, pelos lados inteiros. Um intruso que vem de um mundo que nenhum de nós conhece.

Ofereci-lhe um café e ficamos ali à conversa, os dois.

Eu e eu. Eu e ele.

Este é o diálogo:

 

  • Há coisas que tu não sabes, mas gostei que tivesses aparecido...

Manteve-se em silêncio...

  • A minha janela estava aberta porque a coisa que eu mais queria era que tu viesses, tinha a certeza que vinhas, porque tenho muitas certezas, sabes, por vezes sinto-me só, os homens, por vezes, sentem-se sós...

Nem uma palavra, apenas me olhava, de alto a baixo, à sua estranha maneira, um olhar crítico, sério, mas carregado de ternura estranha. Estranhamente.

  • Sinto-me só, mas feliz. Só que às vezes faz-me falta alguma companhia, das coisas que tu não sabes, uma delas é que eu gosto de falar. Não falo pelos cotovelos, mas tenho o coração ao pé da boca, sometimes sweet, sometimes ácido, porque o coração fala muito mais que a boca, se não sabes, agora, ficas a saber...

Pela primeira vez notei-lhe um ar de surpresa, mas nem uma palavra lhe consegui arrancar. O café ia delicioso, quente o quanto-basta para não lhe queimar mais a alma.

  • Deixei-te entrar, por outras razões, porque me fui habituando a ver o teu voar, tu é que não sabias, os teus tons cinza e púrpura, brilhantes e fui aprendendo a gostar de ti.

Preparava-se para abrir, finalmente, a boca, que não para saborear o café, mas não deixei, era a minha vez. Se assim quisesse poderia ficar mais tempo, se não quisesse podia partir, agora era a minha vez.

  • Acho que não aprendeste a gostar de mim como eu aprendi a gostar de ti, faz sentido, tu voas, em caminho pelo caminho que trilhei, caminhos tão diferentes, almas tão diferentes, que me faz achar que vieste só porque sim, mal seria se daqui fosses, sem um café, apesar de tudo. Saboreia-o, pela última vez, a não ser que queiras voltar e a janela continue aberta. É contigo, já te disse que gosto de companhia, mas devo dizer-te...

Disse-o num tom que lhe pareceu ameaçador, mas que não mais quis ser que um tom doce, como a batata-cor-de-laranja e suave como o toque aveludado dos cogumelos.

  • Devo dizer-te que a minha janela não está sempre aberta, fecho-a quando saio, porque no teu céu há muitos pombos a voar e eu só me agarrei ao teu voo, vieste como um intruso, bastas-me. Olha, lá para fora, para os beirais e para as ombreiras, consegues vê-los, perfilados, a aguardar o momento certo?

Se não voltares mais, deixa-me uma pena tua, a mais brilhante, para guardar nas páginas do livro que estou a ler.

Serás o meu marcador, porque a tua chegada marcou-me, disso não tenhas dúvidas.

Acredito que não voltes, porque o céu é “gigantemente” azul e os voos rasantes, por vezes altos, fazem-te enganar na janela. Viste por engano.

Com isto, tinha passado uma tarde inteira, um dia inteiro, uma semana inteira, meses inteiros, numa conversa que parecia interminável, quase eterna.

No entanto, eu ainda mal tinha começado. Ele não deu conta. Queria voar mais. É a sua essência.

Tinha a certeza que me tinha entrado pela casa adentro, por engano.

  • Deixa-me dizer-te...

Não esperou, olhou a janela aberta e partiu.

  • Deixa-me dizer-te, obrigado, por teres vindo...

Tenho a certeza que chegou a ouvir-me, ainda que tenha disfarçado, enquanto o eu olhava o seu voo, o seu voar, para lá, para muito longe, para um mundo que é só dele. Deixei-o ir...

Podia ao menos ter dito obrigado, pelo café.

Não importa, ofereci-lhe aquele café e a minha janela aberta, porque ele entrou por ela, mesmo que se tenha enganado, porque foi a janela que escolheu, desta vez, entre tantas.

Vesti o fato de macaco e fui para a fábrica.

A vida obriga a perceber que, na fábrica, há sonhos para construir e um homem tem que ganhar a vida, até por isso.

A vida ganha-se!

Com tantos pontos de exclamação e reticências...

Dizem que é a coisa mais difícil da vida, viver.

E, lá fui, seguindo o seu rasto, perdido, como eu, porque é domingo e os domingos afagam-me o sorriso e secam-me o olhar.