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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

31.05.21

NÃO SEI PORQUE É QUE O AUTOR ESCOLHEU ESTA FOTO PARA ESTE TEXTO, FICA JÁ A DICA


The Cat Runner

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A vida cruza-nos com pessoas incríveis.

Noutra vida conheci um tipo fantástico, coisa rara, mas que acontece.

Era uma tipo muito diferenciado, tinha a ver com ele próprio. Como quando dizemos "é lá metido com ele próprio".

Tinha uma coisa boa, entre algumas outras coisas boas, saía sempre bem dos relacionamentos. Aquilo parecia um marcador de grandes penalidades infalível, até custava a acreditar. Magia pura, aquilo.

Sempre como amigos. Sem excepção. 

Era uma coisa inacreditável, porque ele insistia em ter relacionamentos. Uns atrás dos outros durassem o tempo que durassem. Queria lá ele saber disso.

Aquilo era uma coisa que ele até gostava de evitar, mas não evitava.

Quando as coisas chegavam ao fim a amizade ficava sempre intacta de ambos os lados.

Dava-lhe uma certa dose de orgulho, mas não era isso o mais relevante nele.

Era quase como uma espécie que é “aquele amigo” com quem elevámos a intimidade de tal forma que sabemos todos os seus mais profundos segredos;

Se ressona, por exemplo.

Se gosta mais de doces ou de salgados.

Se usa pasta de dentes com flúor ou sem flúor.

Se leva saco próprio ou paga dez cêntimos por um saco ou mais do que um, no supermercado.

Se sabe encher o depósito do limpa-vidros do carrou ou confunde com o tampão do líquido de refrigeração.

Coisas dessas, privadas, cúmplices, que elevam tudo para um patamar nunca antes visto em todo o cosmos e fora dele. Adiante.

É “aquele amigo” que sabemos que podemos confiar nele, porque são lá coisas entre eles.

Mas, recentrando o tópico da narrativa, ele saía sempre de bem e a bem, de todos os relacionamentos.

Não é uma coisa normal. Havia ali pistas para explorar.

Por entre caminhos mais lixados, ele encontrava sempre o caminho menos lixado, mas sempre lixado e, se calhar, até gostava dessa parte do jogo, a parte mais lúdica, não sei, isso nunca lhe perguntei.

Um dia perguntei-lhe, mas sem lhe dar quase tempo para pensar:

  • Porque é que em vez de teres “one night stand” metes-te em relações e depois tens imenso sofrimento para sair delas e ainda por cima ficas amigo delas e elas tuas amigas, só mesmo para eu tentar perceber, porque necessidade tu não tens nenhuma, gostas de sofrer, masoquista, tu és masoquista, sado-maso?”.

Responde-me assim:

  • Eu tenho “one night stand” de vez em quando, mas as relações são mais sedutoras.

Digo eu:

  • Não me faz sentido, nenhum.

Diz-me ele com aquela voz segura, perceptível, baixa, semi-rouca:

  • Quando eu morrer hei-de ter funeral com mulheres, as mais belas, inteligentes, marcantes e sedutoras da história desta nossa humanidade. Um funeral bonito, pá.
  • Ui, nem lembra ao diabo, mas até faz algum sentido, mas não faz mais do que isso...
  • Isso é que faz. É assim que serei recordado.
  • Porque tiveste um funeral cheio de mulheres criteriosas?
  • Não, tolo, porque morri! Quando morrer, claro.

Ainda hoje penso nisto que ele  me disse.

Acho que ainda não morreu, e não desejando a morte a ninguém, nem metaforicamente, quando ele morrer eu vou ao funeral, isso é garantido.

É, como eu disse, ou não é, um tipo espantoso?

Atrevo-me a dizer que sim.

Eu cá queria lá saber de amizades. Não tinha essa capacidade desenvolvida em mim.

Muito menos de morrer, que ainda é cedo. 

Ainda hoje está a começar a semana.

 

27.05.21

ENTRE UM ROBALO E UM CIGARRO


The Cat Runner

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Gosto de jantar a dois tempos.

Gosto de fazer tudo a vários tempos, dá mais prazer, que sofrimento é caminhar sobe lava a sair de um vulcão qualquer.

Há quem não goste, mas eu gosto de fumar um cigarro a meio de um jantar, se ele estiver a ser agradável. O jantar, o cigarro.

Não vejo nisso uma falta de respeito, nem um não saber-estar, nem uma ignomínia, muito menos um pecado, pecado talvez, por causa do prazer, ter prazer é pecar.

Coisa que não gosto é de ouvir arrotos e dizem que os orientais levam isso como desaforo, no fim de uma refeição, se ninguém fizer aquele barulho meio grotesco, acompanhado por um leve acenar de cabeça, frente, trás, um ténue engolir nada, com a mão entre o queixo e a maçã de Adão e de Eva e um sorriso tão fake que nem os orientais se apercebem.

O prazer que provoca justifica todo o risco que se corra.

Tenho sempre um conflito, permanente – se é sempre é permanente mas quis reforçar – não gosto de algumas coisas.

Não gosto, vou lá fazer o quê?

Não gosto de ter gordura à volta da cintura e de tempos-a-tempos, páro de fumar, de comer coisas inapropriadas (se fossemos falar sobre isso...) e decido ser saudável.

Tudo no seu tempo. As lontras hibernam (as lontras não sei, os ursos hibernam ), ponhamos as coisas assim, desta forma.

Considero-me uma lontra e hiberno.

Nos diferentes tempos.

Há quem não goste de tanta coisa e goste de tão pouca coisa, não sendo um pecado é um descaso.

Gosto de cozinhar.

Não sei, mas gosto, há pessoas assim, que gostam mas não sabem, que sabem, mas não gostam, mas a cozinha ajuda.

Grelhei dois robalos, fiz uma salada, que dividi pelos quatro cantos do prato, comi à vez, os robalos. Primeiro um e dois cantos do prato.

Depois o outro e a salada que fiz com kiwi, tangerina, cebola-roxa, cenoura, alface, molho inglês, ervas aromáticas.

Entre um e outro robalo fui à varanda olhar o rio e fumar um cigarro.

Hoje, antes de jantar, decidi que vou começar a fazer cross-fit e vou entrar na linha, que o verão está aí e a pessoa tem que se apresentar bem, o que sería?

Estou só a dar as últimas, estou a falar do cigarro...

E, se não fossem estes meus gostos tão chocantes, como amar fumar um cigarro durante uma refeição agradável, não tinha escrito esta crónica, entre um robalo e outro.

Estavam deliciosos, os robalos. A salada estava como a minha vida. Misturada, áspera, gulosa e saborosa.

O jantar estava agradável. Está tudo justificado.

Mesmo que fosse eu a minha própria companhia, ao jantar.

Mas isso foi ontem.

 

26.05.21

O HÁBITO FAZ O MONSTRO


The Cat Runner

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O ser humano é de uma genialidade brutal e até chocante.

Habitua-se.

Habitua-se a tudo.

A sua genialidade encerra aquilo que ele entende ser a sua realidade perfeita, o espaço e o tempo que ele idealiza.

É brutal porque desvenda uma inesperada capacidade de rasgar cortinas e deixar-lhe entrar a luz, por ali adentro, dele.

Chocante, esta pauta desassombrada, por isso mesmo, pelo desassombro.

E, ele vai-se habituando, ao ritmo dessa pauta que se revela uma pauta em branco, também por isso, chocante, na qual o improviso é permanentemente escrito e apagado. A esse ritmo.

Depois de aquela luz entrar por ali adentro, dele, dissipa-se em sentidos contrários, o que não conhece.

Sair de dentro, olhar em redor, para dentro, também, ficar a olhar.

Primeiro tentar perceber toda a floresta.

A árvore vem com o tempo.

São, como as faces do amor, milhões, de árvores, de florestas, e rostos que habituam, porque o ser humano habitua-se.

Não fosse o facto de me ter mudado para a minha casa há uns meses, depois de longo tempo com obras ruidosas, que faziam tremer o prédio, tanto ou mais como o comboio de mercadorias das quatro da manhã e não tinha compaixão com as obras que começaram aqui mesmo na casa ao lado.

Isso permitiu-me perceber o que estava em redor, tendo eu saído do centro, para olhar, descentrar.

Diz que acabam sexta feira, cá para mim podem aprimorar a obra.

Parece que vivo em plena guerra, com o barulho dos obuses, dos tanques, dos aviões, até, das metralhadoras, caraças...

Diz que é só até sexta feira.

Já sinto saudades.

Já me tinha habituado.

 

 

24.05.21

QUE PARE O TEMPO


The Cat Runner

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“Ouço” sempre as horas, anunciadas, hora-a-hora, pelo sino da igreja.

Vivo na cidade onde se escuta o sino da igreja dar as horas, que deviam guiar-nos pelo tempo dentro.

Hora-a-hora, sem dó nem piedade, porque o relógio, mesmo parado, dá a hora certa duas vezes em cada dia, em cada noite e isso é um ensinamento que devemos guardar, até para lá do que idealizamos para nós, hora-a-hora.

O que eu queria tanto...

É assim que a vida vai indo e passando e afrontando e recompensando e traindo e amando e sendo noite e sendo dia e doce e a amargo e aventura e paz. Ali, mesmo ali à frente, a paz.

Quando o sino me diz a que horas ando invado-me de uma estranha e rude paz e aumento o volume da música, gosto de estar ali a ouvir música, enquanto degusto um smoke, enquanto, sentado, pernas encolhidas, dou uns toques com o pé no gradeamento, a música encarrega-se da viagem, de me levar até ali, algures.

Que horas são?

São as que eu quiser que sejam até que o sino da igreja me obrigue a aceitar o seu próprio tempo, impondo-me um rasgo de alto a baixo. Impõe-me o tempo!

Depois, vem a noite.

Enquanto fumo mais um cigarro, com as pernas encolhidas, na varanda com vista para o rio, escuto, de novo, o sino da igreja.

Já é tarde, diz-me lá daquele lado de lá.

O sino da igreja sabe a quantas anda.

Eu é que não.

Fecho janelas, baixo estores e deixo de o escutar.

Faço de propósito.

Gosto de parar o tempo!

 

 

10.05.21

DISCLAIMER OU COMO QUEM DIZ CALMA LÁ !


The Cat Runner

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Disclaimer:

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Assim dito avancemos.

O telemóvel vibrou, digamos assim.

Foste prá noite, esses olhos...”

Ele leu só assim de relance porque estava a trabalhar. Só leu a notificação.

O telefone volta a vibrar.

Estes gajos não páram f@€£‰¶ !

Até porque, essa agora, ele nem nunca tinha sido de olhos inchados, inchado só o peito, embora, as olheiras ligeiramente carregadas fossem uma das duas ou três suas imagens de marca, cum carago!

Na verdade havia ali qualquer coisa naquele olhar.

Nem era bem no olhar, porque não era uma coisa da alma, era mais parecia que tinha levado dois directos no sítio certo. Directos de luta não é outro tipo de directos, que assim evitam-se confusões, damn right.

Podia meter gelo. Podia averiguar de onde é que aquilo apareceu. Podia tratar aquilo. Podia deixar ver se passava e foi o que fez. De-sin-cha ! A ver se...

Um gajo, agora, naquela idade em que até a usam como argumento, “ah é da idade do José António, mas é giro”, já não pode, dizia, gastar uma noite de montante a jusante, porque isso deixa marcas. Claro que deixa, e então?

As ondas são para surfar. É só escolher a certa e cavalgar (sem a carga pejurativa que esta frase possa indiciar)

Párem lá com as mensagens.

Aquilo eram sinais, que haveriam de desaparecer com duas noites e dois dias de sono profundo, com tudo desligado e fechado e com o edredão aninhado entre as pernas. Get up, get up now!

Marcas, pensou, nem tanto, por vezes usa-se tão mal o português, até eu, o que lamento profundamente.

Marcas só nos anúncios de tv ou nas prateleiras dos super mercados (já não sei se se escreve com hífen ou sem ele e não me apetece ir verificar, eu sou só o narrador, tenho essa prerrogativa).

São, digamos assim, privilégios de uma certa idade, dirá, que diga, se é isso que quer dizer.

Não será de todo incorrecto, a vida vai dando esse direito, esses direitos, de passar uma noite com consequências, sobretudo ao nível dos olhos.

As luzes amareladas da noite reflectivas na base do olhar, mesmo ali por baixo dos olhos, entre os olhos e o início das maçãs do rosto revelam todos os sinais, no rosto de cada um.

A noite, o dia, aqui, ali, ontem, hoje, porquê, onde, talvez, eu, círculos, passes de mágica e roletas russas, e montanhas russas e vodka, também russa, tudo revela sinais que marcam.

Não são marcas, isso deixa a vida. Há remédio para tudo até para maleitas dessas que a vida vai deixando.

Uma e outra não são a mesma coisa embora possam ser consequência de cada uma, como os sinais no rosto de cada um, apenas isso.

Nem leu as outras mensagens. Desligou o modo vibração, desligou as notificações e adormeceu. Olhos inchados. Fechados. 

No dia seguinte, no outro, no outro e no outro, era sempre a conversa das olheiras, os olhos inchados, a noite, tu andas a dar-lhe, sempre dito por rostos diferentes, com um sorriso comum, entre a o malandro e o prazer, como quando ganhas uma medalha que não quer dizer nada, mas ganhaste-a.

Onde ele mais notou até foi nas fotos que fez questão de partilhar nas redes sociais.

Um narci-neo-sista com idade para tal, para ser o que quer ser.

Ou não, há já tanta opinião nesses mundos, sobre os mundos dos outros, que é preciso ponderar todas as variáveis, até mesmo um simples creme para as olheiras.

Era tudo junto.

Mais essa noite.

E, isso paga-se caro, meu caro.

Oh se paga.

O segredo está nesses cremes, há alguns que até nos deixam mais bronzeados, aquilo hidrata mesmo e lavar a cara várias vezes ao dia e esticar o sorriso, para os lados, para dentro.

Não só faz bem à pele, como lava a alma, lavar a cara várias vezes, porque o sorriso estica.

Já cá faltava esta, a alma.

Venha é a noite que se esconde atrás das olheiras que hão-de passar e se não passarem a gente faz com que passe. A noite passa.

O que não falta aí são clínicas de estética, da cara e da alma.

É só escolher.

Não se esqueça do disclaimer, lá em cima:

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

Fim!

 

 

 

 

09.05.21

ENGANOS E JANELAS ABERTAS


The Cat Runner

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Hoje, enquanto arrumava a cozinha, depois do almoço, tardio, como sempre, entrou-me um pombo pela janela, aberta, por onde deixo chegar a brisa calma.

Nem sei bem explicar porquê, mas convidei-o a sentar-se, para que não se sentisse um intruso, que nos invade por cima e por baixo, pelos lados inteiros. Um intruso que vem de um mundo que nenhum de nós conhece.

Ofereci-lhe um café e ficamos ali à conversa, os dois.

Eu e eu. Eu e ele.

Este é o diálogo:

 

  • Há coisas que tu não sabes, mas gostei que tivesses aparecido...

Manteve-se em silêncio...

  • A minha janela estava aberta porque a coisa que eu mais queria era que tu viesses, tinha a certeza que vinhas, porque tenho muitas certezas, sabes, por vezes sinto-me só, os homens, por vezes, sentem-se sós...

Nem uma palavra, apenas me olhava, de alto a baixo, à sua estranha maneira, um olhar crítico, sério, mas carregado de ternura estranha. Estranhamente.

  • Sinto-me só, mas feliz. Só que às vezes faz-me falta alguma companhia, das coisas que tu não sabes, uma delas é que eu gosto de falar. Não falo pelos cotovelos, mas tenho o coração ao pé da boca, sometimes sweet, sometimes ácido, porque o coração fala muito mais que a boca, se não sabes, agora, ficas a saber...

Pela primeira vez notei-lhe um ar de surpresa, mas nem uma palavra lhe consegui arrancar. O café ia delicioso, quente o quanto-basta para não lhe queimar mais a alma.

  • Deixei-te entrar, por outras razões, porque me fui habituando a ver o teu voar, tu é que não sabias, os teus tons cinza e púrpura, brilhantes e fui aprendendo a gostar de ti.

Preparava-se para abrir, finalmente, a boca, que não para saborear o café, mas não deixei, era a minha vez. Se assim quisesse poderia ficar mais tempo, se não quisesse podia partir, agora era a minha vez.

  • Acho que não aprendeste a gostar de mim como eu aprendi a gostar de ti, faz sentido, tu voas, em caminho pelo caminho que trilhei, caminhos tão diferentes, almas tão diferentes, que me faz achar que vieste só porque sim, mal seria se daqui fosses, sem um café, apesar de tudo. Saboreia-o, pela última vez, a não ser que queiras voltar e a janela continue aberta. É contigo, já te disse que gosto de companhia, mas devo dizer-te...

Disse-o num tom que lhe pareceu ameaçador, mas que não mais quis ser que um tom doce, como a batata-cor-de-laranja e suave como o toque aveludado dos cogumelos.

  • Devo dizer-te que a minha janela não está sempre aberta, fecho-a quando saio, porque no teu céu há muitos pombos a voar e eu só me agarrei ao teu voo, vieste como um intruso, bastas-me. Olha, lá para fora, para os beirais e para as ombreiras, consegues vê-los, perfilados, a aguardar o momento certo?

Se não voltares mais, deixa-me uma pena tua, a mais brilhante, para guardar nas páginas do livro que estou a ler.

Serás o meu marcador, porque a tua chegada marcou-me, disso não tenhas dúvidas.

Acredito que não voltes, porque o céu é “gigantemente” azul e os voos rasantes, por vezes altos, fazem-te enganar na janela. Viste por engano.

Com isto, tinha passado uma tarde inteira, um dia inteiro, uma semana inteira, meses inteiros, numa conversa que parecia interminável, quase eterna.

No entanto, eu ainda mal tinha começado. Ele não deu conta. Queria voar mais. É a sua essência.

Tinha a certeza que me tinha entrado pela casa adentro, por engano.

  • Deixa-me dizer-te...

Não esperou, olhou a janela aberta e partiu.

  • Deixa-me dizer-te, obrigado, por teres vindo...

Tenho a certeza que chegou a ouvir-me, ainda que tenha disfarçado, enquanto o eu olhava o seu voo, o seu voar, para lá, para muito longe, para um mundo que é só dele. Deixei-o ir...

Podia ao menos ter dito obrigado, pelo café.

Não importa, ofereci-lhe aquele café e a minha janela aberta, porque ele entrou por ela, mesmo que se tenha enganado, porque foi a janela que escolheu, desta vez, entre tantas.

Vesti o fato de macaco e fui para a fábrica.

A vida obriga a perceber que, na fábrica, há sonhos para construir e um homem tem que ganhar a vida, até por isso.

A vida ganha-se!

Com tantos pontos de exclamação e reticências...

Dizem que é a coisa mais difícil da vida, viver.

E, lá fui, seguindo o seu rasto, perdido, como eu, porque é domingo e os domingos afagam-me o sorriso e secam-me o olhar.