PARA LÁ DAQUELA JANELA
Há uma janela em frente à minha janela.
Todas as noites a janela em frente à minha janela descobre uma luz morna e terna.
Todas as noites me detenho a olhar para essa janela e imagino.
Imagino o mundo dentro dela, sem nunca conseguir imaginar o que lá dentro existe, apenas a luz, isso eu sei que existe, para lá dessa janela, porque a luz existe dentro de mim e jamais se apagará. Digamos que sou especialista em luz.
Há uma janela em frente à minha janela.
Uma janela que está sempre aberta, dia e noite, desde que me detenho, dia e noite, na minha janela, dentro de uma vida que é nova, com as descobertas que se-me aparecerão pelo caminho. E, gosto de me deter, ali, na minha janela, ignorando os telhados, os quintais, a roupa estendida, o velho que desce as escadas do pátio, ou o homem de bigode, que pega em pequenos troncos de lenha, para qualquer coisa que só a ele diz respeito, os beirais, os pombos e os outros pássaros que esvoaçam, em loucos movimentos.
Ignoro tudo, ali bem à frente dos meus olhos, porque só tenho olhos para aquela janela.
E, imagino, porque estará sempre aberta, aquela janela, que guarda a luz, pela noite dentro, noite inteira, sem hora certa para ser noite, que a mente povoa-se de insónias e imagens arrastadas.
Tento sempre não olhar para dentro dela, daquela janela, por respeito a um mundo que não é o meu, mas que me questiona todos os dias destes dias, as fraquezas e as forças.
É tão libertador, o mistério, o enigma, a exclusão da minha intromissão.
Faço-o por respeito, mas também por medo.
Medo de olhar o que não quero ver, porque sei que a vida nos pode apagar a luz e fechar a janela. Esse será o momento eterno. Congelado, no tempo, para sempre.
Prefiro-a assim, transformadora, todas as noites, todos os dias, porque um dia, isso sei, a minha própria janela ficará para sempre aberta, mesmo que a vida a feche e apague a luz.
Que a luz a ilumine.
Que a luz me ilumine.
Hoje acordei assim, tocante, tocado, emocionado, transformado, sensível, porque sou um homem sensível, admito-o. E, gosto de o ser.
Sou aquele que ouve corações que choram, que riem, as falas, os pássaros e os comboios, as varinas de outros tempos, lá em baixo, com as canastras nas cabeças.
Vivo na dúvida, mas também na certeza.
Na dúvida, sobre o que existe do lado de dentro dessa luz.
Na certeza, que assim serei mais feliz.
Tenho a certeza.
Agora vou comprar detergente para a máquina, que tenho roupa para lavar!