COISAS DE UM GAJO DIVORCIADO
Às vezes, quando passa um combóio, parece que um Concorde está a fazer um vôo rasante à casa. São raras as vezes, mas parece, ainda que eu nunca tenha sequer visto um Concorde na vida.
Ao início, quando o combóio passava, fazia-me lembrar o Bronx, aquele ruído abafado, com picos potentes, quais ondas metálicas, que os carris provocam, na marcha rápida, ainda que eu nunca tenha sequer estado no Bronx, mas gostava.
As coisas parecem-se sempre com memórias de lugares onde nunca estivémos, com pessoas que nunca conhecemos, com sons que nunca escutámos, mas parecem-se, tenho aprendido isso, nesta nova caminhada. Isso e outras coisas.
Vivo num bairro pacato, envolto numa calma apenas quebrada quando os motoqueiros da Uber Eats atalham aqui pela travessa, ou quando as vizinhas me acordam de manhã, ao som de conversas sobre a fruta da praça, ou a pandemia, se acaba ou se jamais acabará?
"Olhe, seja o que Deus quiser"!
O combóio não me acorda, nem me incomoda. Acabou de apitar um, às vezes apitam, os combóios, quando se me dá na gana.
Quando vou à varanda, várias vezes ao dia só para ver o rio, as pessoas que correm ou caminham na margem de cá, nem dou conta se passar um combóio. Sou um animal de hábitos. É a minha vista, quando olho para a direita.
Quando olho em frente, vejo as casas vizinhas e o casario do resto da cidade, o Monte Gordo e alto.
No outro lado da casa, na sala, junto à cozinha - que isto aqui em casa é tudo colado umas coisas às outras - a grande janela abre-se para os pátios e para as traseiras das casas que fazem o quarteirão.
Lá ao alto direito, um pedaço do cemitério. Nunca imaginei morar proximo de um cemitério, não sei se no Bronx haverá algum cemitério.
Não raras vezes tomo o pequeno almoço (mais uma mudança de vida) virado para a janela grande, a contemplar, enquanto sujo os bigodes com o batido de frutos vermelhos e desvio o olhar para o telemóvel.
Enquanto tiver aquela vista é bom sinal.
Mas, não é bem por isso;
gosto de observar, de olhar, a arquitectura, os ciprestes altos, a escadaria, a paz que aquilo transmite.
Ao início fazia-me confusão, cheguei a ter um pesadelo, numa noite, mas já não faz mais.
Os combóios também me faziam confusão.
Observo apenas por breves instantes, enquanto vejo os pombos nos telhados das casas, e os outros pássaros emitem aquele som que parece que temos o Youtube ligado num vídeo de sons da natureza, não pensemos agora que virei obstinado, apenas olho para o cemitério, ppor breves instantes, enquanto tomo o pequeno almoço, não sou obstinado, sempre o fui.
Porque as coisas parecem-se sempre com memórias de lugares onde nunca estivémos, com pessoas que nunca conhecemos, com sons que nunca escutámos, mas parecem-se, tenho aprendido imenso, nesta nova caminhada. Isto e outras coisas.
Aprendo a cozinhar (acho que nem me aproximo ainda do "aprender"), ando a habituar-me ao som dos combóios (qualquer dia vou visitar o Bronx), das vizinhas que debatem lá em baixo, na travessa, da rua para a varanda, com os sacos das compras pousados, um de cada lado e às motas dos estafetas que encurtam a viagem, virando na travessa.
Aprendo, agora, cada vez mais, a ver a beleza que a paz do rio envolve e no que isso impacta em mim.
Ando a aprender uma série de coisas, aglutinadas em uma só: ando a aprender a viver!
E, enquanto a luz dia me entra por todas as janelas, dando à casa uma energia que me contagia também, lembro-me que, para aprender precisamos de tirar notas.
Decidi dar outra utilidade a uma das janelas e comecei a colar as notas, em Post It, no vidro.
Não vá eu esquecer-me que agora sou divorciado e quando der por mim vou a caminho do cemitério, que fica à mesma distância do rio.
Aviso já que quero ser cremado. Com Chantilly, de preferência.