A CULPA É DO FIAT UNO PRETO DA MINHA NAMORADA
Uma das imagens que levei comigo, quando acabei o estágio na TSF, foi a de um tipo que eu admirava já naquela altura, dentro de uma cabine de emissão, vestido com uma camisa cinzenta, auscultadores na cabeça, cigarro na mão esquerda, microfone aberto, a gesticular como se não houvesse amanhã.
Ainda consigo ver o fumo a pairar no ar, dentro daquele estúdio, naquele instante o fumo parou, escutando-o, em silêncio, pairando, apenas, ao mesmo tempo que ele gesticulava as palavras e as letras e as frases e os pensamentos e as notícias. Ele estava a dizer coisas. E, ali fiquei eu, sentindo-me invisível, esperando estar invisível, porque só queria olhar, mas era um corredor de passagem, podiam achar estranho.
Uma vez, enquanto eu fazia a viagem diária do trabalho para casa, no Fiat Uno preto da minha namorada, noite dentro, liguei o rádio para ouvir as notícias e para não adormecer ao volante, que na rádio as notícias são sempre à hora certa, a não ser que a impressora encrave.
“Olha, encravou a impressora, o gingle nunca mais acaba”, disse-me ela, entendida, uma vez, que a gente escutava sempre as notícias no rádio do Fiat Uno dela.
Nunca na vida eu tinha escutado uma abertura de um noticiário na rádio tão estonteante, que todos estes anos depois ainda o escuto, “levantou a bola a meia altura pelo lado direito, rodou pelo lado esquerdo, deixou o defesa sentado no chão, deu um, dois toques, o segundo mais forte, à saída do outro defesa, entre a linha lateral e a linha de cabeceira, sacou um cruzamento de trivela, cruzou e o vento é que puxou a bola para fora, ainda a está a puxar, que estava vento a rodos”.
Depois explicaste o que era uma trivela.
Devia ser uma ou duas da manhã, que eu saía sempre tarde, depois do Fora de Jogo e antes do Seinfeld, que via já em casa e porque é à noite que a rádio tem encantamento nas pessoas, é à noite que se cola dentro de nós, entre a pele e a carne, solitários, inquietos.
Esse noticiário abriu com o resultado de um jogo grande da jornada.
Os da casa tinham perdido.
O título estava pendurado, o de campeão.
Durante um ou dois minutos o Fiat Uno da minha namorada rolou livre, por onde quis, porque eu já não o estava a conduzir, estava a ser conduzido pela notícia relatada, estava a ver as fintas que tu fazias com as palavras, os cruzamentos milimétricos, a cabeçada que foi tão forte que os fotógrafos atrás da baliza até viram as gotas de suor a saltar da testa do avançado.
E, quando evocaste o Anjo das Pernas Tortas para que a gente visse a troca-de-olhos que o avançado deu ao defesa, o grande Garrincha ainda deve estar deliciado a esta hora a dar toques em tua homenagem.
Fui seguindo a narrativa, o relato da notícia, até dentro da baliza.
Vi as jogadas todas.
Os fora de jogo decisivos. As faltas à entrada da área. Os golos.
Uma notícia escrita e dita entre cabritinhos e tabelinhas, a abrir um noticiário, na Rádio que só dá notícias.
Não imaginas quantas vezes dei por mim, ao longo do tempo, a gesticular como um louco, enquanto tento dizer o que escrevo, numa vã tentativa de sair parecido contigo.
Ninguém me viu a fazer de ti, naquela vez, nos grandes fogos, quando comecei em directo, ainda era uma pequena coluna de fumo e terminei quando tudo estava a arder, um, dois, três concelhos, serras, casas, ninguém me viu, mas naquela vez o que eu gesticulei, as palavras, os sons, as frases, usei-te e tu não deste conta disso, usei-te, porque gostava de fazer como tu, de dizer como tu, porque as histórias dizem-se, até em directo.
Mas, nunca consegui e sabia que jamais o ia conseguir, ainda assim.
Estás mais presente no meu caminho, nos momentos mais importantes da minha carreira, do que alguma vez possas ter pensado.
Tantas vezes!
Sempre que escrevo, que gravo, que digo, sempre que mostro, não é uma coisa mecânica, está no nível do sub-consciente.
Ainda no outro dia a Rita me dizia que tinha adorado estar uma hora em directo comigo ao telefone – eu estava em casa – porque eu estava a descrever de tal forma que ela se via nas ruas que eu descrevia.
E, lembrei-me de ti, do que tenho aprendido contigo, ao longo destes anos todos.
Quando somos miúdos queremos ser sempre alguém.
Quando somos adolescentes também. Até mesmo quando somos adultos, secretamente, queremos ser sempre alguém.
Já dei comigo a pensar: “quando for grande quero ser como ele”.
Vivendo e aprendendo.
Já dei comigo a pensar: “quando for grande gostava de ser como ele”.
Há coisas e pessoas que nunca poderemos ousar ser como, apenas podemos gostar de tentar, sabendo que só isso já é quase tudo.
Como naquela noite, quando subia o Chiado, no Fiat Uno preto, eu e a minha namorada, que era jornalista na Renascença e me desencaminhou um dia para estas coisas do jornalismo. Ela morava ao pé do miradouro do Adamastor e vínhamos da minha casa para casa dela. Começámos a ouvir ainda na auto-estrada.
Depois de passar o Terreiro do Paço, faço pisca para esquerda, começo a subir a rua do Alecrim, faço pisca para a direita e páro o carro.
Foi ali a meio da subida da Rua do Alecrim e ali ficámos, a escutar-te no Postigo da Noite.
Acabou abruptamente.
Mas foi esse programa que criou em ti a imagem que tenho de ti;
Um jornalista que só quer ser artesão no seu ofício. Longe das luzes e dos holofotes. E, naquela noite decidi ir para a TSF. E, fui. E, conheci-te. E, vi-te trabalhar. E, e aprendi tanto...
Uns anos mais tarde fui visitar-te, já eu tinha ido trabalhar para a televisão, a TSF ainda era na Avenida de Ceuta e dos drogados desta vida.
As coisas que se viam da janela da rádio!
Ainda bem que aquilo tudo mudou. Até a rádio. Tu é que não. Ainda bem.
Eu andava a fazer uma espécie de totobola com malta dos media, para o Contra-Ataque que dava aos sábados na TVI. Ousei convidar-te e tu, brutalmente, aceitaste. Caraças, o gajo que eu gostava de ser como ele aceitou que eu lhe fosse fazer uma entrevista, o gajo que não gosta muito de ir à televisão. Caraças!
E, tu aceitaste porque gostas “ de putos com sangue na guelra, que correm atrás do prejuízo”, que aquilo era sobre bola e que gostavas de me ver na televisão e que eu estava a fazer um trabalho sério, diferente, limpo e eu não dei parte fraca, mas ia desmaiando.
Claro que não te lembras, mas no fim da gravação disseste-me: “são os gajos da tua geração que têm a obrigação de manter a seriedade disto e jamais baixar os braços por uma história”.
Não te lembras, não está gravado.
A última vez que foste à televisão, por opção tua, foi numa manhã, comigo, na TVI24.
Tu e eu outra vez na televisão.
As coisas que fizeste por mim, até foste à televisão.
Uma conversa que eu tentei que fosse como as tuas conversas.
Nem tentei.
Fiquei a escutar-te.
Naquela manhã eu era o gajo da televisão e tu eras o gajo da rádio. Teria sido assim, não fosse o Anjo das Pernas Tortas, por isso nunca poderia ser assim.
Naquela manhã, eu, de fato e gravata, escutava o tipo que há muitos anos eu tinha visto a gesticular que nem um louco, camisa cinzenta, auscultadores na cabeça, cigarro na mão esquerda, só que o fumo que não se via.
O encantamento nunca me largou, sabias?
Na televisão não se fuma, uma merda, aquilo assim !
Como é que alguma vez eu podia ter pensado em ser como tu quando fosse grande?
Hoje, cinquenta anos, não os teus, de carreira, os meus, de vida, penso ainda mais como é que podia ter pensado aquilo alguma vez nesta já meio longa vida. Agora penso de forma mais madura.
Só se pode pensar em “gostar de ser” como alguém, alguém que gesticula como um louco, enquanto diz, com uma voz rouca, dura, doce e o fumo a sair pelas narinas e o sorriso misterioso e confiante, naquele embalo de uma história.
Não se pode ousar mais do que isso, quando alguém está tão presente no nosso caminho que nem nós nos damos conta.
Não, nunca podia querer ser como tu quando fosse grande.
Limitava-me a gostar de um dia ser como tu quando fosse grande.
Retive essa imagem, quase no fim do estágio na TSF, naquela manhã, quando passava no corredor e me detive a olhar aquele tipo que tanto admirava, dentro de uma cabine de emissão, vestido com uma camisa cinzenta, auscultadores na cabeça, cigarro na mão esquerda, a gesticular como se não houvesse amanhã.
Sabes, tiraram-me do estúdio e mandaram-me para a rua, ser repórter.
Podia ter sucumbido à tragédia, ao drama, ao horror.
Mas, não.
É que também retive uma outra coisa que disseste há bem pouco tempo:
“ O que me deixa realmente feliz é andar na estrada. Não preciso de muito, uma pensão limpinha, comida e uns copos de vinho”.
És o meu mestre, mas isso já te o disse olhos-nos-olhos.
Parabéns, já fazias rádio quando eu nasci.
É do caraças!
José Gabriel Quaresma
Ribatejo Space Station