Dia Três "Ainda Assaremos Um Chouriço Com O Álcool Que Sobrar Da Guerra"
É a primeira vez que escrevo um texto num país em estado de Emergência.
Caraças, no meu próprio país, na minha própria história.
Mas isto lá passava pela cabeça de alguém, alguma vez?
Em 1975 eu era um miúdo com seis anos, eu próprio tinha a minha emergência em viver, no meu mundo, tão feliz. Passou-me ao lado. Desta vez não. desta vez embateu de frente contra mim, a alta velocidade.
É quase uma antítese mascarada, escrever um texto de opinião, pela primeira vez debaixo de um Estado de Emergência, que é em si mesmo assustador, mas em liberdade, em democracia, o que apenas confrota, não descansa.
À primeira parece não encaixar.
Olhemos mais atentamente.
Talvez não encaixe, o problema e a solução mas confiemos nos desígnios, no Homem, enquanto ser e espécie e façamos um esforço para que se encaixe, para que se equilibre.
Está na hora dos Homens.
Eu também não sei, no momento em que escrevo este texto, o que é que vai acontecer durante o dia, mas imagino. Assustado, claro, como qualquer pessoa consciente, mas não surpreendido, porque se recuar uns textos meus, há bastante tempo que isto se me afigura no horizonte, não com cores tão abstractas e surreais, mas o desenho disforme.
“Por acaso até me emocionei com o discurso do Presidente”, disse-me o meu filho, enquanto metíamos a mesa para o jantar.
Fiquei com uma imagem, um miúdo em tempo de guerra. Ele tem consciência disso e isso é estranho, ver o meu filho preocupado com coisas que não deviam estar a acontecer na sua nem nas nossas vidas.
Não é uma imagem hiperbolizada. Ela é mesmo assim.
As suas incertezas, os seus medos, as suas novas realidades, as suas novas responsabilidades, as suas novas certezas, as suas novas esperanças, as suas novas convicções, o seu novo despertar.
O que este inimigo não sabe é o poder que está a provocar dentro de cada um de nós.
Nunca o mal derrotou o bem!
Deixei-o sair esta noite, porque poderá ser a última em que vai poder ir a casa do Tiago, aqui ao lado, estar um pouco com ele e com as irmãs, a respirar felicidade, amizade, e voltar à hora marcada, para se fechar de novo na trincheira que nos tenta proteger do inimigo.
O meu filho tem 20 anos e tem hora marcada para chegar a casa.
Porque é assim que ele entende que deve ser. Ele dá-me a esperança que às vezes tenta fugir de mim. Quando ela se quer transformar numa miragem.
Num dia destes, cinzentos e carregados, o meu filho dizia-me, “ver o Presidente na varanda e depois naquele Skype é um bocado deprimente”.
Esta noite emocionou-se, ao escutar o Presidente.
O meu filho, a quem o mundo pertence, tem sentido crítico, mas não usa a crítica fútil, desprovida do contexto que vivemos, irresponsável até. Acompanha as notícias, está informado.
"Acho que tenho que ponderar se quero ir para Desporto ou para Ciência Política, isto começa a fazer-me sentido".
Está um homem, o meu menino.
A merda é que não consigo encontrar nem máscaras nem luvas.
Nas farmácias aqui da terra estão esgotadas.
Nos hipermercados também.
Até a maior loja chinesa, da qual sou cliente, está fechada, com um papela de aviso, pendurado no portão.
Estive lá parado, fiz um sinal de fixe à chinesa que andava no parque de estacionamento a despejar lixo.
Vi que me sorriu, por trás da máscara.
Pela manhã, depois do pequeno almoço e de um treino para manter as defesas em alta, vou bater à porta dos vizinhos e vou perguntar, como antigamente:
“Bom dia, vizinho, tem uma caixinha de máscaras ou um parzinho de luvas que me dispense, eu depois devolvo-lhe, quando a guerra acabar”.
Talvez tenha sorte.
Há aqui no bairro umas quatro ou cinco famílias chinesas.
Uma delas é da dona da loja que fechou.
Ou há máscaras e luvas ou invento uma fake new sobre eles.
Nem morto.
Credo, morto é palavra proibida nesta altura.
Alguma vez eu podia ter escrito isto se estivéssemos debaixo do Estado de Emergência que muitos, ideologicamente e erradamente querem sugerir?
Não, obviamente que não, porra.
Fechem um pouco a matraca, as opiniões às vezes são lama que tolda a caminhada.
E, se alguma vez o que dizem temer acontecer, então, cá estamos todos para a luta. É isso que temos feito e temos que fazer, lutar, nem que seja em muitas lutas ao mesmo tempo.
É isso que é uma guerra, um conjunto de batalhas e nunca vivemos uma guerra.
É a primeira vez.
Na verdade eu preciso das máscaras e das luvas porque me foi solicitado profissionalmente que recolha determinados conteúdos, mesmo em casa, ou se sair, caso seja preciso sair.
Neste momento até já sei como se deve efectuar a minha circulação e a forma de agir, no âmbito da minha profissão, já sei as regras oficiais para operar neste quadro de emergência decretada. Fui informado pelo meu orgão oficial, a Comissão da Carteira Profissional, em conformidade com a Lei.
Quanto ao álcool, ainda temos umas duas ou três embalagens, vai dando, aos meus pais também ainda não está a faltar.
Eles é que não saem mesmo de casa.
Vão preparando o terraço, ainda vamos ter que gastar o álcool para assar uns chouriços, um dia destes, quando estivermos todos a celebrar o fim da guerra.
Como nos filmes.
Eu já vi o Muro de Berlim cair uma vez.
Vou ver de novo, mas desta vez também o irei derrubar.
Iremos todos.
A chouriçada assada fica marcada para data oportuna.
É que agora tenho que andar com um salvo-conduto no bolso.