Dia Dois "A Lei Da Compensação"
Hoje ao ler uma mensagem do meu irmão provei a massa de que somos feitos.
O meu irmão trabalha numa das maiores cadeias de distribuição. É ele – com muitos outros – que garantem todos os dias o abastecimento das centenas de camiões que fazem a distribuição pelas superfícies comerciais.
Dizia ele na mensagem que se parassem não havia alimentos nas prateleiras.
Nem imaginamos a quantidade de gente que está lá fora a lutar nesta guerra.
Há meses que uso a palavra guerra.
Infelizmente, agora, entrou no léxico, nas conversas, entre as pessoas, os apresentadores de telejornais, os políticos, os comentadores, estamos em guerra, já ninguém tem dúvida.
Ainda há pouco disse à minha mulher: “como nunca vivi uma guerra, só vi nos filmes e li nos livros, aquilo que sinto é como se estivéssemos em guerra”.
E é isso que sinto.
Nas guerras, vi nos filmes e li nos livros há sempre os que ficam como heróis. Um ou outro, raramente todos.
Nesta guerra ainda não há heróis. Há soldados em combate. Haveremos de lá chegar.
Agora, cada um de nós está a fazer a sua parte, a cumprir a sua missão e que orgulho que é sentir e ver isso.
Ao fim do dia dizia eu, na cozinha, enquanto o meu filho decidia fazer um bolo, algo nunca sequer tentado: “ só falta a casa ser em madeira, o candeeiro ser de petróleo, e a mãe e a Maria usarem laçarotes nas saias ou aventais”, enquanto espreitava pela janela.
O pôr-do-sol da minha janela é maravilhoso.
Certo é que, enquanto a mãe tirava a louça da máquina, eu arrumava a louça e ele preparava tudo para fazer o bolo. Temos que agarrar as oportunidades e os momentos, sobretudo, os momentos.
A gata Alice andava de um lado para o outro, como sempre, a tentar acompanhar a movida.
Cenoura?
Laranja?
Cobertura?
“Mãe onde é que está a farinha, pai dá aí o açúcar, Maria afasta aí a calculadora”.
Sim, Chef RQ7.
A mais nova estudava.
“Maria vai para a sala”, dizia alguém, por causa das gargalhadas.
“Tranquilo, não me está a incomodar”. É determinada e consciente.
O segundo dia de não sei bem o quê resumiu-se a isto, a uma família dos anos quarenta, em tarefas dos anos quarenta, mas sempre com uma distância de segurança, mesmo na cozinha. Nos anos quarente se calhar também era assim. Distância de segurança.
Só os telemóveis faziam a diferença. Até a temperatura na cozinha era afável e reconfortante, como o cheiro do bolo, que saia do forno quente. Fui acender a lareira.
Nas outras guerras não havia smartphones.
Nem internet. Incha vírus.
Nas outras guerras também havia vírus e quarentena e estado de emergência e contingência e tiros e bombas. Nesta só há vírus, até ver. Não valorize a palavra "só".
Confesso que está na hora de ir provar o bolo que o meu filho fez.
Não partilho fotos na internet porque ele já não é pequenino. Será sempre, mas já não o é. Não tem a mesma piada. Cresceu rápido.
Nas redes sociais todos os pais mostram os seus bolos, com os seus filhos pequeninos, enquanto actividade familiar imposta.
Quando o Rodrigo era pequeno cheguei a mostrá-lo a actuar num concerto de rock, tinha uns quatro anos.
Ele a fazer o seu primeiro bolo, voluntariamente, não tinha a mesma piada, ele sabia. Teve que ser de costas!
Numa das fugazes saídas de casa conversávamos os três dentro do carro, ele, eu e a mana.
Era incrível tudo aquilo que lhes tinha contado sobre o que tem sido o mundo, com a minha deturpada visão sobre ele, por ser minha.
As guerras mundiais, a que não assistimos, o homem na Lua, já eu quase cá andava, a televisão, a preto e branco, primeiro, com naperons em cima, depois a cores, agora em todo o lado, os computadores que vimos nascer, e já não reconhecemos os seus pais e avós, tudo como uma cena de ficção quase quase científica, a internet, que chegava através de um modem externo, eles, os meus filhos conhecem a internet e mais do que isso, mas nunca viram um modem externo, o Muro de Berlim, que irá cair, de novo, tenho a certeza, quando tudo isto terminar, a década de sessenta, 1969 e a liberdade, Abril, depois, “já viram o tanto a que já assistimos na vida?”.
Mas, não deixei os meus filhos responderem. Continuei:
“A avó disse hoje à mãe que estava rija, já tinha vivido e sobreviveu ao fim da Guerra, não era agora o vírus...”
Os meus filhos não precisam que lhes diga que estamos em guerra.
Mas, eu disse-lhes que “o incrível é que tudo o que vos contei do mundo e do que temos vivido cai por terra agora.
Vocês nasceram na era da guerra.
Fomos todos muito descuidados com vocês.
É hora de vos compensar. Lutar por vocês e lutar com vocês. A lei da compensação e do amor.
Por vocês e com vocês temos que a ganhar".
E não parei de falar.
"Agora, imaginem, eu e a mãe que já vivemos aquilo tudo, imaginem mais, imaginem a avó que cresceu no fim de uma guerra mundial?”.
O "imaginem" é uma daquelas forças de expressão perfeitamente estúpidas, só utilizadas em situações de urgência.
O que lhes quis dizer, antes de chegarmos a casa e passarmos o resto do dia no calor da nossa cozinha é que faz parte da história das pessoas a travessia das mudanças, os choques das transformações, a fé dos homens.
O mundo tem sido feito assim.
Lembrei-me do meu irmão, que me garantiu que não faltaria farinha, manteiga, ovos e leite nas prateleiras. O essencial para fazer um bolo.
Um irmão não mente a um irmão.
Depois digo se o bolo estava bom.
Se era de cenoura ou de laranja.
Chocolate, talvez.