OS DA LINHA DA FRENTE
Quis ser jornalista por causa da minha mulher.
Lembro-me de uma noite que foi marcante, decisiva, uma noite em que me telefonou por volta das quatro e meia da manhã para ir ter com ela à bomba de gasolina porque tinha tido um furo.
Ela fazia o turno “manhã 1” e eu fazia os turnos todos, mas como não éramos casados, lá saí eu da minha casa e lá fui mudar o pneu do carro comprado a pronto, que naquela altura não havia vírus e merdas destas, era tudo à grande. Até dava para escolher onde queriamos trabalhar e tudo.
Aquele espírito entrou por mim adentro, até hoje, especialmente hoje, já vai perceber porquê.
O tal espírito de missão pública, que transforma um ofício numa fé, numa forma de viver.
Foi ela que me ensinou, naquela quase manhã, enquanto mudava o pneu furado do Fiat Uno preto, que era isto que eu queria ser, jornalista.
Uma espécie que se move sempre na linha da frente, na primeira linha de fogo real.
Em tempo de paz são as redes sociais, que se forem encaradas do ponto de vista de um reality-show até é engraçado, mas em tempo de guerra é o risco a sério, daquele que mata, mesmo.
E, estamos em tempo de guerra e em toda a escala.
É plausível que chegue um dia destes e todos tenhamos que ficar em casa;
o país em shut down total.
Não é um cenário alarmista, este, meu, pode acontecer.
Cidades, vilas, aldeias, ruas, desertas de gente. Espero que esse dia não chegue.
Se a tempestade vier para nos engolir temos que nos proteger. Em casa dá para reflectir, no que somos, no que queremos, no que é que andamos aqui a fazer todos, em casa haverá tempo de sobra para colocar as almas de cada um em dia.
Guerra, aberta, global, contra um inimigo que não se vê.
A linha da frente começa a definir-se, a desenhar-se, a formar-se, na exacta medida em que o vírus se espalha;
monstruosamente.
É a triagem natural, o ponto de equilíbrio, mas mete medo, o plantea a equilibrar-se desta forma.
Estamos na selva;
bem vindos à selva.
Quando todos forem forçados a ficar fechados em casa haverá algumas estirpes de vírus que serão a ligação entre o mundo real, lá fora, vazio de gente e em quase silêncio, parado, e todos os enclausurados, que aguardam sobre boas-novas das suas próprias vidas, da sua própria existência, enquanto seres humanos.
As forças da ordem, o contingente de saúde e os jornalistas, normalmente, os excomungados em tempo de paz.
os que batem lá com os costados.
Como nos livros que já lemos e que não passavam de romances enganadores, uma espécie de mundo vazio de normalidade, onde se movimentam os que tratam, os que protegem e os que contam o que acontece, na linha da frente.
Ok, esqueçamos este lado mais romanceado do cenário.
Na linha da frente só ficam os que lá estão cumprindo uma missão, a sua maneira de sublinhar a sua própria existência, porque foi isso e foi assim que escolheram.
Já não estamos em tempo de graças nas redes sociais, o planeta paralelo. Não, porque isso revela-nos e, em momentos tão insólitos quanto o que todos nós estamos a experienciar e a viver e a gerir não há mais lugar para distrações.
Estamos no início de uma guerra.
Só alguns ficam na linha da frente, até ao fim, até ao final, mesmo.
Nem que tombem.
Ninguém precisa de dar valor a isso.
É assim que é para ser, polícia, militares, médicos, enfermeiros, jornalistas e muitos outros profissionais de muitas outras áreas.
Na linha da frente ficam os que têm e querem lutar por todos os outros.
Este vírus está espalhado pelo mundo.
Nem um dos homens e mulheres que mencionei lá em cima no texto é imune, juro, também somos todos humanos, mas aquela coisa da missão...
Não é uma coisa vaga, eu explico:
Eu, a minha mulher, responsável por eu ser jornalista, os meus familiares, amigos, até mesmo os meus inimigos, todos estamos à mercê, como qualquer pessoa.
Acontece que quando me mandam para o terreno eu aproveito para viajar numa cápsula, que me protege, penso eu.
A natureza do jornalismo está no medo, comum ao Homem.
O medo do desconhecido que encaminha para uma ruela em sentido contrário.
A ruela que leva a querer conhecer, que do desconhecido está o céu cheio.
O vírus é assunto sério, o acontecimento mais impactante do século, deste.
De coisas parvas, fúteis, ocas e merdosas anda este mundo cheio.
E o outro também!
E eu ainda acredito no Homem.
E, no jornalismo.
Acredite, neste momento há excelentes jornalistas a lidar com esta realidade e uma outra que fragiliza tudo e todos de alto a baixo, mas lá estão eles, na linha da frente, aquele merda da missão.
Uma cápsula para cada um fazer a sua própria viagem, cada um com o seu próprio escudo protector, forte, destemido, às vezes pessoa de carne e osso.
Gostava que um destes dias alguém questionasse as autoridades chinesas.
A fórmula é simples, a mesma do jornalismo só que adaptada ao acontecimento:
Quem, quando, como, porquê?
Onde, já sabemos.
Eu disse alguém, mas não é alguém.
É o mundo inteiro que tem que questionar porque é que estamos em guerra. Tem que haver explicações. Há-as para tudo, sem excepção, no final há sempre.
Será um jornalista o primeiro a fazer essa pergunta, tenho a certeza.
Os anos passaram e o Fiat Uno preto deu lugar a um Audi preto.
Mas, a luz amarelada da bomba naquela “manhã 1” ainda hoje me levava a sair de casa, e ir mudar-lhe o pneu, fosse a que horas fosse.
Mesmo se um dia eu deixar o jornalismo.
Bom, até posso nunca mais mudar-lhe o pneu do carro, mas jornalista nunca mais deixarei de ser, porque é isso que sou.
Mesmo no dia em que já não seja mais.