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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

30.03.20

Abraços Escritos Em Papel


The Cat Runner

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A tragédia encerra sempre uma contradição.

Encerra nela sempre algo de belo.

A pedra de toque está em tentar perceber onde se esconde esse impulso que nos transforma.

Hoje começo uma nova vida e vou com a bagagem arrumada para a viagem.

Nunca até então.

Creio ter uma pequena vantagem sobre o vírus, sem o querer ofender, que ele é um cabrão.

Foi um livro que eu escrevi a meias com outra pessoa.

este é o meu dia zero e minha casa é agora a redacção da TVI, literalmente.

Cai-me na consciência que a redacção foi tanto a minha casa quanto a minha casa foi a redacção, ao longo deste caminho tão trabalhado, tão distante, já.

E, esboço um sorriso, quando ouço que o futuro será diferente do que tem sido a vida desta humanidade. A vida será diferente.

A vida é agora, hoje, diferente, já.

Falemos da parte prática de tudo isto.

Uma fatia do nosso país está a trabalhar a partir de casa.

Eu começo hoje. Jornalismo feito em casa.

Uma carreira nova que começa, sem prazo, de quinze em quinze dias. 

Um dia conto-lhe como é que é começar uma carreira.

Estava prestes a começar uma, com 50 anos e uma vontade diabólica, mas o vírus entrou-nos, de repente, violentamente, pelas nossas vidas adentro e, num segundo a eternidade mudou, quando todos nós silenciámos os corações e aplaudimos a compaixão, nas varandas da incerteza e da ansiedade.

A minha mãe ensinou-me o mundo.

Ensinou-me que o que tem que ser será e o que não tem que ser não será.

Não é por nada, apenas, só porque é assim.

E, um vírus adiou-nos a vida, os sorrisos, as mudanças, travou-nos os hábitos, o toque, o abraço, empurrou-nos para casa.

Não estamos numa prisão. Estamos em casa, onde o nosso amor existe. Haverá fortaleza maior?

O vírus não sabe que eu já li muito, já pesquisei muito, já aprendi muito sobre aquilo a que ele me está a obrigar a fazer, a mudar a vida e a trabalhar em casa.

Levo-lhe a tal pequena vantagem.

Aquilo que estamos a fazer, muitos de nós, não é teletrabalho.

É aqui que eu entro.

O teletrabalho permite-nos, entre outras coisas, trabalhar onde entendermos, numa esplanada, num café, no autocarro, no comboio, em casa, na praia, no hotel, onde for.

Não estou certo que o bando de inúteis que entupiu as pontes e as marginais fossem fazer teletrabalho, mais que não seja porque quem faz teletrabalho, neste momento, jamais saíria de casa.

Mas, não é teletrabalho. 

Pretendo ajudar e explicar a quem está confinado, mas longe destes temas, muitos, talvez, nem imaginavam que estas coisas existiam, este padrão de trabalho que é responsável pela mudança do paradigma do trabalho, desde há já vários anos, em todo o mundo. Também em Portugal, obviamente.

O que nós estamos a fazer é utilizar os conceitos e as ferramentas do teletrabalho e a aplicar na nossa vida profissional, tão diferente do que alguma vez podíamos conceber.

Ainda bem que é assim.

Ainda bem que não estamos a fazer teletrabalho (remote working) puro e duro, por motivos mais do que óbvios.

Estamos em casa a utilizar de forma profissional as plataformas colaborativas, como o Skype ou outras.

Chamemos-lhe teletrabalho confinado. Um saborosa, apesar de tudo, fatia do bolo teletrabalho. Quando a guerra acabar que o teletrabalho fique, no seu todo.

Aí sim, nessa altura, vamos todos perceber as vantagens desta forma de trabalhar.

E, vantagem, vantagem levamos nós, que quando lá chegarmos, porque quando lá chegarmos já fizemos o estágio, em confinamento, ainda por cima.

Os duros do pelotão. 

A máquina fica oleada.

Iremos perceber isso e iremos adoptar esse modelo, se calhar em números idênticos aos de agora, mas em liberdade, felizes, com tudo o que isso encerra de transformador.

Nestes dias novos, de chumbo, apesar de nunca ter previsto que as cenas dos filmes se tornassem a nossa vida, lembro-me bem daquilo que todos temos que fazer, em casa, quando trabalhamos em casa, por causa do livro que escrevi.

Nesse aspecto, esta pandemia inusitada e demolidora, não torna as coisas diferentes, apenas nos confina. Apenas, porra, que magnitude da palavra que nunca me tinha dado conta.

Fintemos o confinamento, em casa, que é o terreno de jogo.

A peça-chave, por onde passa o possível sucesso da operação, o factor mais decisivo, nestes tempos extraodrinários é criar rotinas, como se estivéssemos a viver a vida anterior, a vida “normal”, que já não o é.

Criar rotinas entre quatro paredes. Faça disto um lema de vida enquanto estiver confinado.

Esta estratégia está enquadrada nos aspectos negativos que o teletrabalho pode provocar, em situações normais;

o cansaço de trabalhar em casa, isolado, sem contactos pessoais, de socializar, de não ser interrompido pelo cão ou pela campainha da porta. Em situações normais sería assim.

Se estivéssemos numa situação normal nas nossas vidas, quando estivéssemos prestes a entrar em loop, saíamos de casa, íamos para um espaço de coworking – há milhares –, para nos sentirmos num espaço de trabalho partilhado, que é isso que é um espaço de coworking, ou para um local à nossa escolha.

A internet liga-nos, em qualquer lugar. Já imaginou que sem uma ligação à internet estávamos mesmo todos ligados ao ventilador?

Não é uma triste metáfora, escolhi a palavra cuidadosamente, porque sem internet o mundo estava neste momento apagado.

Mas, não estamos numa situação normal. Vamos subtrair a parte de sair de casa e adicionar a parte das rotinas. Retomemos.

Acordar.

É fundamental acordar.

(claro que pode rir).

De segunda a sexta a mesma hora para acordar e começar o seu dia.

Abra os estores, as cortinas, olhe lá fora o sol, sinta o fresco da manhã e let´s go.

Devemos reservar um espaço na casa, para ser o nosso espaço de trabalho, exclusivamente para isso, para trabalhar. O escritório, a sala, uma mesa, mas um espaço escolhido e permanente.

Não vamos para o trabalho em pijama, neste caso, porque é de uma guerra que se trata, um fato de treino é admitido mas, só depois do banho e da higiene pessoal, do pequeno almoço e, eventualmente, do exercício físico.

Mas, sempre depois de mudar de roupa, normalmente, como nos dias normais, o pijama é que não. Está proíbido.

Coisas do foro íntimo de cada um, nada contra, mas mude de roupa.

Fato de treino em tempo de excepções, mas não é para se habituar.

Assim, acabou de criar uma fatia desta nova rotina, que vai vivenciar nos próximos tempos, que vamos, que vou.

A rotina implica trabalhar, a menos que o Euromilhões tenha tocado aí à porta ou a hernaça da tia nunca mais acabe, de outro modo, trabalhar, que isto não são tempos de estar com os braços para baixo.

É como se tivesse saído de casa, de manhã, mas sem sair, imagine assim.

Estabeleça os seus momentos de pausa, enquanto está dentro do horário de trabalho definido.

Saiba o que pretende fazer nesses momentos e faça.

Lanchar, espreitar a televisão, as redes sociais, beber um café com os filhos, estamos dentro de casa, não se preocupe. Coisas que podemos fazer porque estamos a trabalha a partir de casa.

Garanta que durante os períodos de trabalho não é distraído constantemente, que a concentração é igual à que tería no seu local de trabalho. Por isso tem as suas pausas, nas alturas que escolheu tê-las.

Concentre-se, caraças. :)

Como se lá estivesse, no seu local de trabalho.

O que nós, portugueses, estamos a fazer é uma das peças do conjunto de lego que é o teletrabalho, um padrão altamente eficiente, recomendado, porque provoca felicidade nos colaboradores, porque isso provoca empenho e produtividade, porque conseguimos fazer a gestão entre os aspectos da nossa vida pessoal e a forma de trabalhar.

Os contras são quase todos no plano das necessidades sociais, mas não são muitos.

Podem parecer muitos contrasm, por agora, porque os dias não deixam que sejam de outra forma. 

Não valerá a pena falar da sustentabilidade, os milhares de carros que não entram, circulam e saem das cidades.

A redução de custos fixos para as empresas e das despesas dos colaboradores, combustível, portagens, revisões, refeições é um dos factores positivos deste padrão de trabalho.

Estando nós confinados, ainda muito mais as nossas despesas serão reduzidas.

No futuro, quando isto acabar e chegar o tempo de novas decisões grandes, como estas todas que estamos a cumprir, muitos de nós não vão querer a trabalhar da forma como trabalhavam antes, nem as empresas, algumas, vão querer que assim seja porque perceberam que todos ficam a ganhar com esta fórmula.

Ninguém perde.

Chegado ao fim do dia de trabalho vá à janela, ao seu jardim, se o tiver, ou à varanda e inspire, volte a inspirar e sorria.

Acabou o dia de trabalho e a nova rotina começa a ganhar contornos de uma poderosa arma contra o confinamento que o vírus quer transformar em martírio. Nao tem que ser um martírio.

É uma nova rotina, por isso desafiante.

É ela que o vai, que nos vai salvar da loucura e levar isto para a frente, porque vamos para frente e lá à frente seremos muito melhores.

Melhores profissionais, melhores pais, melhores maridos, melhores irmãos, melhores filhos, melhores seres humanos.

Eu fui à minha mala e retirei a minha agenda, em papel.

Gosto das agendas em papel.

Decidi programar o meu dia, o primeiro desta nova carreira, jornalista em confinamento.

As horas para o pequeno almoço, para o treino, para as compras dos bens que precisamos cá em casa, as horas de trabalho, tudo apontado, as pausas nas horas de trabalho tenho-as mentalmente alinhadas.

As minhas tarefas estão definidas e estou perfeitamente apto para as iniciar.

Quando o dia chegar ao fim pego no telemóvel e mando um abraço a alguém, todos os dias, ao fim do dia de trabalho. Faz parte da nova rotina, porque eu criei-a para me sentir melhor.

Criei a minha rotina, que me recoloca a mente a funcionar, que me impede do tédio, do sofá, do pijama, das brincadeiras com a gata, do "pai dá aí, ou Zé, o que é que achas de..."pelo menos até fechar a agenda, a rotina desvia-me dessas tentações todas.

Depois começo a olhar em redor, para a minha casa, como a minha casa.

Só amanhã volto à minha redacção e à minha agenda, em papel.

O abraço que darei a alguém será sempre a última anotação, ao final de cada dia.

Não que eu me esqueça.

Apenas porque gosto de olhar para o papel e ler a palavra “abraço”.

O resto, está tudo neste vídeo.

Em Quarentena de Amor

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29.03.20

Macacos Que Dançam Na Oitava Dimensão


The Cat Runner

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(Foto: Facebook Ana Lourenço)

 

Estou exausto.

Estou cansado de explicar o que tem quase nenhum entendimento racional, mas ainda assim, cansado. Estranho cansaço. Estranhos dias corridos.

Exausto, tanto, que nem o som do silêncio me embala.

Exausto.

Cansado de explicar aos meus filhos porque é que o moscatel também sabe bem, lá em baixo, no jardim do condomínio, onde só estão eles e o fresco da noite, porque é por aqui que estão há mais de 15 inexplicáveis e longos dias.

Cansado de explicar à minha mãe e ao meu pai porque é que não os vejo, não os beijo, mas havemos de nos abraçar, nem que estejam em casa mais 15 dias vezes a nossa vida inteira. Nunca sete quilómetros foram tão longe.

Cansado de explicar à minha mulher que a amarei para sempre, neste momento, em qualquer outro. Que a abraço sempre que me apetecer, sempre que lhe apetecer. Que juntos somos imbatíveis, como fomos toda a vida.

Cansado de explicar ao meu irmão porque é que o admiro tanto, por se levantar às 4 da manhã, para que todos tenhamos comida em casa. Porque o filho que ele quer ter irá nascer num mundo melhor.

Cansado de explicar a mim próprio porque é que vivemos agora num mundo diferente daquele onde vivíamos há apenas três semanas. E viveremos nesse mundo melhor e igualmente diferente.

Quando, aqui, no meu canto, junto à lareira, me comovo sozinho, enquanto escrevo, ou enquanto penso, ou enquanto ouço música nos phones, em 8D.

Tenho, neste momento, a certeza que o mundo roda no sentido oposto ao que rodava.

Até já há música em 8D e descobri isso quando um vírus medonho nos invade por dentro e por fora, não era nada disto que eu pensava que ia acontecer neste ano tão redondo, 2020, o mais redondo de todos.

Talvez seja por isso que a terra agora roda em sentido contrário e a música aparece-me em todos os lados, dentro da minha cabeça.

Ouço-a do lado de fora dos phones, a rodar pela cabeça, de um lado para o outro, passa-me pela fronte, roda, circula, pela direita, atravessa-me a nuca e há uma coluna de som potente no meu ouvido direito.

Desvio o meu olhar para dentro do meu cérebro.

Exausto.

Sinto-me cansado das explicações do coração, quando tudo oq ue estamos a passar nos faz tão sólidos e juntos, apenas a uma longínqua distancia de segurança, higiénica, cortante, só me sinto cansado nessas alturas, quando me emociono, sozinho, aqui, a escrever.

Porque queria que fosse tudo ao contrário.

Porque nunca mais será como eu queria.

Que os meus filhos fossem ter com os amigos para irem para os copos, foda-se, é sábado à noite.

Que os meus pais viessem cá a casa almoçar, com a minha sogra, porque é domingo e sempre foi assim aos domingos. E, vai ser, prometo, juro.

Que a minha mulher fosse trabalhar sem preocupação, porque com coragem ela vai. Que fosse e viesse feliz e não chegasse de rastos. Amanhã é um novo dia, eu sei, eu sei.

Que o meu irmão nos fizesse chegar a comida às prateleiras, mas que não sentisse necessidade de me dizer que a comida não vai faltar, porque eles trabalham quase sem parar. Para me descansar. O meu irmão conhece-me melhor do que eu a ele. Também isso será diferente, mano, prometo.

Cansado de explicar, aos que amo, que não lhes explico nada, paenas lhes mostro o meu cansaço, sem que ele so vejam, apenas que os amo, pelo que me limito a disfarçar-me de forte e corajoso, porque são eles o meu anti-vírus mais poderoso, que alguma vez alguém possa imaginar. Porque os que amo são a minha fonte de poder e jamais os poderei desiludir.

Não queria estar cansado de nada.

A não ser que fosse de correr, todos os dias, como quando ainda podia correr, sem medo, sem medo da liberdade, sem medo de fungar o nariz, limpar o suor do rosto e dos olhos, a não ser que fosse por isso, porque não quero estar cansado de nada.

Quero ser, estar, ter, dar.

Não queria estar cansado de abraçar os meus, sem tempo certo, sem lhes tocar, sem lhes tocar.

Ficou prometido, hoje vamos fazer Bolas de Berlim, na Bimby.

De alfarroba, sugere a minha Maria Bolacha.

Vivemos tempos em que escrevo um texto enquanto escuto música em 8D, num tempo em que nos vamos aventurar a fazer Bolas de Berlim, de alfarroba.

Já dei por mim, ontem à noite, antes de dormir, com os olhos fechados, a tentar apanhar os macacos que dançam, com os meus braços a mexer, na vertical, de um lado para o outro, e as mãos a fechar e a abrir, na tentativa de os apanhar.

Depois, lembrei-me que não tinha desinfectado as mãos e adormeci.

Puta que pariu isto tudo.

Amanhã vou ver se a minha capa de super-homem já está passada a ferro.

Eu já não sou daqui deste tempo. Nenhum de nós já o é.

Definitivamente.

Ou não estivesse a ouvir macacos a cantar e a dançar!

Diz que é o cosmos a equilibrar-se.

É mas é do moscatel que os meus filhos trouxeram para cima.

Amanhã carregamos no creme, nas Bolas de Berlim, macacos me mordam!

Tudo mudou.

Até a hora mudou.

 

(Obrigatório ouvir com headphones)

 

 

 

23.03.20

Até O Futebol Nasceu Na China


The Cat Runner

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(Foto: The Cat Run - Museu do Pão)

 

Não é só o vírus que nasceu na China.

Para mal dos nossos pecados, até o futebol é de lá que vem, não pense que nasceu em Inglaterra.

Passaram tantos séculos. Creio que foi aí que os chineses tomaram o gosto pela exportação.

Voltámos atrás no tempo, que não é passado e nesta viagem voltou connosco o tempo da televisão.

As famílias, as que conseguem estar juntas, reunidas em frente à caixa mágica. Percebe-se agora a sua importância verdadeira. Sempre assim foi, desde que existe, volta a responder, presente!

São dias diferentes.

Acabei por não acender a lareira.

Já vou em quase duas toneladas este ano.

Liguei o aquecimento central, que aquilo está cheio de cinza e não me apetece ir limpar.

Vivo no campo.

São dias diferentes.

Está frio, estamos na Primavera.

A Alice, a minha gata, acabou por me tomar o lugar no sofá e, confesso, são tempos estes que não me dão vontade de a acordar só para me sentar.

Ela que se seja livre. E, feliz.

A Alice está cá em casa há uns anos, foi encontrada na rua, a morrer, tinha pouco mais de um mês.

Uma história de vida, se os gatos fossem humanos.

Depois de ouvir e de ver a entrevista ao Primeiro Ministro olhei para a Alice e percebi que ela não sai de casa há anos, a não ser daquela vez que caiu da varanda e foi parar lá a baixo.

É feliz. Tenho a certeza que a Alice é feliz.

Ocorreu-me isto porque o Primeiro Ministro disse que não há bóias quando há um tsunami. E, isto é um tsunami. Eu acho que são varios tsunamis num só, mas eu não sou Primeiro Ministro.

Em momento algum me passou pela cabeça ficar em casa durante anos, a propósito da entrevista e da Alice, acredito que não chegaremos aí porque, entretanto, alguma vacina milagrosa vai aparecer e porque os chineses já nos estão a ajudar e em força, digo-o de fonte fidedigna.

Apesar de haver um cientista chinês, lá onde a coisa se deu, que diz que isto é caso para dois anos e que na próxima Primavera vai haver outro pico.

Não acreditei nele, acreditei mais no Primeiro Ministro, na entrevista, no chinês não.

Neste chinês não.

Prefiro acreditar nas máscaras, nos fatos especiais, nas luvas, nos ventiladores, no know-how que está a chegar vindo da China. Em massa. Nesses chineses eu acredito, neste não.

Este não deve perceber nada de futebol. É só um malandro que não sabe que malandro que é malandro não estrilha, muda de esquina.

Acredito que conseguiremos voltar a ser um exemplo para o mundo, como quando o conquistámos, quando fizemos os barcos em madeira e fomos por ali fora com o vento a ajudar, ou como quando fomos campeões europeus da bola, o Éder e aqueles dias todos de festa, ou como quando aguentámos a grande crise. Fomos nós que a aguentámos.

Por isso acredito que vamos voltar a ser um exemplo.

O Estado de Emergência, coisa muito séria em democracia, já permitiu a detenção de 16 pessoas. Pessoas que não gostam de exemplos, só conseguem gostar dos golos do Éder e é porque toda a gente gosta.

Que sejam detidas as que forem preciso.

Gostava de ver as autoridades, PSP e GNR mais visíveis nas localidades, porque assim os exemplos a que todos nós assistimos aqui e ali deixavam de existir.

Os das praias é à tromba estendida, os dos "cafés do bairro" são mais dispersos.

Ainda hoje, quando andava em reportagem, deparei-me com dois carros da PSP junto de um grupo de uns cinco jovens, ali para a zona de Odivelas.

Como não conseguimos entender o comportamento destes cidadãos, então que alguém os faça entender. Não há estados de excepção, porque vontade de estar com pessoas creio que toda a gente tem, nesta altura.

Ainda por cima, eu não sou delator.

Não quero ser, era violentar-me e à Democracia. Nunca serei.

Por isso, falta isso, polícia visível nas localidades, mais visível.

Um Estado de Direito não pode permitir que cidadãos irresponsáveis coloquem em perigo a maioria, os que cumprem o que deve ser cumprido, mas um Estado de Direito também não tem ferramentas para dotar pessoas de inteligência mínima.

Não fiquei assustado com o que ouvi na entrevista do Primeiro Ministro.

Assustado já ando há dias. Andamos todos.

Só quem vive fora deste planeta é que podia ter sido surpreendido com a entrevista.

Não a estou a analisar politicamente.

Isso não é para mim.

Nem sequer a estou a analisar.

Estou, com ela, a justificar porque é que não fiquei assustado, nem surpreendido, porque eu ouvi o homem que tem o meu destino nas mãos, neste momento, como nunca, goste ou não se goste dele. Eu e todos nós.

São as evidências.

Acredito que o Primeiro Ministro não esteja a fazer política. Deve sobrar-lhe pouco tempo para isso.

Só que ao contrário do que parece, ele  devia fazer alguma política, porque ele é quem manda por estes dias. Influência. Decisão. Determinação.

A tão falada moratória dos bancos que é tão invisível quanto o vírus assustador. É aqui que estou a tocar.

Não é admissível endividar as pessoas com créditos, nem com contas-ordenado duplicadas, isso são jogadas de baixo nível, nem as empresas, com adiamentos de pagamentos de impostos.

O que nos está a acontecer não permite isso.

As pessoas, a esmagadora maioria, está a cumprir e a fazer a sua parte. As pessoas e as empresas, a sociedade quase toda, cidadãos que não querem ser ajudados a cumprir os seus compromissos finaceiros com adiamentos, empréstimos, mais fustigação, por algo que nada fizeram para o merecer, as pessoas querem so-bre-vi-ver.

E mesmo que não quisessem - os das minis querem lá saber disso - eram obrigadas a sobreviver.

O Primeiro Ministro, que é neste momento o CEO de Portugal, devia fazer política real, sim, e criar condições para que os bancos cessem imediatamente todos os pagamentos dos cidadãos e das empresas portuguesas.

E, a luz baixar, a água, lamento, toca a todos, está a tocar a reunir.

Os soldados já estão fartos de serem baleados nestes campos de batalha por onde temos andado durante quase a vida inteira.

Não há muito mais a justificar, da minha parte.

Não há sequer outra alternativa, ou esta ou o caos, ao caos segue-se o pânico, ao pânico, ao pânico não faço ideia do que se segue.

É inviável olhar o horizonte.

Mais à frente logo se vê.

Fiquei com essa sensação, para o bem e para o mal.

É que um tsunami é uma coisa bruta, esmagadora, transformadora e inesquecível.

E, é aqui que o Primeiro Ministro está a falhar. Falta-lhe ser aquilo que foi toda a vida, ser político, por breves momentos, apenas. Ser político para tomar a decisão que tarda.

Sendo o Chefe do Governo e estando o país sob Estado de Alerta só uma decisão política pode desbloquear aquela que é, no imediato, a bóia, mesmo que as bóias não sirvam de nada num tsunami.

Desta vez servem, ou o mundo não está a rodar ao contrário?

Está!

Então...

As pessoas devem aguentar “até Junho”, disse o Primeiro Ministro, na entrevista, acontece que as pessoas não conseguem aguentar até “Junho”, porque não têm condições para lá chegar, a maioria de nós, os que não andam a beber minis pelas esquinas, esses são cheios de sorte que parece não haver vírus que lhes pegue, salve seja.

Se o estado não tem dinheiro para tudo, também o disse, por outras palavras, então que peça o nosso dinheiro aos bancos.

Nem precisam de fazer favores. É só de-vol-ver. Não dá?

Eu sei.

Então, façam como todos nós, coloquem-se na linha de fogo que isto não é tempo de limpar armas.

Ajudar-nos, a nós, áqueles que fecharam portas, áqueles que até poupam o dinheiro que os outros gastam em minis, para ajudar nos medicamentos dos nossos pais, por exemplo.

Nós ajudamos.

Sempre ajudámos.

Assim como assim as pessoas não vão pagar aos bancos, não acredito que o Primeiro Ministro acredite que vão.

Não duvido que, se me cortarem mais uma vez o ordenado, eu quero lá saber do banco.

É uma questão de seriedade.

O meu compromisso será sempre com a minha família e com os meus, numa situação limite, como esta.

Mais que não seja porque depois logo se vê.

As pessoas pensam como o Primeiro Ministro, mas do lado oposto;

As pessoas não se importam de esperar por Junho, até porque não têm alternativa, mas não se importarem não implica que consigam.

Depois logo se vê assume o protagonismo imediato, porque o  Primeiro Ministro foi claro,

todas as sociedades se transformaram, tal como o mundo também, após uma guerra.

Uma guerra é transformadora, como foi o aparecimento da internet, como todas as revoluções e mudanças a que a civilização já se sujeitou.

O que eu deduzi da entrevista é que, o pós-guerra terá que ser – como escrevi, há dias – um tempo novo, de todos, para todos. To-dos, assim, soletrado em bold duro.

Todos teremos que nos adaptar à tal mudança, que será profunda, como ao longo da História.

Foi neste quadro que o Primeiro Ministro disse que a UE terá que ter um Marshall Plan, quando isto terminar, para que consigamos erguermo-nos dos escombros.

Não sei qual será o nome do plano, mas sei que Portugal terá que ter um plano.

Agora e também a seguir ao fim.

No princípio, no recomeço.

Sugiro que comecem o desenho mal possam. Ganhem tempo. Aproveitem o Centeno mandar naquilo tudo e ndar tudo aflito para tomarem a dianteira, mas isso é só depois da guerra. Começar de novo.

Agora é lutar na primeira linha de combate.

Depois, então, começar do zero, porque todos terão mesmo que mudar comportamentos, filosofias, sistemas, organizações, as pessoas, os Estados, os decisores, os da Finança - da clara e da escura e da alta - todos do zero.

O gasóleo até está a 1.10 euros o litro.

Há menos 75% de carros nas auto estradas de Portugal.

Há gente sem fim a trabalhar a partir de casa.

Há coisas que mudam segundo-a-segundo nas nossas vidas.

E, ainda há a esperança, nesta incerteza, nesta coisa brusca que nos está a atropelar, porque a esperança é a coragem de cada um de nós.

Não nos deixemos tomar pelo medo.

Hoje, quando regressei ao trabalho, ao fim de oito dias de confinamento social e saí de casa, de manhã, senti-me feliz.

Voltar a conduzir de vidros abertos, a ouvir música, chegar à fábrica, trabalhar, cuidar dos meus à distância, ter alguma normalidade dentro desta anormalidade. 

A minha felicidade durou desde o segundo andar até à garagem.

Quando entrei no carro lembrei-me de uma cena, de uma série que comecei a ver, por sugestão de um amigo.

A cena seguiu dentro da minha cabeça até chegar ao destino.

Que estranha viagem.

As estradas mais congestionadas do país são agora estradas limpas, claras, vazias.

Nunca cheguei tão depressa dentro dos limites de velocidade e já faço a A1, 2ª Circular e IC19 há 25 anos. Respect!

A cena da série era tão simples quanto inquietante e estranha.

A série é sobre as origens do futebol.

Não verdade, o futebol não nasceu em Inglaterra, como é senso-comum, as suas regras, sim.

Mas, se quiser posso falar-lhe disso isso depois.

( https://pt.wikipedia.org/wiki/Futebol#Origens )

Acredite, o futebol nasceu na China, tal como este maldito vírus. Se isto não é o nosso fado...

Mas não nos deixemos tomar pelo medo. Nós temos o poder de transformar o medo em coragem. 

A cena que me acompanhou no caminho gamou-me o sorriso, ao entrar no carro, porque  o passado jamais volta.

É a única certeza que tenho, essa e a de que não voltaremos a jogar futebol com bexigas de porco, como na China, onde "tudo" começou.

É a Lei das coisas e da vida.

A tal cena era um tão primitiva, um simples aperto de mão.

A cena era esse gesto tão estranho!

E, a Alice que continua a dormir, como se nada fosse?!

 

 

 

21.03.20

Dia Cinco " Coisas Difíceis De Entender "


The Cat Runner

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(Foto: The Cat Run)

 

Segunda feira regresso ao trabalho.

Já sei que a redacção está muito diferente.

Agora há muito espaço, são muito poucos em cada turno, as portas estão sempre abertas, quase todos trabalham com máscara e luvas, com muito mais cuidado e afecto e a segunda circular é, provavelmente, a melhor entrada de uma capital, em todo o mundo.

Vim de sete dias de trabalho.

Estive oito dias em casa.

Volto doze dias, para as notícias.

Depois, roda o disco e toca o mesmo.

Acho que é isso que vai acontecer.

Não fosse o que é e nem me custava a acostumar a esta vida de trabalhar 15 dias por mês.

Se calhar, no final, os nórdicos é que a sabiam toda. Mas, não dá. Pelo motivo que é,não dá.

Mas, trocava isso pela lógica, se desse.

Tenho tentado perceber junto da lógica e perguntado se vale a pena e encontrei resposta.

Claro que vale a pena, só que há coisas que não têm lógica coisa nenhuma.

Nem nessa alucinação ilógica essas coisas fazem sentido.

Como é que é possível que ainda exista, hoje, um ser humano à face da Terra, num momento tão extraordinário como este das nossas vidas, que não tenha ainda compreendido, de facto, o que está a acontecer ao mundo, ao país, à cidade, à vila, à aldeia, à rua, à família, aos amigos, aos colegas. Mas há, eu vi.

Não, não chega sugerir que fiquemos em casa, ainda por cima com regras claras e definidas, sem nos roubar a liberdade total. Muita dela colocada dentro de uma caixa, por um motivo maior, uma caixa de onde meia dúzia de peões teimam em saltar para fora.

Não chega.

Enquanto houver uma só pessoa que fure esta lógica não chega.

Não me choca que a próxima medida anunciada possa ter a ver com a vigilância da via pública, para não escrever das ruas que é mais pesado.

Aquilo a que eu assisti hoje levou-me a uma reflexão cruel, porque acreditava que já não ia ver mais o que vi.

Nós somos polícias uns dos outros, mas nós não somos polícias uns dos outros, não podemos nem devemos ser, não podemos ir por esse caminho. Não podemos agir como se fossemos polícia dos costumes, mas não podemos ficar indiferentes a quem não é minimamente responsável.

 

Pessoas que não gostam de sugestões, preferem imposições, provavelmente, mas não tem que ser assim, não devia. Duvido que não venha a ser.

Toda uma maioria de guerreiros prejudicados por soldados bêbados e desalinhados. 

Aquilo a que assisti hoje impeliu-me para o quartel da GNR mais próximo.

Acabei a virar em sentido contrário, no cruzamento, porque ser polícia dos outros vai contra tudo aquilo que temos andado para aqui a defender. Não somos nós a polícia.

Eu tenho autorização oficial de circulação na via pública, devo responder exclusivamente às indicações das autoridades de saúde, caso não esteja a cometer qualquer ilícito, obviamente, e devo colaborar com as autoridades de segurança, esteja ou não esteja em horário de serviço.

Por isso o dilema que me assaltou.

Por isso a reflexão que fiz.

Por isso a decisão que não consegui tomar.

Mas, da próxima vez que um grupo de cinco ou seis pessoas passe a tarde no exterior de um local público a beber minis, a fumar e a comportar-se como se estivéssemos a viver como há um mês espero já ter reflectido e tomado a decisão mais correcta, nessa altura.

Mudei de direcção porque a conversa enojou-me mais do que a atitude;

“Aquela gaja, a Greta, essa, o Covid mata mais que a gaja”, ou lá o que isso quisesse dizer, lá isso desse "gaijo", o Covida. Apenas quis sair dali. E, saí.

Foi só por isso que mudei de direcção e fui para casa.

Segunda feira regresso ao trabalho e sei que vai valer a pena.

 

 

 

 

20.03.20

Dia Quatro " Fique Em Casa "


The Cat Runner

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Dias novos, dias de medo, dias de inspiração, dias que mudaram os nossos dias.

O jornalismo televisivo, não sei se alguma vez demos conta, é compatível com o teletrabalho, mas não é uma prática, isso sabemos, por isso parece ser mais difícil de fazer.

Tudo o que é desconhecido assusta. Até os vírus.

O teletrabalho é uma ferramenta que tem – poucos – lados negativos e – muitos – lados positivos, para as pessoas e para as empresas, para o ambiente, para a sociedade e para a economia.

Na verdade, quando estamos fora da redacção, em trabalho, os jornalistas de televisão estão a fazer teletrabalho, apenas não temos essa consciência, porque não nos é habitual.

Recolhemos a informação, editamos e enviamos para a redacção, para ser emitida a reportagem.

Usamos equipamento profissional, fazemos equipa com o repórter de imagem, mas estamos fora de portas.

Nestes tempos estranhos, em conversa com o meu Chefe de Redacção e meu amigo, sugeri sair à rua e fazer uma reportagem/teste.

Estou quase há oito dias em isolamento social e tenho gerido bem o tempo, mas faltava-me qualquer coisa.

Luz verde e lá fui eu.

Levei o meu tripé, o meu micro de lapela para smartphone e o telemóvel.

Meti-me no carro, fiz um roteiro mental, coloquei a carteira profissional pendurada no pescoço e fui conduzindo pelas ruas e estradas aqui da zona onde vivo.

Vivo numa das zonas do país onde há uma das maiores comunidades chinesas, aqui no condomínio tenho quatro famílias chinesas como vizinhos.

Há bastante tempo.

Era o dia 1 do Estado de Emergência.

Fazia sentido tentar fazer esta reportagem com os meus próprios meios, amadores, e com a minha experiência, profissional.

Um equilíbrio que também foi um teste à minha agilidade criativa.

Por isso é que o meu diário estava quase um dia atrasado.

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A razão estava comigo e com o Vasco Rosendo.

A reportagem já foi exibida nas redes sociais, na TVI e na TVI24.

Não, não quero abrir nenhum precedente nem colocar em causa empregos, deixem-se disso. Apenas a necessidade que aguça o engenho.

Assim, quando a guerra acabar, posso dizer que na minha carreira cheguei a fazer reportagem com um telemóvel.

Quando a guerra acabar podemos dizer tanta coisa.

Mas, do que eu mais sinto falta é dos abraços.

 

( Esta é a reportagem experimental que foi emitida )

 

 

18.03.20

Dia Três "Ainda Assaremos Um Chouriço Com O Álcool Que Sobrar Da Guerra"


The Cat Runner

 

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É a primeira vez que escrevo um texto num país em estado de Emergência.

Caraças, no meu próprio país, na minha própria história.

Mas isto lá passava pela cabeça de alguém, alguma vez?

Em 1975 eu era um miúdo com seis anos, eu próprio tinha a minha emergência em viver, no meu mundo, tão feliz. Passou-me ao lado. Desta vez não. desta vez embateu de frente contra mim, a alta velocidade.

É quase uma antítese mascarada, escrever um texto de opinião, pela primeira vez debaixo de um Estado de Emergência, que é em si mesmo assustador, mas em liberdade, em democracia, o que apenas confrota, não descansa.

À primeira parece não encaixar.

Olhemos mais atentamente.

Talvez não encaixe, o problema e a solução mas confiemos nos desígnios, no Homem, enquanto ser e espécie e façamos um esforço para que se encaixe, para que se equilibre.

Está na hora dos Homens.

Eu também não sei, no momento em que escrevo este texto, o que é que vai acontecer durante o dia, mas imagino. Assustado, claro, como qualquer pessoa consciente, mas não surpreendido, porque se recuar uns textos meus, há bastante tempo que isto se me afigura no horizonte, não com cores tão abstractas e surreais, mas o desenho disforme.

“Por acaso até me emocionei com o discurso do Presidente”, disse-me o meu filho, enquanto metíamos a mesa para o jantar.

Fiquei com uma imagem, um miúdo em tempo de guerra. Ele tem consciência disso e isso é estranho, ver o meu filho preocupado com coisas que não deviam estar a acontecer na sua nem nas nossas vidas.

Não é uma imagem hiperbolizada. Ela é mesmo assim. 

As suas incertezas, os seus medos, as suas novas realidades, as suas novas responsabilidades, as suas novas certezas, as suas novas esperanças, as suas novas convicções, o seu novo despertar.

O que este inimigo não sabe é o poder que está a provocar dentro de cada um de nós.

Nunca o mal derrotou o bem!

Deixei-o sair esta noite, porque poderá ser a última em que vai poder ir a casa do Tiago, aqui ao lado, estar um pouco com ele e com as irmãs, a respirar felicidade, amizade, e voltar à hora marcada, para se fechar de novo na trincheira que nos tenta proteger do inimigo.

O meu filho tem 20 anos e tem hora marcada para chegar a casa.

Porque é assim que ele entende que deve ser. Ele dá-me a esperança que às vezes tenta fugir de mim. Quando ela se quer transformar numa miragem.

Num dia destes, cinzentos e carregados, o meu filho dizia-me, “ver o Presidente na varanda e depois naquele Skype é um bocado deprimente”.

Esta noite emocionou-se, ao escutar o Presidente.

O meu filho, a quem o mundo pertence, tem sentido crítico, mas não usa a crítica fútil, desprovida do contexto que vivemos, irresponsável até. Acompanha as notícias, está informado.

"Acho que tenho que ponderar se quero ir para Desporto ou para Ciência Política, isto começa a fazer-me sentido".

Está um homem, o meu menino.

A merda é que não consigo encontrar nem máscaras nem luvas.

Nas farmácias aqui da terra estão esgotadas.

Nos hipermercados também.

Até a maior loja chinesa, da qual sou cliente, está fechada, com um papela de aviso, pendurado no portão.

Estive lá parado, fiz um sinal de fixe à chinesa que andava no parque de estacionamento a despejar lixo.

Vi que me sorriu, por trás da máscara. 

Pela manhã, depois do pequeno almoço e de um treino para manter as defesas em alta, vou bater à porta dos vizinhos e vou perguntar, como antigamente:

“Bom dia, vizinho, tem uma caixinha de máscaras ou um parzinho de luvas que me dispense, eu depois devolvo-lhe, quando a guerra acabar”.

Talvez tenha sorte.

Há aqui no bairro umas quatro ou cinco famílias chinesas.

Uma delas é da dona da loja que fechou.

Ou há máscaras e luvas ou invento uma fake new sobre eles.

Nem morto.

Credo, morto é palavra proibida nesta altura.

Alguma vez eu podia ter escrito isto se estivéssemos debaixo do Estado de Emergência que muitos, ideologicamente e erradamente querem sugerir?

Não, obviamente que não, porra.

Fechem um pouco a matraca, as opiniões às vezes são lama que tolda a caminhada.

E, se alguma vez o que dizem temer acontecer, então, cá estamos todos para a luta. É isso que temos feito e temos que fazer, lutar, nem que seja em muitas lutas ao mesmo tempo.

É isso que é uma guerra, um conjunto de batalhas e nunca vivemos uma guerra.

É a primeira vez.

Na verdade eu preciso das máscaras e das luvas porque me foi solicitado profissionalmente que recolha determinados conteúdos, mesmo em casa, ou se sair, caso seja preciso sair.

Neste momento até já sei como se deve efectuar a minha circulação e a forma de agir, no âmbito da minha profissão, já sei as regras oficiais para operar neste quadro de emergência decretada. Fui informado pelo meu orgão oficial, a Comissão da Carteira Profissional, em conformidade com a Lei.

Quanto ao álcool, ainda temos umas duas ou três embalagens, vai dando, aos meus pais também ainda não está a faltar.

Eles é que não saem mesmo de casa.

Vão preparando o terraço, ainda vamos ter que gastar o álcool  para assar uns chouriços, um dia destes, quando estivermos todos a celebrar o fim da guerra.

Como nos filmes.

Eu já vi o Muro de Berlim cair uma vez.

Vou ver de novo, mas desta vez também o irei derrubar.

Iremos todos.

A chouriçada assada fica marcada para data oportuna.

É que agora tenho que andar com um salvo-conduto no bolso.

 

 

 

17.03.20

Dia Dois "A Lei Da Compensação"


The Cat Runner

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Hoje ao ler uma mensagem do meu irmão provei a massa de que somos feitos.

O meu irmão trabalha numa das maiores cadeias de distribuição. É ele – com muitos outros – que garantem todos os dias o abastecimento das centenas de camiões que fazem a distribuição pelas superfícies comerciais.

Dizia ele na mensagem que se parassem não havia alimentos nas prateleiras.

Nem imaginamos a quantidade de gente que está lá fora a lutar nesta guerra.

Há meses que uso a palavra guerra.

Infelizmente, agora, entrou no léxico, nas conversas, entre as pessoas, os apresentadores de telejornais, os políticos, os comentadores, estamos em guerra, já ninguém tem dúvida.

Ainda há pouco disse à minha mulher: “como nunca vivi uma guerra, só vi nos filmes e li nos livros, aquilo que sinto é como se estivéssemos em guerra”.

E é isso que sinto.

Nas guerras, vi nos filmes e li nos livros há sempre os que ficam como heróis. Um ou outro, raramente todos.

Nesta guerra ainda não há heróis. Há soldados em combate. Haveremos de lá chegar.

Agora, cada um de nós está a fazer a sua parte, a cumprir a sua missão e que orgulho que é sentir e ver isso.

Ao fim do dia dizia eu, na cozinha, enquanto o meu filho decidia fazer um bolo, algo nunca sequer tentado: “ só falta a casa ser em madeira, o candeeiro ser de petróleo, e a mãe e a Maria usarem laçarotes nas saias ou aventais”, enquanto espreitava pela janela.

O pôr-do-sol da minha janela é maravilhoso.

Certo é que, enquanto a mãe tirava a louça da máquina, eu arrumava a louça e ele preparava tudo para fazer o bolo. Temos que agarrar as oportunidades e os momentos, sobretudo, os momentos.

A gata Alice andava de um lado para o outro, como sempre, a tentar acompanhar a movida.

Cenoura?

Laranja?

Cobertura?

“Mãe onde é que está a farinha, pai dá aí o açúcar, Maria afasta aí a calculadora”.

Sim, Chef RQ7.

A mais nova estudava.

“Maria vai para a sala”, dizia alguém, por causa das gargalhadas.

“Tranquilo, não me está a incomodar”. É determinada e consciente.

O segundo dia de não sei bem o quê resumiu-se a isto, a uma família dos anos quarenta, em tarefas dos anos quarenta, mas sempre com uma distância de segurança, mesmo na cozinha. Nos anos quarente se calhar também era assim. Distância de segurança.

Só os telemóveis faziam a diferença. Até a temperatura na cozinha era afável e reconfortante, como o cheiro do bolo, que saia do forno quente. Fui acender a lareira.

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Nas outras guerras não havia smartphones.

Nem internet. Incha vírus.

Nas outras guerras também havia vírus e quarentena e estado de emergência e contingência e tiros e bombas. Nesta só há vírus, até ver. Não valorize a palavra "só".

Confesso que está na hora de ir provar o bolo que o meu filho fez.

Não partilho fotos na internet porque ele já não é pequenino. Será sempre, mas já não o é. Não tem a mesma piada. Cresceu rápido.

Nas redes sociais todos os pais mostram os seus bolos, com os seus filhos pequeninos, enquanto actividade familiar imposta.

Quando o Rodrigo era pequeno cheguei a mostrá-lo a actuar num concerto de rock, tinha uns quatro anos.

Ele a fazer o seu primeiro bolo, voluntariamente, não tinha a mesma piada, ele sabia. Teve que ser de costas!

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Numa das fugazes saídas de casa conversávamos os três dentro do carro, ele, eu e a mana.

Era incrível tudo aquilo que lhes tinha contado sobre o que tem sido o mundo, com a minha deturpada visão sobre ele, por ser minha.

As guerras mundiais, a que não assistimos, o homem na Lua, já eu quase cá andava, a televisão, a preto e branco, primeiro, com naperons em cima, depois a cores, agora em todo o lado, os computadores que vimos nascer, e já não reconhecemos os seus pais e avós, tudo como uma cena de ficção quase quase científica, a internet, que chegava através de um modem externo, eles, os meus filhos conhecem a internet e mais do que isso, mas nunca viram um modem externo, o Muro de Berlim,  que irá cair, de novo, tenho a certeza, quando tudo isto terminar, a década de sessenta, 1969 e a liberdade, Abril, depois, “já viram o tanto a que já assistimos na vida?”.

Mas, não deixei os meus filhos responderem. Continuei:

“A avó disse hoje à mãe que estava rija, já tinha vivido e sobreviveu ao fim da Guerra, não era agora o vírus...”

Os meus filhos não precisam que lhes diga que estamos em guerra.

Mas, eu disse-lhes que “o incrível é que tudo o que vos contei do mundo e do que temos vivido cai por terra agora.

Vocês nasceram na era da guerra.

Fomos todos muito descuidados com vocês.

É hora de vos compensar. Lutar por vocês e lutar com vocês. A lei da compensação e do amor.

Por vocês e com vocês temos que a ganhar".

E não parei de falar.

"Agora, imaginem, eu e a mãe que já vivemos aquilo tudo, imaginem mais, imaginem a avó que cresceu no fim de uma guerra mundial?”.

O "imaginem" é uma daquelas forças de expressão perfeitamente estúpidas, só utilizadas em situações de urgência.

O que lhes quis dizer, antes de chegarmos a casa e passarmos o resto do dia no calor da nossa cozinha é que faz parte da história das pessoas a travessia das mudanças, os choques das transformações, a fé dos homens.

O mundo tem sido feito assim.

Lembrei-me do meu irmão, que me garantiu que não faltaria farinha, manteiga, ovos e leite nas prateleiras. O essencial para fazer um bolo.

Um irmão não mente a um irmão.

Depois digo se o bolo estava bom.

Se era de cenoura ou de laranja.

Chocolate, talvez.

 

 

 

16.03.20

Dia Um "The Red Line"


The Cat Runner

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Hoje, pela primeira vez, nos últimos dias, voltei a ser uma pessoa normal.

Tenho estado absorvido, a viver dentro de uma bolha chamada Covid 19 e só hoje saí de lá de dentro, como se fosse possível, alguma vez, sair de dentro de um acontecimento tão impactante, tão transformador, quão assustador e esmagador, desafiante.

Revoltante.

O jornalismo é hoje e, percebem agora alguns, também é todos os dias o farol que ilumina uma sociedade.

O farol que fica aceso até ao fim das tempestades.

Para que essa luz não se apague e não nos deixe na escuridão, enquanto colectivo, enquanto comunidade, enquanto espécie, mas também pela nossa própria sobrevivência. A de cada um de nós, individualmente.

A minha redação ficou reduzida a metade. A outra metade, da qual faço parte, juntamente com a minha mulher, recebeu instruções para ficar em casa, em alerta, de prevenção, para que a luz não se apague, quando fraquejar. A qualquer momento.

O mundo está em guerra.

Dizer isto soa a estupidez, numa altura destas, de tão óbivo.

Só quem não consegue processar informação no seu cérebro ou quem vive num outro planeta é que não consegue ver o que nos está a acontecer, mas importa sublinhar, sublinho, estamos em guerra.

Estranha guerra que nos confina nas nossas próprias prisões, nunca imaginámos.

Hoje foi o meu primeiro dia, o nosso primeiro dia, o recomeço, estivemos os quatro em casa, estivemos, a palavra que muda tudo isto.

Nem que seja um processo de fé.

Eu, a minha mulher e os meus filhos.

Eles já estão em casa há uma semana, mas eu e ela temos estado na segunda linha da frente, para nós, na primeira.

Só hoje é que conseguimos estar juntos, porque alguém nos obrigou a estar juntos.

Há toda esta beleza na tragédia.

Cuidámos da casa, rimos, falámos sobre as notícias, fizemos planos para amanhã, preparámos tudo para estes dias estranhos.

Amanhã vamos recomeçar a treinar aqui no bairro, temos jardim, piscina, espaço, felizmente-

Confesso que, quando comprámos a nossa casa, neste condomínio fechado, a meia hora de Lisboa, que nos penaliza brutalmente nos custos das viagens, nunca imaginei que haveria de ser obrigado a ficar em casa por causa de uma cena de ficção científica.

Mas, está a acontecer e tenho essa possibilidade, de sair de casa, em casa.

Temos tudo mais ou menos planificado, estamos em família, finalmente.

Só nos falta aqueles que amamos e que estão a meia dúzia de quilómetros de nós separados por um Muro de Berlim mascarado de vírus. 

A mim cabe a tarefa de ir às compras.

No caminho para o hipermercado, numa viagem e visita extremamente rápidas, enquanto escutava a rádio e o ministro Cabrita a anunciar mais medidas ia observando os locais por onde passava.

O final de tarde parecia-me uma manhã de domingo.

Na bomba de gasolina dois agentes da PSP e o atendimento feito pela janela.

Todas as bombas assim, pela janela.

O ministro Cabrita informava-nos que as fronteiras praticamente fecham esta noite.

Pensei compar alguma coisa no Mc Donald´s mas está fechado, os restaurantes também, o Paris, a Torre, o Chico do Porto, nas farmácias as pessoas faziam fila, distanciadas pela segurança recomendada, muitas delas com máscaras, como eu.

Dei comigo a transportar uma máscara e a utilizá-la.

Já o tinha feito no trabalho, agora cá fora, no terreno de batalha, porque ele, o inimigo brutal, nunca se mostra. É cobarde. E, nos filmes e nas séries eles também andam de máscaras.

Antes de estacionar, olhei para a fila, à porta do supermercado.

Esperei pela minha vez, pouco tempo e entrei logo depois de tirar esta foto.

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A minha mulher, mais céptica, mais ponderada, mais lúcida do que eu, dizia-me ainda há bocado que tudo isto lhe parece uma série de televisão.

Pois parece, mas a diferença é que esta é uma série em tempo real, da vida real, sobre a qual se desconhece o final do argumento e os argumentistas, só os actores. 

Isto é tudo tão para lá do que seria humanamente possível imaginar que está a dar-me para várias coisas, para me revoltar, para me assustar, para me puxar à terra, para me adaptar e alterar hábitos, para pensar, muito, em tudo, para não mostrar fraquezas, para ajudar os outros. Para me emocionar.

Emocionei-me, quando chegada a minha vez, me mandaram entrar;

“para o que havíamos de estar guardados”.

Emocionei-me quando pedi o fiambre e o presunto e me indicaram para que ficasse atrás da linha amarela e me deixaram o saco em cima do balcão para que o fosse buscar após a empregada sair dali.

Emocionei-me quando fui à padaria, normalmente cheia de gente, e paguei o pão à empregada.

“Não esteja assustada ou então transforme esse medo em força, vamos ganhar, todos juntos”.

“Obrigado, pelas suas palavras”, agradeceu-me.

“Não tenham receio de avisar as pessoas”, disse-lhe eu, antes de sair, por causa daquela senhora, dona de mais de oitenta anos de vida, que entrou – só estávamos os dois, enquanto clientes – e se aproximou do balcão, encostando-se praticamente a mim.

Pousou os braços no balcão, num descanso improvisado, ao que, delicadamente lhe disse:

“Não pode encostar-se ao balcão, diz aí nessa papel por baixo dos seus braços”.

Olhou-me de lado, mirou-me a máscara, e respondeu-me:

“Oh !”, encolhendo os ombros, "já só tem esse pão, credo, as pessoas andam todas doidas".

Pois andam.

Percebi a urgência do momento e tentei não me demorar nas compras, normalmente não me demoro, levo tudo apontado no telemóvel, vou ouvindo música nos phones e sou rápido.

Já conheço os corredores. Cheiro as promoções. Danço com o carrinho.

Mas, hoje pensei nos que estavam na fila, lá fora.

Enquanto ia fazendo as compras ia olhando em redor até que decidi começar a filmar, a fotografar, porque tudo me era estranhamente habitual.

Senti-me dentro de um vídeo no Youtube, gravado na Coreia do Norte, onde os hipermercados estão vazios de gente e os poucos que se vêem são os que lá trabalham. Quem nunca viu um!

Corredores vazios.

Gente com máscaras.

Mas não, não estava na Coreia do Norte, estava no Ribatejo.

O vírus chegou ao Ribatejo

Senti-me estranho, no meu próprio mundo.

Ninguém se cruzava com ninguém, os poucos que circulavam no interior desviavam-se claramente uns dos outros, eu também.

Os chineses também.

Aqui, na minha freguesia, vive a segunda maior comunidade chinesa, no país.

Aqui, no bairro, o bairro é o condomínio, vivem algumas famílias chinesas, há anos, que viajam constantemente.

As pessoas desviavam-se marcadamente umas das outras.

A máscara era colocada quando estava muito próximo de alguém, como quando perguntei ao colaborador “qual é o detergente para máquina de lavar, para roupa branca?”.

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Detive-me na linha vermelha na caixa, após colocar os produtos no tapete rolante, cumprindo o que estava escrito.

“Pode avançar”, disse-me a empregada depois de limpar o balcão e o terminal de pagamento.

Coloquei a máscara.

Paguei, arrumei as compras e saí.

“Não pode sair por essa porta tem que ser pela outra”.

Ainda bem que há sempre uma porta para entrar, mas também há uma para sair, nem que seja a mesma.

Ocorreu-me, ao entrar no carro, para voltar a casa, que foi um vírus vindo da China (não sabemos se é mesmo chinês) que derrubou o Capitalismo, esse resistente a tudo e a todos.

Não pensou nisso?

Eu também ainda não tinha pensado. É uma das mudanças na nossa civilização.

Até isso mudou, vai mudar, está a mudar.

Está tanto e tudo a mudar.

É a primeira vez na minha vida, na nossa vida colectiva, que estou em casa, sem estar doente, de folga, de férias. Por ordem da minha empresa e das autoridades.

É a primeira vez para todos nós.

É também a oportunidade para celebrarmos o amor, junto da família.

Arrumamos a casa, fazemos refeições, conversamos, partilhamos preocupações, esperanças, convicções e afectos, treinamos, lemos, e até nos irritamos.

Estamos a aproveitar porque o amor também mata. Mata vírus e coisas mais más, ainda.

O amor mata.

O amor mantém-nos vivos.

Hoje tive que ir ver os meus pais, que não via há nove dias, apesar de o meu pai estar com uma infecção pulmonar aguda e ter isolado o centro de saúde, na sexta feira, por ser suspeito Covid 19. Não deve ser.

Mesmo assim, só hoje decidi ir visitá-los, à janela, tão rápido, para os proteger, a eles.

Como vos amo, mesmo sem vos poder abraçar.

Eu sei e eles sabem e nós sabemos que é a primeira vez que o mundo começa a parar e a recolher-se.

A história que estamos a viver é a mesma que estamos a escrever.

A oportunidade para mudarmos os nossos comportamentos e os nossos hábitos. Nunca o nosso amor.

A oportunidade para abrirmos os nossos corações e não deixar nenhum de nós para trás.

Nunca se deixa um dos nossos para trás, no campo de batalha.

A oportunidade para, no final, sermos outros.

Quem sabe se não precisávamos todos de sermos outros.

Quem sabe se não estamos também a experienciar uma oportunidade que nos cai no colo trazida por um tsunami escuro, feio, mau.

Como jamais aconteceu no mundo.

Dizia-me a minha mulher, nas muitas conversas que temos tido, “isto parece uma série, só falta começar a dar notícias de clones humanos que estão a aparecer por todo o planeta”.

Parece que os vejo, enquanto o relógio avança e o inimigo também.

Quero acreditar que não.

Mas, que parece uma série de ficção científica disso não tenho qualquer dúvida. E, talvez seja.

Acontece que, no final, os bons ganham sempre.

Não será diferente.

Tenho a certeza

 

 

 

11.03.20

OS DA LINHA DA FRENTE


The Cat Runner

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Quis ser jornalista por causa da minha mulher.

Lembro-me de uma noite que foi marcante, decisiva, uma noite em que me telefonou por volta das quatro e meia da manhã para ir ter com ela à bomba de gasolina porque tinha tido um furo.

Ela fazia o turno “manhã 1” e eu fazia os turnos todos, mas como não éramos casados, lá saí eu da minha casa e lá fui mudar o pneu do carro comprado a pronto, que naquela altura não havia vírus e merdas destas, era tudo à grande. Até dava para escolher onde queriamos trabalhar e tudo.

Aquele espírito entrou por mim adentro, até hoje, especialmente hoje, já vai perceber porquê.

O tal espírito de missão pública, que transforma um ofício numa fé, numa forma de viver.

Foi ela que me ensinou, naquela quase manhã, enquanto mudava o pneu furado do Fiat Uno preto, que era isto que eu queria ser, jornalista.

Uma espécie que se move sempre na linha da frente, na primeira linha de fogo real.

Em tempo de paz são as redes sociais, que se forem encaradas do ponto de vista de um reality-show até é engraçado, mas em tempo de guerra é o risco a sério, daquele que mata, mesmo.

E, estamos em tempo de guerra e em toda a escala.

É plausível que chegue um dia destes e todos tenhamos que ficar em casa;

o país em shut down total.

Não é um cenário alarmista, este, meu, pode acontecer.

Cidades, vilas, aldeias, ruas, desertas de gente. Espero que esse dia não chegue.

Se a tempestade vier para nos engolir temos que nos proteger. Em casa dá para reflectir, no que somos, no que queremos, no que é que andamos aqui a fazer todos, em casa haverá tempo de sobra para colocar as almas de cada um em dia.

Guerra, aberta, global, contra um inimigo que não se vê.

A linha da frente começa a definir-se, a desenhar-se, a formar-se, na exacta medida em que o vírus se espalha;

monstruosamente.

É a triagem natural, o ponto de equilíbrio, mas mete medo, o plantea a equilibrar-se desta forma.

Estamos na selva;

bem vindos à selva.

Quando todos forem forçados a ficar fechados em casa haverá algumas estirpes de vírus que serão a ligação entre o mundo real, lá fora, vazio de gente e em quase silêncio, parado, e todos os enclausurados, que aguardam sobre boas-novas das suas próprias vidas, da sua própria existência, enquanto seres humanos.

As forças da ordem, o contingente de saúde e os jornalistas, normalmente, os excomungados em tempo de paz.

os que batem lá com os costados.

Como nos livros que já lemos e que não passavam de romances enganadores, uma espécie de mundo vazio de normalidade, onde se movimentam os que tratam, os que protegem e os que contam o que acontece, na linha da frente.

Ok, esqueçamos este lado mais romanceado do cenário.

Na linha da frente só ficam os que lá estão cumprindo uma missão, a sua maneira de sublinhar a sua própria existência, porque foi isso e foi assim que escolheram.

Já não estamos em tempo de graças nas redes sociais, o planeta paralelo. Não, porque isso revela-nos e, em momentos tão insólitos quanto o que todos nós estamos a experienciar e a viver e a gerir não há mais lugar para distrações.

Estamos no início de uma guerra.

Só alguns ficam na linha da frente, até ao fim, até ao final, mesmo.

Nem que tombem.

Ninguém precisa de dar valor a isso.

É assim que é para ser, polícia, militares, médicos, enfermeiros, jornalistas e muitos outros profissionais de muitas outras áreas.

Na linha da frente ficam os que têm e querem lutar por todos os outros.

Este vírus está espalhado pelo mundo.

Nem um dos homens e mulheres que mencionei lá em cima no texto é imune, juro, também somos todos humanos, mas aquela coisa da missão...

Não é uma coisa vaga, eu explico:

Eu, a minha mulher, responsável por eu ser jornalista, os meus familiares, amigos, até mesmo os meus inimigos, todos estamos à mercê, como qualquer pessoa.

Acontece que quando me mandam para o terreno eu aproveito para viajar numa cápsula, que me protege, penso eu.

A natureza do jornalismo está no medo, comum ao Homem.

O medo do desconhecido que encaminha para uma ruela em sentido contrário.

A ruela que leva a querer conhecer, que do desconhecido está o céu cheio.

O vírus é assunto sério, o acontecimento mais impactante do século, deste.

De coisas parvas, fúteis, ocas e merdosas anda este mundo cheio.

E o outro também!

E eu ainda acredito no Homem.

E, no jornalismo.

Acredite, neste momento há excelentes jornalistas a lidar com esta realidade e uma outra que fragiliza tudo e todos de alto a baixo, mas lá estão eles, na linha da frente, aquele merda da missão.

Uma cápsula para cada um fazer a sua própria viagem, cada um com o seu próprio escudo protector, forte, destemido, às vezes pessoa de carne e osso.

Gostava que um destes dias alguém questionasse as autoridades chinesas.

A fórmula é simples,  a mesma do jornalismo só que adaptada ao acontecimento:

Quem, quando, como, porquê?

Onde, já sabemos.

Eu disse alguém, mas não é alguém.

É o mundo inteiro que tem que questionar porque é que estamos em guerra. Tem que haver explicações. Há-as para tudo, sem excepção, no final há sempre.

Será um jornalista o primeiro a fazer essa pergunta, tenho a certeza.

Os anos passaram e o Fiat Uno preto deu lugar a um Audi preto.

Mas, a luz amarelada da bomba naquela “manhã 1” ainda hoje me levava a sair de casa, e ir mudar-lhe o pneu, fosse a que horas fosse.

Mesmo se um dia eu deixar o jornalismo.

Bom, até posso nunca mais mudar-lhe o pneu do carro, mas jornalista nunca mais deixarei de ser, porque é isso que sou.

Mesmo no dia em que já não seja mais.

 

 

03.03.20

LONG DISTANCE CALL


The Cat Runner

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Agora dei um pulo com o estalo que veio da lareira.

A lenha é boa.

Foi o que me ocorreu para meter conversa.

O que me atormenta é outra coisa.

Às vezes dou comigo a pensar no que é que significa para mim correr.

Nem uma única vez eu consegui encontrar uma malvada resposta.

Ocorrem-me sempre muitas, diferentes, mas desaparecem mal as encontro, como por exemplo no início deste texto;

minutos antes tinha tido uma ideia do caraças para abrir o texto.

Quando comecei a escrever já não me lembrava que ideia era e inventei.

Correr tornou-se numa rotina vital na minha vida. Como respirar, comer, trabalhar, amar, ou outra coisa vital na vida de pessoas. É apenas isso que sou, uma pessoa.

Comecei a correr há uns sete anos, está a fazer por esta altura.

Comecei porque parecia uma baleia e no Ribatejo é o Sável quem mais ordena. O ser humano é um produto do seu ambiente, adapta-se.

Durante estes anos não me lembro de ter parado de correr durante muito tempo – mais de três dias é muito tempo – por causa de dores ou lesões. Fui-me habituando e, mesmo quando corria com algumas dores já sabia como gerir a crise, porque a corrida ensina.

Ensina a conhecer os limites, o corpo, o espírito e a cabeça, a alma, claro.

Só que desta vez não consegui. Fui, fui, fui andando, até que parei.

Fui andando como vai andando quem gosta de correr. As pessoas que gostam de correr têm uma particularidade que é irem sempre até que são obrigadas a parar, como na vida, vamos andando na esperança que a mudança chegue e nos leve com ela.

É quando estamos parados que entendemos o quão frágeis somos perante o resto. Andando.

Nas últimas quatro semanas consegui correr seis vezes.

Seis vezes em uma carrada de dias.

Provavelmente, a cena mais estúpida que fiz, desde que corro.

Devia ter parado às primeiras dores, ainda que ligeiras, no calcanhar.

Li imenso sobre fascites, inflamações, fracturas de esforço, mas não, tinha que continuar, apesar de ter todos os sintomas das coisas que escrevi e não vou repetir baterem todos certos.

Era o que sentia no cabrão do calcanhar.

Até que parei.

Não corro há duas semanas.

E, tanto que precisava, nesta fase da minha vida.

Não corro, nem sequer consigo treinar muay thai já há uma eternidade, e tanto que precisava.

Fico-me pelo ginásio, como que confinado a quatro paredes.

A minha pedra-de-toque está rachada, o prumo dos meus dias, o fiel da balança que pesa o impacto e a defesa. Uma má fase, quem sabe.

É imaginar subir a montanha, contemplar lá do alto, dar um pequeno impulso e vir em queda livre.  

Fico à espera de um pequeno toque de magia, para que tudo mude, porque eu sei que tudo muda num segundo, ou menos.

É como quem se habituou a um ansiolítico que o acalma e equilibra e de repente entra em privação.

A sorte é que eu já sei o que é descompensar.

Sou como que uma espécie de operacional da vida, até porque

no Ribatejo não há baleias, mas os cornos pegam-se pelos touros, assim mesmo, ao contrário, para não ofender ninguém.

O meu problema é que me falta alguma coisa.

Quando queres e não podes.

Não podes.

Nunca gostei de me sentir amarrado.

Nem que corte o calcanhar fora.

Tirem-me lá as amarras, pá.

É chato estar amarrado e não conseguir respirar.