Porque, como diz a gata Alice, isto não é apenas um blog de corrida. Na verdade, não ºe sequer um blog de corrida.
Aqui, contam-se histórias.
Esta história aconteceu há oito anos.
E, hoje, também.
Estávamos em dezembro de 2012.
Em dezembro, com o Natal a aproximar-se, as festas espalham-se por todo o lado, como quando é Natal, precisamente. É tudo tão reconfortante, por esses dias.
Coisas que aparecem do nada, como se o nada não fosse imenso.
Quando entrei pela porta principal da Associação de Promoção Social de Alhandra, já a tarde tinha caído, suavemente, e o frio convidava a um cartucho de castanhas, mas que não fosse para saborear o fumo do fogareiro.
Depois de cumprimentar professores(as), educadoras(es), pais, familiares, que se movimentavam na sua azáfama de quem vai buscar os miúdos ao fim do dia, depois de passar como que por entre carreiros de formigas-trabalhadoras, cheguei, por fim, ao ponto nevrálgico, ao epicentro daquele dia doze de dezembro. Estávamos em 2012. Sim, foi há muito tempo.
Uma sala cheia.
Uma plateia exigente.
Os olhos de mais de duzentas crianças, sentadas em pequenos bancos de plástico, coloridos como um arco-íris, apoiados em pequenas mesas azul-garrafa escura fitavam-me como quando fitamos um monstro horrível, ali mesmo à nossa frente.
Mãos ocupadas com carcaças com manteiga e fiambre, bigodes do sumo de pacote era, provavelmente, a plateia mais exigente que enfrentei até hoje, que alguma vez enfrentei e já falei para milhentos públicos, durante a minha carreira.
Crianças, que deviam ir dos cinco aos doze, treze, anos. Dos cinco aos treze. Crianças interessadas em tudo menos sobre aquilo que eu ia falar para eles e com eles.
Estava em desvantagem, clara.
Olhares matadores.
Só que este convite irrecusável tinha um propósito, não era coisa leve, leviana, nem por sombras. Eu estava a sentir na pele que não, ali em cima do palco, observado por aqueles seres implacáveis nos seu único propósito, comer a carcaça com manteiga e fiambre, aviar o sumo de pacote e ir para casa vestir o pijama, que já levavam muitas horas de cansaço em cima.
O Ruben tinha doze anos e um sonho que não consegue identificar quando lhe nasceu, dentro do seu mais profundo íntimo. O Ruben queria ser jornalista. Doze anos. Um sonho.
A sua epopeia nada tinha a ver com o poder, o poder de liderar, o poder de decidir, o poder de influenciar, o poder do exemplo. A epopeia do Ruben tinha, exclusivamente, a ver com as histórias. Apaixonado por contar histórias.
Foi dele que partiu o convite para que eu fosse falar para aquela plateia que preferia, seguramente, estar a assistir a um road show de chocolates, em vez de estar a ouvir um tipo, ainda por cima gordo –naquela altura – a falar sobre jornalismo, ainda por cima a convite do seu amigo.
Reparei, de novo, nos seus bigodes, precoces, desenhados pelo sumo de pacote. E enchi-me de coragem.
Ruben era o director do jornal da Associação.
Com doze anos pensava, planificava, coordenava, produzia e criava o jornal que contava tudo o dizia respeito a quem estava envolvido na instituição de solidariedade social, onde estávamos, naquele momento, naquele palco.
Um Publisher, com doze anos.
Um organizador de equipas, um gestor de projectos, um criativo sem agência, um menino a sonhar ser grande.
Quando o Ruben me ofereceu um exemplar do jornal, autografado, que guardo com afecto e orgulho, segredou-me: “você é o exemplo do que eu quero ser quando for grande”.
“Irei aplaudir, garanti-lhe.
Passaram oito anos.
Eu fiquei mais maduro.
O Ruben ficou mais velho.
Fez vinte anos.
Cresceu, na exacta medida do seu sonho e da inspiração que buscou.
O Ricardo, que para além de ser meu amigo foi quem fez a ponte, entre o Ruben e eu, há oito anos e formalizou o convite, mandou-me uma mensagem este fim de semana.
Não tive qualquer dificuldade em descodificar a mensagem, nem em recordar-me da cena que aconteceu naquele palco, naquela sala, naquele fim de dia de dezembro.
Nunca nos esquecemos de um bom líder, mesmo que ele já tivesse tido doze anos. Todos já tivemos.
Ainda há dias entrevistei Fernando Medina, o presidente da CM Lisboa, tal como o Ruben o fez, agora, agora na ponta final da sua formação académica e profissional. Está a um passo, pequeno passo, mas tão enriquecedor, tão impactante, tão belo, até.
O menino que me convidou para um brainstorm, em cima de um palco, para falar para um público de bibes vestido, já se fez homem, já está a terminar o curso de Jornalismo e já entrevistou o Medina, tal como eu.
O Ruben despertou-me esta ideia, a ideia de que um líder não é apenas quem puxa os seus. Há mais, para lá disso.
Há a capacidade de sonhar.
Dou comigo, por isto, por causa desta história, a pensar na palavra liderança.
Que o líder deve ser o exemplo, clear.
Que o líder deve ser inspirador e inspirar-se, clear.
Creio, no entanto, que um líder também tem que ter muito daquilo que o Ruben tem.
A capacidade de construir, alimentar e sentir emoções, afectos, a capacidade de estabelecer pontes que ligam corações, primeiro, almas, depois e, por fim, pessoas, é a tal capacidade que não se ensina nos cursos de liderança.
A capacidade de observar o belo, de olhar os outros do nosso próprio lado de fora.
Fui um mentor para o Ruben, descobri agora.
Naquele fim de tarde não cuidei de perceber a importância que carregava sobre os meus ombros, até hoje.
Só hoje soube que fui inspiração para o Ruben durante este seu caminho.
Também o fui para outros Rubens, alguns com quem tenho o privilégio de trabalhar, que fizeram parte das minhas equipas, alguns que trabalham em outros media, alguns que se perderam, até, porque a perfeição não existe.
A ordem natural das coisas.
Era presunção excessiva ser eu a dizê-lo, apenas o escrevi, porque eles é que me o confessaram.
Inconfidência.
Pecador, me confesso.
Já fui Team Leader de muitas equipas, em muitos projectos, ao longo da minha carreira.
Mas, nunca me senti um líder. Não podia.
Geri sempre as minhas equipas com afecto, com proximidade, com sorrisos, tentando manter a harmonia, a motivação, em momentos carregados de inquietação, inspirando-me nelas, para garantir a cola que nos unia.
A nossa realidade era paradoxal;
A empresa não cultivava o espírito de empresa, o ambiente era tóxico, a motivação das tropas estava em baixo, mas os nossos objectivos, enquanto equipa, estavam definidos.
Tentei sempre gerir o balneário, como se diz no futebol.
Os projectos tiveram sucesso, todos os objectivos foram conseguidos, porque eram equipas que conheciam a filosofia da água, o rio, elas sabiam que o rio nasce a montante, corre para jusante e tem que contornar os obstáculos.
A água segue o seu curso até à foz.
Gostava de ter o Ruben num projecto meu.
Podia voltar a apertar-lhe a mão e segredar-lhe ao ouvido: és um Natural Born Líder.
Sim, porque eu só fui seu mentor.