AINDA NÃO FIZ A ÁRVORE DE NATAL
Há momentos em que somos privilegiados.
Quando damos conta disso é fantástico.
Eu acho que um homem deve ter os seus momentos, só seus, consigo, em silêncio disfarçado de palavras e letras.
Dou comigo a olhar a lareira. Aquece-me. Apetece-me.
A gata, deitada na cabeceira do sofá grande, mesmo por cima do meu lado esquerdo, como quem vem da cozinha e atravessa o hall.
Com um pequeno salto, macio, quase imperceptível, aninha-se entre as minhas pernas, cobertas pela manta castanha e terna.
Gregory Porter canta, em fundo.
A lareira aquece cada vez mais a sala, a gata dorme, tranquila, deitada ao fundo das minhas pernas. A televisão continua a transmitir um jogo de futebol. A casa está quieta, calada.
Está sem som, só para fazer alguma luz na sala, a televisão.
Um momento, o que ele encerra, o que ele revela.
Um apetecer não fazer nada, um apetecer fazer, não fazer, nada.
Momentos cheios de nada que purificam os olhos, enquanto o piano faz das suas e as palavras saem soltas, livres como a foz do rio.
Tens que te ouvir, ouvi-me dizer-me, vindo de um nada, enquanto olho a televisão, de relance, e vejo que alguém está a ganhar a alguém. Continua sem som.
No fim alguém perde, sempre.
Perde qualquer coisa, nem que seja pedaços de si, fragmentos dos outros.
Voltei a trabalhar há já quase dois meses e meio, lembro-me agora, uma retrospectiva curta.
Parece que nunca me ausentei. Talvez nunca o tenha feito.
Até mesmo nos momentos que o quis fazer.
É tudo tão novo, outra vez, como em tantas vezes.
Tão brutalmente desafiante e apaixonante, que dou por mim a querer ouvir músicas de Natal.
Já toda a gente montou a árvore de Natal - montar não soa nada bem aqui - menos eu.
Era para ter sido no fim de semana mas não percebi bem porquê não foi, essa é que é essa.
Para dizer que se eu não fosse isto queria ser isto.
Acredite ou não, mas agora sou repórter, agora sim, sou repórter.
Precisei passar metade da minha existência a cavar que nem um louco para, finalmente, andar a contar histórias com imagens, palavras, sons e gente dentro delas. Histórias, palavra viajante.
Há uma permanente sensação parecida com a incorporação de um estado de levitação.
(Esta foi inventada)
Acordo, vou trabalhar, trabalho a contar histórias, de todo o tipo, boas, más, belas, horríveis, divertidas, duras. Almoço. Volto a contar histórias.
Ainda tenho tempo para momentos.
Fazer exercício, escrever ou estar apenas deitado no sofá, com a gata ao fundo das pernas, a televisão, sem som, a fazer de candeeiro e contar histórias.
Acabou o jogo.
Um ganhou. Um perdeu.
A música continua a tocar, em fundo.
A televisão está na "flash-Interview".
Continua sem som.
Tenho que me levantar, para meter mais lenha na lareira.
Pensei em ir jantar, mas já jantei, resta-me ir dar fogo à lenha, ou lenha ao fogo.
Pior vai ser acordar a gata.
Ainda lhe dá um daqueles repentes e crava-me as unhas nas pernas.
A Alice tem o sono leve.
Prometo fazer a árvore de Natal neste fim de semana.