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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

29.03.19

“UM CRUZEIRO ATÉ BIRMINGHAM NO SÉCULO PASSADO”


The Cat Runner

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Quando eu era pequeno aconteciam coisas fantásticas.

Era uma vida cheia de tudo, apenas vazia de preocupações, vivida a alta intensidade.

Nem mesmo a hora de ir para casa me preocupava, zero, embora, cumprisse quase sempre aquilo que a minha mãe determinava.

Não gostava de sentir o peso da sua "tairoca" nas minhas costas, nem os castigos, fechado no quarto um bom par de horas.

Nunca gostei de a ver preocupada. Nem ontem, nem hoje.

Havia duas palavras que, tantos anos depois, ainda são usadas por determinadas pessoas.

O “aparelho produtivo”, uma expressão que os comunistas usam muito e que não me fazia qualquer sentido, nessa altura, minto, fazia algum sentido, que não o político.

A gente sonhava, caraças, e brincava, muito e isso fazia todo o sentido.

O “aparelho produtivo” era visível para todos os miúdos que, como eu, passavam os dias a na rua, depois da escola, dentro de mundos que só nós conseguiamos inventar.

Naquela altura o “aparelho produtivo” era apenas duas palavras estranhas, na verdade, o “aparelho produtivo” apenas servia para nós vivermos as nossas aventuras, como nos filmes.

No cais, na vila, os batelões do senhor João Conde eram verdadeiras cidades, nas quais as nossas quimeras jamais terminavam.

Ele não gostava, mas nós invadiamos os batelões e brincávamos no meio da areia molhada pelo suor dos homens que a retiravam do fundo do rio.

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Os batelões já não descarregam a areia, as aventuras acabaram.

Morreram.

Na zona onde vivia havia imensas indústrias, o tal “aparelho produtivo”, sobretudo, indústria pesada, metalomecânica, estaleiros, onde o meu pai cresceu, fez-se homem, viveu e, ainda hoje, depois de reformado, continua a exercer o seu ofício.

As pessoas, em Portugal, reformam-se, mas continuam a trabalhar, por necessidade, por necessidade financeira, por necessidade de não pararem no tempo que lhes falta, que nos falta, a todos.

Lembro-me de ele trabalhar na CORAME, que era uma grande empresa metalúrgica, em Santa Iria, quase às portas de Lisboa, de trabalhar nos estaleiros da Argibay, os grandes estaleiros, que recebiam grandes barcos, navios, em Alverca.

Lembro-me, como se fosse hoje, de ir com a minha mãe, às sextas feiras fazer o avio para a semana à Casa do Pessoal, que aquilo era tudo organizado e os trabalhadores ainda tinham direitos e voz activa.

Coisas dos sindicatos a sério, depois do 25 de Abril, sindicatos como os sindicatos ingleses, por alturas da Revolução Industrial.

Sindicatos com peso dentro das fábricas, como em Birmingham, dos anos vinte, do século passado.

A zona onde eu vivia pulsava como Birmingham, na década de vinte, do século passado.

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Homens que vestiam fatos de macaco, cheios de pó do ferro, o cheiro do aço, a ferrugem, o fumo das caldeiras, as tubagens, as válvulas, a vida, havia vida, ali, depois acabaram com ela, tal como fizeram com os batelões do senhor João Conde.

Num destes dias, dias que eu tenho vivido à minha maneira, dias muitos especiais, que me remetem para o meu próprio interior, devia ter corrido dez quilómetros, mas a minha mulher, devota do ioga, depois da sessão matinal e porque estava de folga, quis ir caminhar e fez-me o convite.

Em vez de correr eu e ela caminhámos treze quilómetros e em vez do habitual passeio junto ao rio, na vila, fomos para o tal sítio que parecia Birmingham, na década de vinte, do século passado.

Por aquelas bandas, por onde o meu pai andou, ele e os homens que fizeram a história de um país que já foi imensamente grande, como eles.

Qualquer dia a vila liga-se a Lisboa, pela margem do rio.

Qualquer dia, provavelmente, já nem estarei cá para ver. Mas, a coisa vai-se dando.

Se entrar em Alverca já consigo ir, junto ao rio, até quase à zona da Expo.

Precisamente.

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Foi para aí que fomos, enquanto ela caminhava, junto a mim, eu ia viajando no tempo, registando os momentos, imaginando-me criança, de fato macaco vestido, cheio de pó do ferro, sentindo o cheiro do aço e  da ferrugem, o fumo das caldeiras, a vida que mataram.

Mataram o “aparelho produtivo”.

Não sou comunista.

Só sei que o mataram. Eu vi o crime.

Os esqueletos ainda por lá andam, quais fantasmas que se misturam com as cores do progresso e da modernidade, do passadiço, os batelões, os estaleiros, as caldeiras, as tubagens, as fábricas, esqueletos de memórias, fantasmas que só assombram quem por ali andou.

Fomos e viemos, como as viagens no tempo.

Sem preocupação do ritmo, do relógio, dos passos, das batidas do coração, como quando era miúdo.

Gostava de parar o tempo.

Gostava de o fazer voltar lá atrás.

Gostava de ir às sextas fazer o avio da semana, com a minha mãe, à Casa do Pessoal e, depois, regressarmos à vila, com o meu pai, ao fim do dia de trabalho.

Iamos e vinhamos de combóio e eramos felizes.

Já por ali tinha andado, quando treinei para a maratona e, por isso, as memórias desses fantasmas assombraram-me apenas ao de leve, nada como desta vez em que tive tempo e coração para fazer a viagem.

Caminhei e, quando vamos acompanhado por uma senhora, quando caminhamos com ela, devemos escutar a canção de Sting: “gentleman will walk but never run”.

Não corri. Não se corre contra o tempo.

O meu pai já se reformou, mas ainda trabalha, homem daquele tempo não pode estar parado.

Morre por dentro, se parar, para isso já basta o tempo ter morrido.

Hoje foi o último dia de trabalho da mãe da minha mulher.

Trabalhou toda a vida no mesmo sítio, onde foi imensamente feliz.

Não contou a ninguém que era a última vez.

Só duas ou três pessoas sabiam.

Meteu um lenço bonito ao pescoço, senhora, como sempre, foi e veio, tal como nós naquela viagem.

Toda a vida ali, onde todos gostaram dela, todos aqueles que lá entraram bebés de meses e de lá sairam adolescentes, toda a vida, ali.

Ainda hoje, muitos deles já adultos, voltam ali, para visitar a “Avó Mima”.

Disse-me a minha mulher que ela continua feliz, que irá lá várias vezes, que o corte não será total, e que estava toda bem disposta.

Tenho a certeza que lhe vão fazer um jantar de homenagem, que isto não é gente de despedidas.

São 74 anos, talvez mais quarenta ali, todos os dias, onde viu filhos, serem pais, terem netos, namorados que casaram, que se divorciaram, vidas e vidas atrás de vidas, onde viu e ajudou essas vidas a viverem.

Não, a mãe da minha mulher não é de ficar a viver no passado, ao contrário de mim.

Ela é o exemplo que todos nós seguimos, os que são da família e todos aqueles, imensos, que com ela tiveram o prazer de se cruzar na vida.

Ela trabalhou toda a vida num infantário.

Imagina as vidas que lá viveram?

Mas, ao contrário de mim, ela pouco visita as suas memórias, só quando a questionamos.

Ainda não lhe contei que eu e a filha fomos caminhar, enquanto eu viajava até ao meu passado, com cheiro a ferrugem.

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Vou contar-lhe, talvez no domingo, ao almoço, no nosso sagrado almoço de domingo, que ela gosta de escutar as minhas memórias e de cozinhar para nós. Em família.

Só não sei se algum dia lhe contarei que um dos meus sonhos era voltar atrás e visitar Birmingham, dos anos vinte, do século passado.

É que, ao contrário do que diz o povo, o povo que tem a mania que sabe tudo, ao contrário dele, eu gosto da mãe da minha mulher, como se fosse uma mãe.

Qual quê, não gostar da sogra!

A minha mãe não tem ciúmes, eu sei.

São duas mulheres e peras.

Quem sabe se não é agora que a "Avó Mima" realiza o seu sonho: fazer um cruzeiro e eu o meu;

voltar a Birmingham, nos anos vinte, do século passado, onde nunca estive!

 

 

 

 

 

 

20.03.19

195 METROS "O FIM" - O SENTIDO DA VIDA - (DIA 100 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Chegámos ao fim.

Cumpriu-se o sonho.

A missão foi concluída.

Nunca deixei nada por fazer, nesta vida, nem por dizer, nem por pensar, não ia ser agora.

A viagem foi marcante.

Cravou-se-me na pele, na alma e no coração, naquilo que é o mais íntimo e profundo, em mim.

Desgastante.

Transformadora.

Espiritual, física, emocional, emotiva, feliz, bela, para além dos limites de tudo aquilo que eu alguma vez poderia pensar.

Um poema.

É isso que isto tudo foi, um poema bonito.

Um longo poema, escrito por mim mas, sobretudo, escrito por tanta gente, toda esta gente que, à sua maneira me acompanhou, desde o primeiro momento em que tornei pública esta insana aventura, até este momento em que, finalmente, cortei a meta. Esta meta, hoje!

Porque tudo isto foi um bocado insano. E, ainda bem.

Foi ali, a 195 metros da meta, junto às Portas de Brandeburgo que tudo passou a fazer sentido, na minha vida, o amor, a amizade, a coragem, a solidariedade, o respeito, o afecto, os abraços, os sorrisos, as lágrimas, as dores, as dores desapareceram naquele instante.

Tudo passou a fazer sentido.

O sentido da vida.

Tudo aquilo que eu fui à procura e encontrei.

Estes últimos metros são felizes, são metros em que agradeço, passo-a-passo.

As palmas.

Escuto-as, ainda.

 

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As bandeiras de Portugal que carregávamos nas mãos, ao pescoço, à cintura, que a Carla Fernandes, como combinado, nos entregou, em mão, enquanto corriamos, como se fossemos os campeões do universo e, sabem, naqueles metros finais foi isso mesmo que fomos, os campeões do universo.

Passaram seis meses, desde esse domingo mágico que eu não quero repetir.

Não quero repetir, não que não conseguisse correr outra maratona, não quero repetir porque mais nenhuma maratona que eu corra será o que esta foi.

Um poema.

Ali mesmo, no meio da multidão, corria a chorar, direito a ti, com a Alice e o Francisco, cada um a meu lado, os meus “wingmen”. Acho que até eles iam a chorar de alegria.

Porque um homem também chora!

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Estávamos todos altamente contagiados.

A tua preocupação acabava ali.

Eu sei, depois de passadas as quatro horas e meia, o tempo que eu queria cumprir, começaste a preocupar-te, talvez, como nunca, porque sabes que eu vergo, mas não parto.

Mas vias o estado em que algumas pessoas iam chegando, arrastando-se, tentando tudo, no limite e tu, sem saberes nada de mim.

Passava o tempo, os segundos, as horas e eu sentia que a tua preocupação comigo, a preocupação de uma vida e de uma bela história de amor ia aumentando, sem saberes o que estava a acontecer.

Pensei tanto nisso, na tua preocupação, quando passámos o quilómetro 41 e entrámos no 42.

Só que aí eu já ia certo que te iria encontrar e abraçar-te.

Mas, também sabes que eu gosto de fazer surpresas e gosto de sorrir quando surpreendo alguém.

Foi a primeira vez que não me lembrei de sorrir.

Tinha sofrido tanto, que me esqueci.

Só consegui chorar, de alegria, quando te vi, no meio daquela multidão imensa.

E, ganhei forças, gigantes, brutais, para correr até ti.

Nunca, nestes mais de 30 anos nos tínhamos abraçado como naquele fim de manhã de domingo.

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Sinto os teus braços à volta do meu pescoço, o meu suor colado no teu corpo, as tuas lágrimas e  a tua alegria.

A tua tranquilidade.

A tranquilidade que me transmites durante este nosso poema, que tem sido a nossa história, desde miúdos.

Tinha acabado a tua preocupação.

Como eu te amo!

Só chorei uma vez mais depois de ter cortado a meta.

Foi dias depois, quando visitei o teu Instagram.

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Não faz parte de ti expôr a tua vida privada, acho até que nunca tornaste público qualquer afecto, ou se o fizeste foi discretamente, para que a multidão não se apercebesse.

Até isso admiro em ti. Admiro tudo em ti.

Tu és o meu poema.

Fizeste-o, pela primeira e única vez por causa da minha maratona, porque sabes o que ela significou, para mim, para ti, para nós.

Foi a tua tranquilidade, o teu apoio, o teu colo, a verdade com que acreditaste em mim que me fez ir e conseguir.

Escreveste no teu Instagram, para que toda a gente pudesse ler, na legenda da fotografia: “ Tu dizes que foi neste momento que tudo valeu a pena…

E eu acredito”.

E, senti, genuinamente, o teu orgulho em mim.

Foi nesse momento que voltei a chorar, desta vez, sozinho, outra vez, de felicidade.

Foi, sim, foi nesta fracção de tempo que tudo valeu a pena.

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Foi aqui que descobri o sentido da vida.

Um dia hei-de tirar te uma foto com a minha medalha, porque ela é tua, é de muita gente, mas é tua, mais do que de alguém.

Muito mais tua que minha.

Nela está representada toda a nossa vida.

Era isso, era isso que eu queria mostrar-te, provar-te, a nossa vida, ali, naquele momento, naquela medalha.

Um poema.

Acabámos a maratona.

Cortei a meta.

 

(Dedico este texto e esta música a todos(as) vocês)

( Agora chegou a parte dos agradecimentos. Peço que a leia. São nomes.

São os nomes de todos aqueles que me levaram pelas ruas de Berlim, naquela que foi a aventura mais brutal da minha própria existência.

Sem eles até podia ter acontecido, mas nunca tería sido o que foi, um poema eterno)

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Obrigado, meu querido, Luis Grilo, meu querido João Paulo Vargas.

Tenho tanta pena que não tenham estado aqui, para terem visto esta aventura.

Sei que, onde estão, puxaram por mim, sorriram e sofreram comigo.

Sei que em abraçaram.

Obrigado.

Obrigado,

Carla Moita.

Maria Quaresma

Rodrigo Quaresma.

Adelaide Quaresma.

Helder Quaresma.

Ricardo Quaresma.

José Carlos Santos.

Pedro Mimoso.

José Fortes.

Rui Dias.

Petra Sauer.

Ricardo Areias.

Jorge Quaresma.

Stephane Jorge.

Clara Oliveira.

Sandrina Cardoso.

Diogo Duarte.

Carla Fernandes.

Carlos Samora.

Pedro Samora.

José Duarte.

Alexandre Perleques

Lara Esfola.

Ricardo Silva.

Pedro Pato.

Ana Paula Santos.

João Campos.

Alfredo Augusto Costa.

Paulo Vieira da Silva.

Verónica Ferreira.

Hamilton Guedes.

José Massuça.

Carlos Ferreira Alves.

Jorge Manuel Mendes.

Henrique Reck Farias.

Sílvia Peixoto.

Carla Martinho.

Carlos Cardoso.

Dora Dias.

Art Torres.

Bea Torres.

Inês Amado.

Obrigado.

Obrigado, a todos aqueles que treinaram comigo.

Obrigado, a todos - e, por incrível que pareça foram centenas e centenas - que durante 9 meses e um domingo inteiro me mostraram o seu apoio, a sua energia e a sua confiança, no meu facebook, no meu instaram e no meu blog.

A todos os que telefonaram durante a maratona.

Todos aqueles que eu levei nas asas das minhas sapatilhas.

São todos vocês.

Obrigado, também àqueles que a minha memória não permite recordar os seus nomes, obrigado e desculpem-me, por isso.

E, por fim, aqueles que me levaram do princípio até aqui, os meus dois “wingmen”,

Francisco Cunha Cerca e Alice Vilaça.

Agora, sim, posso dizer, bem alto:

Eu sou um Maratonista.

 

FIM

 

 

19.03.19

O QUILÓMETRO 42 - EM NOME DO PAI - (DIA 99 DA MARATONA)


The Cat Runner

 

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O meu pai tem as mãos largas, os dedos grossos e gretados de uma vida inteira de trabalho.

Viveu mil vidas.

Eu sei que tem mais de mil, ainda, para viver.

Ele costuma dizer que não há-de morrer, pelo menos, antes dos oitenta e cinco anos.

Ele ensinou-me o significado da palavra coragem, da palavra carácter, da palavra amor, à sua maneira, porque nunca é tarde para mostrar o amor que guardamos em nós.

Ensinou-me tanto.

Ensina-me tanto.

Mas, pai, hoje ensino-te eu uma coisa;

ensino-te o que significa a palavra filho.

Tu és o homem que todos os homens deviam ser.

O homem que eu jamais conseguirei assemelhar-me, sequer, porque não tenho a tua bondade, a tua seriedade, a tua simplicidade, muito menos a grandeza do teu sorriso, em mim.

Gostava de ser o avô que tu és, a sério, pai.

Sabes, já corri esta maratona com tanta gente e, conhecendo-te como te conheço, aposto que achaste que não a ias correr comigo e eu contigo.

Pai, tu sabes como eu gosto de fazer surpresas.

Alguma vez eu te ia deixar de fora desta corrida tão intensa?

Guardei-te para o último quilómetro - não digas a ninguém que depois de vermos a placa dos 42 ainda temos que correr os últimos 195 metros, não digas, eu sei que tu guardas segredos, guarda-o - guardei-te para este quilómetro, porque hoje é o “Dia do Pai”, do meu pai.

És meu.

Eu, mais do que ninguém, sei aquilo que sofreste em silêncio, por mim, todos estes anos, todos aqueles quilómetros de Berlim, todos estes quilómetros das nossas vidas inteiras.

Foi por mim, por nós, que a história foi escrita assim, não há histórias perfeitas, pai, não te condenes nunca por isso, porque não há histórias perfeitas.

Há o amor e ele acaba sempre por nos entrelaçar, demore anos, décadas, demore a eternidade.

Nunca é tarde, pai.

Não foi tarde, para nós.

Tu és o homem que todos os homens deviam ser.

Vou aproveitar para te dizer uma coisa, estou aproveitar-me desta corrida, porque ela está a chegar ao fim, para te dizer coisas que nunca te disse.

Nem mesmo naqueles tempos em que a vida nos tentou trocar as voltas, tanto tempo, que ela é uma maluca, nem mesmo nesses tempos em que cada um de nós andava pelos seus próprios caminhos, afastados, te afastei do meu coração e, nunca tive interrogações sobre esta minha decisão, que  foi das coisas mais certas que fiz na minha vida.

Porque nunca é tarde para mostrarmos o nosso amor.

Nós trocámos as voltas à vida, pai, e ganhámos.

Como eu ganhei, quando cortei aquela meta, em Berlim.

Senti-me um campeão do mundo.

Tu és um campeão do nosso mundo.

Imagina, até já treinaste Muay Thai, até já correste uma corrida, imaginavas tu, algum dia ?

Até nesses pequenos instantes me fizeste feliz.

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Sim, estás certo, as lágrimas que deixei inundar os meus olhos, no final, nessas lágrimas escorrias tu, no meu rosto, naquele instante em que a minha boca salgou, porque sorria, como um menino, o teu “menino”.

Serei sempre o teu menino.

Serás sempre o meu farol, quando a escuridão me visitar, porque tu e eu já caminhámos o tempo suficiente no escuro da vida.

Vou contar uma história,

quando era criança a minha avó levava-me todos os dias a passear na “Rua do Chave D´ouro”.

Parávamos sempre em frente à montra da loja das bicicletas.

Eu adorava deambular entre os triciclos, as motorizadas, as bicicletas de mil cores.

Ainda hoje sinto o cheiro da borracha dos pneus novos que pairava na loja e tu encostado lá ao fundo, ao balcão, a conversar, conversas que eu nunca escutava, porque nada nem ninguém me fazia desviar daquele sonho.

Era branca.

Recordo a cor, branca e linda.

Aquela que eu jamais conseguiria ter, porque tu eras um pai que insistia em guardar os teus afectos para ti, porque não eras homem de dar presentes por dá cá aquela palha. Só nos momentos certos.

Recordo a cor, branca e linda.

E, recordo aqueles dias mágicos, quando ia-mos tomar café ao Filimar. Eu, tu e a mãe, que o mano ainda não tinha nascido.

Pois, hoje digo-te, aquele foi um dos dias mais felizes de toda a minha vida.

Era inicio de tarde, lembras-te?

O sol aconchegava, apesar da brisa saborosa que corria na vila, naquela tarde quando tu, eu e a mãe entrámos no café - o que eu adorava ver-te e as teus amigos a jogar snooker, naquelas mesas tão grandes e tão bonitas.

  • “Zé, olha ali uma bicicleta igual àquela que tu gostavas de ter”.

Parece que a estou a ver, encostada à parede, à entrada do Filimar.

Brilhava, branca e linda.

Confesso-te que, neste momento, anda sinto o cheiro da borracha dos pneus novos.

Olhei-te, cá debaixo.

Vi, pela primeira vez na vida o brilho do teu olhar, vejo-o agora, outra vez.

  • “É tão bonita, pai”.
  • “Pega nela, vai dar uma volta”.
  • “Não posso, pai, não é minha”.
  • “Pega nela, vai dar uma volta. É tua”.

Depois perdi a minha memória, apenas me lembro que era o filho mais feliz do mundo.

Imagina, mais de 40 anos depois, ainda lhe sinto o cheiro da borracha dos pneus novos e ainda estou, pasmado, a ver o brilho do teu olhar.

Nesse dia o céu tocou a terra.

Como numa noite, aquela noite em que fomos pai e filho, de pleno direito.

Levei-te, foi comigo que foste, pela primeira vez ao Estádio da Luz, tu de um lado, o meu filho, teu neto, ao meio e eu do outro lado.

Os três, ali, juntos, pela primeira vez, lado-a-lado, passos sincronizados, coisas de homens.

Subíamos a rampa, para ver um jogo que a memória não me deixa lembrar.

Os três de mãos dadas.

Tu e o Rodrigo sorriam porque iam à bola.

Tu ias conhecer o estádio do teu Eusébio, o Gu ia ver os bonecos da Playstation, em carne e osso.

Eu sorria porque, pela primeira vez, éramos pai, filho e neto.

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Mãos dadas, os três. Felizes, cada qual à sua maneira.

Os netos são os nossos filhos, disseste-me.

Por mil anos que viva nunca irei conseguir agradecer o amor que entregas todos os dias aos meus dois filhos.

Que orgulho gigante que o Gu e a Maria têm em ti.

E, eu.

Tao gigante, gigante, como só tu.

Nessa noite a nossa história, a tua e a minha recomeçou, alinhou-se, encheu-se de tudo o que de mais belo existe, porque nós deixámos a escuridão perdida no tempo e derrotámos as trevas.

Foi, provavelmente, a noite mais marcante da minha vida.

O instante em que eu te chamei pai, pela primeira vez, com o P maior que existe em qualquer abecedário do amor.

  • “Estou tão feliz, pai, nunca imaginei que um dia ia à bola, contigo e com o Rodrigo”

Quando me levavas contigo, para irmos ao Cevadeiro, ver o nosso União, nunca me levavas pela mão, eu sei que querias, mas eu era assim.

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Hoje, não deixo a tua mão, larga, gosto de sentir os teus dedos grossos e gretados de uma vida inteira de trabalho entrelaçados nos meus.

Acalma-me, sossega-me, faz-me sentir forte, faz-me sentir o campeão do mundo.

Foi teu, o primeiro telefonema que recebi depois de acabar a maratona que me trouxe até aqui.

O teu orgulho, naquilo que eu acabava de ter feito, a preocupação na tua voz, a doçura das tuas palavras, filho, chamaste-me filho, lembras-te?

- "Como é que estãs, filho, estava tão preocupado?".

Até àquele momento eu não tinha atendido um único telefonema, eu não estava em mim, a emoção que me invadiu depois de cortar aquela meta acompanhou-me até casa, enquanto caminhava sozinho, por não ter coragem de chorar de alegria em frente a mais ninguém.

Já tinha chorado demais.

Que raio, nunca é demais, quando choramos por sermos felizes e, até isso tu ensinaste-me, a chorar de alegria, como naquela tarde, quando me deste a bicicleta, como naquela noite, em que fomos os três à bola.

E, tal como em Berlim, nunca me viste chorar de alegria.

Ainda hoje não consigo meter em palavras aquele instante que durou uma vida.

A tua e a minha.

Apenas alguns metros, desde que deixei a Carla, a Maria e todos aqueles amigos que guardarei para sempre em mim, alguns metros, solitários, até casa,  só eu, metros que ainda hoje me pareceram os mesmos quilómetros fantásticos e mágicos que tinha acabado de correr.

Tão mágicos quanto a tua voz.

Tão mágicos como o teu amor.

Naquele pedaço de tempo voltei a sentir-me menino.

O teu menino.

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Foi por isso que as lágrimas que deixei inundar os meus olhos, quando passei aquela meta e cheguei ao fim, foi por isso que nessas lágrimas, partilhadas com uma multidão de afectos, também escorrias tu, no meu rosto, naquele instante em que a minha boca salgou, porque sorria, como um menino, o teu “menino”.

Nunca te o disse, vou dizer-te, olhos nos olhos, quando te juntares a mim, no final deste quilómetro tão cheio de tanto.

Vou dizer-te, olhos nos olhos, porque quero voltar a ver o brilho do teu olhar, como naquela tarde em que me mandaste pegar na bicicleta branca e linda e me empurraste para um caminho onde fui tão feliz.

A minha maratona está a chegar ao fim.

Ai de ti que não estejas a meu lado quando fizeres 85 anos, porque tu, sim, tu és um corredor de fundo.

Já gahaste tantas maratonas, os filhos que perdeste, o cancro que derrotaste, os ataques de coração que tiveste, vejo-te, quando saiste de maca do hospital de Vila Franca, para Lisboa e nos olhaste, a mim e à mãe e disseste "eu quero voltar para junto de vocês".

E voltaste. E estamos juntos, até ao fim desta corrida.

Sim, porque tu és um homem de palavra.

Tu és o homem que todos os homens deviam ser.

Quero-te dar amor, todo o amor que te fiquei a dever.

Feliz dia, Pai.

Entrámos nos últimos 195 metros!

 

 

 

15.03.19

O QUILÓMETRO 41 - O PIANO - (DIA 98 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Ela caminha por um caminho que não conhece, mas que é sempre o mesmo, sempre igual.

Ali chegada encontra uma pocilga delimitada nos quatro lados por troncos de madeira castanhos.

Todos compostos, alinhados, imaculadamente desenhados.

Decide entrar na pocilga que a faz passar pela mesma porta de sempre, que se abre, lentamente, permitindo que os seus passos leves e silenciosos a conduzam até ao interior daquele enorme salão e belo salão, a lembrar os salões dos grandes castelos que carregam em si histórias de encantar.

Um grande salão, que a recebe, sempre, como sempre, com dezenas de janelas, alinhadas, lá no alto das grandes paredes, assim como numa pintura perfeita, como ela, janelas que, como ela se deixam trespassar por uma luz morna e reconfortante.

Cada janela tem uma cortina, quase invisível, como as cortinas antigas, que albergam minúsculas flores, em tons leves, salmão, azul-bebé, alaranjadas.

Detém-se, muda, é o silêncio que a impele, olhando em redor, no meio daquele salão mágico.

À medida em que a sua cabeça roda e o olhar se fixa no horizonte, transformado em parede feita de rocha firme, começa a escutar um som, atrás de si.

Piano.

Ouve um piano a tocar, suavemente, atrás de si, porque é atrás de si que ela o escuta.

Lá atrás.

Invade o grande salão.

A luz é agora mais intensa, mais reconfortante, mais bonita.

Para trás de si ficou a pocilga, delimitada nos quatro lados por troncos de madeira castanhos.

Todos compostos, alinhados, imaculadamente desenhados.

A música soa-lhe a eternidade. E, sorri.

É um sonho que a acompanha há uma vida inteira, contou-me ontem.

Desde pequena, uma vida inteira, um sonho que se repete, sempre igual.

Há-de ter um significado, porque tudo tem o seu próprio significado, há-de ter, embora ela não saiba qual.

Uma vida inteira.

A vida dela, que me faz sonhar, por viver a minha a seu lado, dia após dia, todos os dias da minha vida, da vida dela.

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Ninguém sabe, porque nunca o contei, conto agora.

Conheço um mundo inteiro de fé.

Gente como eu, que caminha, como ela, para um lado qualquer, que é sempre o mesmo.

Mágico.

Piano.

Luz.

Gente que, levada pela sua fé, pés cravados de bolhas, alma que guarda chagas só suas, gente que é gente, naquela caminhada até ao final da viagem, onde as lágrimas correm pelo rosto, salgam os lábios, que sorriem naquele intenso momento da chegada.

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Já devo umas quantas promessas não cumpridas, umas quantas caminhadas até Fátima, onde a fé dos homens se mistura com a sua incomensurável bondade.

Prometo que é desta, levado pelo sonho que ela tem desde menina, guiado pela minha própria fé, em busca da bondade. Prometo.

Ninguém sabe, porque nunca o contei, conto agora.

Quando, num acto de fé, porque foi isso que foi, um acto de fé, decidi ir a Berlim correr a minha maratona, foi como se me tivesse obrigado a percorrer, finalmente, esse caminho, o meu próprio caminho, o meu próprio calvário, como num sonho, porque é isso que tudo isto também foi, o meu sonho.

E o dela.

O sonho que eu desconhecia;

chegar àquele enorme salão, onde cada janela tem uma cortina, quase invisível, como as cortinas antigas, que albergam minúsculas flores em tons leves, salmão, azul-bebé, alaranjadas e ali ficar, como ela, no seu sonho.

Fui sem saber, fui sem conhecer, fui por ela e, isso ninguém sabia, nem ela, porque eu nunca o tinha contado, até hoje.

Correr esta (única) maratona foi o meu acto de fé, porque precisava de provar a mim mesmo que sou um homem de palavra, de promessas cumpridas.

Uma espécie de garantia, guardada no mais secreto canto de mim, que irei pagar tudo, promessa a promessa, até à última promessa.

Isso é fé.

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E, no momento da decisão, no momento em que me propus calcorrear o meu próprio calvário de provação, foi nela que pensei.

Nem ela sabe.

Mas irá saber, se chegar a ler este quilómetro.

Vou fazer com que o leia, afinal, estamos a chegar ao fim e o fim não é, forcosamente, o terminar de nada.

Pode até significar o começo de tudo.

Porque ela agora consegue ler, este e todos os quilómetros do seu sonho, quinze anos depois de viver em escuridão quase completa.

Mas, nos nossos sonhos, nem a escuridão consegue penetrar.

Aprendi, nesta jornada incrível a acreditar no milagre, porque é a nossa fé que nos alimenta e nos impele para fazermos esse nosso caminho.

Disso eu já não dúvido mais. Não tenho como.

Eu quis correr a maratona para pagar os meus pecados, para acreditar nas minhas promessas e na palavra do meu coração.

E, fui.

Eu quis correr a maratona por centenas, milhares, de motivos só meus, tantos quantas aquelas cortinas iguais às do seu sonho, que a acompanha durante toda a vida.

E, fui.

Se isto me acontecer, se aquilo se concretizar, se aquilo se resolver, se eu me tentar expressar e se for ouvido eu vou correr todos aqueles quilómetros, até ao fim.

E, fui.

Lembrei-me da gente de fé que caminha assente nos seus joelhos feridos, na sua inabalável crença. Gente que eu admiro, por saber que nunca serei igual, gente a quem eu me quis comparar.

Mas, não, quem sou eu ao pé de tamanha gente?

Gente como ela.

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A minha mãe chama-se Adelaide.

Um nome tão doce, doce como o sonho que ela me contou e que a acompanha toda a vida.

A Adelaide tem uma doença incurável.

Há quinze anos ela começou a perder a capacidade de ver, sem nunca perder a capacidade de sorrir, sem nunca perder a capacidade de sonhar.

Ontem contou-me o seu sonho.

Só hoje, aqui, tive coragem para lhe contar o meu, aqui, nestas linhas deste quase último quilómetro desta brutal maratona.

O quilómetro que me abriu a porta, lenta e suavemente, para que eu pudesse entrar naquele salão mágico, grande e admirar as belas cortinas em tons suaves.

Confessou-me que as cortinas estavam apanhadas por uns laços aos quais não conseguiu descortinar a cor.

Foi acompanhado por ela que me fiz ao caminho, foi com ela no pensamento que passei dores inimagináveis, que sorri como nunca havia sorrido, de dor, de felicidade, mas nunca como ela, porque o seu sorriso é incomparável.

Foi ela que levei nos meus pensamentos, porque é nela que eu penso todos os dias da minha vida.

Fiz o meu caminho de fé, nas ruas de Berlim, qual peregrino, com sapatilhas encarnadas, de calções vestido, como um menino.

O seu menino.

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Serei sempre o teu menino.

Foste tu que me o disseste e eu em ti acredito, a vida inteira e para lá dos tempos.

Há quinze anos ela começou a perder a capacidade de ver, sem nunca perder a capacidade de sorrir, sem nunca perder a capacidade de sonhar.

Hoje, hoje, quinze anos depois, como que por milagre das mãos mágicas de um homem bom, ela voltou a ver a luz que trespassava as belas cortinas do grande e mágico salão.

Vou fazer chegar-lhe este texto, e se ela não o quiser ler vou obrigá-la, porque sei que agora ela ela o vai conseguir ler.

O que ela não sabe, só o vai saber agora, é que foi por ela que aqui cheguei.

E, fui.

Foi nela que pensei, em primeiro lugar, quando cruzei aquela linha de chegada, aquela porta que se abriu lenta e suavemente e que me levou àquele lugar, que só existe no seu coração e que a chama sempre que a noite cai.

Finalmente, tal como no seu sonho, escutei aquela música, daquele piano, que tocava atrás de mim.

E, guardei-a no meu coração.

Para sempre.

Nem um milhão de anos apagará a minha maratona.

Os sonhos não se apagam.

Jamais se apagam.

Entrámos no quilómetro 42!