O QUILÓMETRO 39 - O BOSQUE DOS ESQUIMÓS - (DIA 96 DA MARATONA)
Se eu fosse um doce era uma mulher.
Era uma Barriga de Freira, não tenho a menor dúvida.
Há ali qualquer coisa de exótico, de pecaminosamente irrecusável, de anti-natura, até.
Anti-natura, porque por estes dias eu devia estar a perder gordura corporal, que não é formosura coisa nenhuma.
Como sou uma espécie de prima dona, em gajo, acho que em vez de estar a perder estou a ganhar.
Inconscientemente, o lado bom das coisas.
A felicidade.
O problema é que a felicidade às vezes cruza-se com o pecado.
Eu sou e tenho uma Barriga de Freira.
Não me custa a admitir. Foi premeditado. Foi desejado. Foi brutal.
Só que tudo tem um preço e há coisas que fazemos em consciência, sabemos que estamos a fazer da forma menos correcta mas, caraças, é tão bom. Tão doce.
Eu, pecador-pagador.
Sinto-me como no primeiro dia em que comecei a correr regularmente, foi há seis anos, mais ou menos.
Pesado, pesado, pesado.
Claro que sinto, estou pesado, havia de sentir o quê, levezinho?
Tento desculpar-me com o passar do tempo por mim mas nem eu próprio acredito nas minhas desculpas.
Ainda ontem comi uma Barriga de Freira. Sou um predador-delico-canibalesco. Se me arrependo?
(A foto é do pudim de castanhas que comi hoje, mas dá igual)
Por partes,
Arrependo-me, porque a penitência faz parte daqueles que acreditam em forças superiores e eu sei o que vou sofrer para atingir a redenção. Nesse sentido, arrependo-me. Penitencio-me, mais ainda.
Esta comiseração levou-me a tomar uma decisão que vai ser quase um mantra.
A partir de terça-feira, daqui a dois dias, começo um regime assente no défice calórico.
Ingerir menos calorias, gastar mais calorias.
Não como dar a volta a isto.
Já corremos trinta e nove - por extenso - quilómetros.
Tem a noção do que é correr trinta e nove quilómetros, a escrever ?
Pois, do alto das minhas cinco horas e cinco na maratona lhe digo;
correr trinta e nove quilómetros é qualquer coisa que nos faz sentir como uns auto-sobre-dotados.
Nesta altura, meu caro(a) leitor(a) já todos acreditam que vamos chegar ao fim da corrida.
Mas, o que eu acrescento é que alguns pensam em como chegar ao fim da corrida.
Quero, não sei se consigo, quero. Consigo.
Três quilómetros são como a paixão, são muito e depois são nada. Ou, são nada e tornam-se muito.
Em Berlim, num domingo como este, quando entrei no quilómetro trinta e nove pensei nos dois cenários.
Falta um quilómetro para a Carla saltar a barreira e se juntar a nós, com as bandeiras de Portugal. Faltam dois quilómetros para ver os meus amigos e a minha família.
Duzentos metros depois, a meta. O sonho materializado em dificuldades em caminhar, em sentar, em estar de pé, em estar parado.
Tantas horas depois.
Chegar aqui implicou, em mim, brutais doses de stress físico e mental.
Por esta altura já visualizava a meta, na minha cabeça, mas não imaginava, na verdade, como é que ela era.
Serão os próximos quilómetros.
Por outro lado, dei comigo a pensar;
se eu agora só consigo caminhar e arrastar-me, em passo mais acelerado, cheio de dores por todo o lado, como é que vou passar a meta a correr?
Eu nunca cortei uma meta a caminhar, mesmo que tenha caminhado toda uma corrida.
Em circunstância alguma na vida.
Falta uns três quilómetros.
Nem que rasteje até lá.
Eu nunca tinha chegado a este ponto, em nada, não podia falhar-me, porque isso era trair-me.
Nesse domingo parecido com este eu fui para lá daquilo que julgava ser possível.
Foi para esse lugar exclusivo que eu me quis transportar.
Lá cheguei.
Lá chegarei.
Vir até aqui e acabar o que falta é uma obrigação, já não é um objectivo, quando já vais a correr trinta e nove quilómetros e tem faltam mais três.
Fácil perceber o que toda esta aventura provocou:
Um quase colapso dos chacras.
Baralharam-se todos.
Isto, estamos em Setembro do ano passado.
Cinco meses passaram.
E, a minha consciência tornou-se, igualmente, pesada. É-me fiel, fiel às trends do seu dono.
Eu pequei.
Caraças, eu não pequei, eu fui violado pelo próprio Satanás.
O diabo, descobri, adora Barrigas de Freiras, assim como os ursos adoram salmão.
E encarna em nós, o diabo e o urso, a Barriga de Freira e o salmão.
Eu sou um little pecador, alguém que determina em si mesmo alguma coisa, que atinge o que pretende e, depois, delicia-se, deitado no seu próprio doce pecado.
Tudo isto para dizer que é a primeira vez que me lesiono, desde que comecei a ter actividade física regular, leia-se, a correr, desde há seis anos.
Não deve ser nada de grave, nada que uma corrida não cure, mas parece ser um pequeno “rasgão” no gémeo, o que não me dava nada jeito.
Estou overweight, que é como quem diz, estou a sentir-me um esquimó, mas em formato bola de Berlim.
Sempre Berlim.
Nas três últimas semanas perdi dois dos quilos que tenho a mais, mas já os encontrei e estão bem, não houve complicações.
Mal eles sabem que isto do peso em excesso está a começar a chatear o meu próprio sistema nervoso central.
Aqui, onde me encontro, no alpendre de um iglo, com um sol que se põe, dono do seu nariz, num bosque que não digo onde fica, tomei uma decisão (juro, estou num alpendre de um iglo).
A partir de terça feira começo o regime alimentar. Eu sei que já tinha dito, mas as técnicas de narrativa sugerem que o escritor vá buscar ideias que ficaram lá atrás, para acabar o texto e ele ter uma lógica.
Eu gosto de caminhar no beiral do telhado, onde os gatos contemplam o que se passa cá em baixo.
Gosto de ir ao limite, perder-me no momento, voltar à base e repetir.
Mas, não me dava nada jeito esta pequena lesão, numa altura quem que eu me sinto um verdadeiro esquimó, no que ao volume diz respeito.
Acredite no que lhe digo, se não, não vinha passar uns dias a um iglo, num bosque como este.
Isto vai lá.
Também havia quem não acreditasse que eu conseguia correr uma maratona.
Gente que não sabe o que eu faço só para ter uma Barriga de Freira.
Entrámos no quilómetro quarenta.