O QUILÓMETRO 36 - O CAMALEÃO, O CICLISTA E OUTRAS COISAS BONITAS - (DIA 93 DA MARATONA)
A maratona de Berlim mostrou-me todo um admirável mundo novo.
Não exagero, nem um bocadinho.
Foi a "experiência" completa.
Foi marcante a nível pessoal, foi marcante a nível físico, foi marcante a nível intelectual, não fosse Berlim, ela mesmo, uma cidade profundamente marcante.
Foi a quarta vez que estive em Berlim, mas em nenhuma das anteriores tinha lá estado sem ser em trabalho.
Tive tempo, bastante tempo, para a saborear.
Por isso, recordo-me de um pensamento que tive, aliás, dois pensamentos, naqueles dias mágicos.
O primeiro apareceu-me enquanto corria a maratona, ao passar pelo histórico bairro Schoneberg.
Eis a história que me assaltou a memória e os passos;
Em 1976, David Robert Jones tinha-se mudado de Los Angels para Berlim e passou a viver no bairro Schoneberg. Tinha 29 anos.
A cidade continuava dividida pelo muro, mas boémia nunca de lá saiu, até hoje.
David tentava relançar a carreira e era em Berlim que muitas das influências a que se sujeitou estavam em ebulição.
O prédio onde David viveu aguentou duas guerras mundiais, coisa pouca.
Em Berlim ele tinha uma rotina quase sagrada: caminhava a pé entre lojas de antiguidades e livrarias e tomava cafés (quase sempre tardios) com outros intelectuais.
Há dois anos, no dia dez de Janeiro, o mundo acordava em comoção:
“David Bowie morreu tranquilamente hoje, rodeado da família, depois de uma dura batalha que durou um ano e meio”.
Foi por me ter lembrado de David Bowie, quando passei a correr pelo bairro onde viveu que, um dia depois, antes de deixar Berlim, logo a seguir às compras da praxe, sentámo-nos, eu, a Carla e a Maria para almoçar naquele que é, provavelmente, um dos restaurantes que mais me fez viajar no tempo.
Berlim foi isso, uma viagem.
Lembrei-me de Bowie e dos seus cafés, naquele café, moderno, mas cheio de memórias.
O espírito de Édouard Louis Merckx pairava no ar.
O “Steel Vintage Bikes Café” é um espaço totalmente decorado com bicicletas de corrida, equipamentos de ciclistas, tudo o que esteja relacionado, mas tudo “vintage”.
Havia várias bicicletas (como o vídeo mostra) com aquele nome mítico inscrito nelas:
Eddy Merckx !
Eddy Merckx é considerado, por muita gente, por mim também, como o maior ciclista de todos os tempos. Ele era belga, mas naquela tarde ele, como eu, como Bowie, era de Berlim.
Estive um quarto de hora a maravilhar-me com aquela decoração, tudo era novo, menos o estilo.
Tinha conseguido correr uma maratona, na véspera.
Estava feliz, estávamos felizes e quase de regresso a casa.
Lembro-me de que, enquanto almoçávamos umas maravilhosas sandes de salmão, expliquei à minha mulher e à minha filha que tinha sido Eddy Merckx, porque Bowie já elas sabiam quem era. Quem não sabe?
E, pela milésima vez demos connosco a viajar pelo tempo fora, compilando nomes de gente grande que amou Berlim, por isto e por aquilo. Como nós amamos.
A lista é infindável.
Cidade eterna.
O almoço foi memorável.
Aqueles dias únicos foram memoráveis.
O que mais me dói a alma é saber que a história não se repete.
Se eu tivesse a lâmpada mágica guardava um dos três segredos para o fim:
“Quero ser feliz, como fui em Berlim”, para sempre.
Como o Eddy e como o David.
Entrámos no quilómetro 37!