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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

27.02.19

O QUILÓMETRO 40 - LUTO - (DIA 97 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Os homônimos perfeitos.

Perfeito.

Luto.

Luto.

A mesma palavra, a mesma grafia, significados diferentes.

Tudo tem um significado, voluntário ou involuntário.

Eu sei qual foi, eu sei qual é o significado daquilo que eu consegui, daquilo que eu quis conseguir, sem ter a certeza que o conseguisse.

Essa foi a luta. Agora, o fim do luto.

Estou a caminhar para o fim desta monumental e brutal aventura, que começou há mais de um ano, dentro da minha cabeça, que ganhou forma e se materializou já lá vão cinco longos meses.

Aqui, no meu blog, também, quilómetro a quilómetro, eu sei agora que vou terminar mais esta luta, porque eu luto.

Eu luto, sem medo de perder, luto com coragem para ganhar, luto, por isso tomei essa decisão brutal, que foi colocar-me à prova, em provação, física e mental e ver no que dava.

Eu quis, pela primeira vez em toda a minha vida colocar-me numa situação muito difícil, lidar com o excesso de sofrimento que testa a capacidade de superação, a fé viva ela como viver dentro de nós, seus preceitos morais, suas convicções: cada um tem a provação que é capaz de superar.

Eu fui e fiz. Eu vi e cheguei.

Depois de correr 42 quilómetros, mais 195 metros (no final vai perceber a importância desses últimos metros), no instante em que cortei a meta, aquela meta, nas portas de Bradenburgo, em Berlim, nesse exacto momento, ainda que, inconscientemente,  comecei a fazer o luto de uma história que será para sempre a minha.

O luto de uma luta.

Passaram cinco meses desde que tomei consciência absoluta de que eu luto, luto pelo que eu quero, luto pelo que eu defendo, luto por mim, luto pelos outros.

É o maior dos ensinamentos.

A pulseira que cortei do meu pulso é, provavelmente, o objecto que mais se colou a mim, em todo o sempre.

A pulseira que cortei do meu pulso foi-me colocada em Berlim, na véspera da maratona, aquela coisa que mudou a minha vida, em muitos sentidos.

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Quando me a colocaram, não imagina a alegria que senti, um miúdo a quem ofereceram o mais belo dos brinquedos, eu estava, finalmente, à porta daquilo pelo qual lutei. Eu era um deles. Faltava-me tudo o resto.

O resto era chegar ao fim, vivo, são, salvo.

Faltava-me tanto.

Hoje, depois de cortar a pulseira, chegou a hora de  acabar o meu luto.

A história está a chegar ao fim, eu sei que daqui a dois quarteirões há um momento mágico à minha espera. O momento pelo qual eu lutei tanto, até à exaustão, literalmente.

Daqui a dois quarteirões chegamos ao fim.

São dois quarteirões carregados de intensidade, de dores incríveis, de suor já seco, de sorrisos doridos, de esperanças incrédulas, dois quarteirões que me separam do fim do início de uma das mais bonitas páginas que escrevi no meu livro, o livro que é a minha vida.

Cortar aquela pulseira do meu pulso foi como cortar o meu cordão umbilical emocional, uma catarse que te deixa com a cabeça vazia, os olhos a arder e as recordações, as memórias tão presentes como se tivesse sido ontem, mais presentes e vivas do que se tivesse sido ontem.

Durante muitos quilómetros o Francisco ofereceu-me o seu pulso e foi com o meu dedo entrelaçado na sua pulseira que eu corri os quilómetros mais brutais da minha vida.

Jamais esquecerei esse pedaço de tempo, não tenho como algum dia esquecer, nem quero.

Mas, não, não era esta pulseira.

Era uma pulseira, que guardo no meu pulso, religiosamente.

Ele tinha-me oferecido uma pulseira igual à sua, um dia antes da maratona, enquanto esperávamos pelo autocarro.

Uma pulseira carregada de simbolismo, de energia e de crença, em mim e nos outros, uma pulseira dos Caminhos de Santiago, que nos guiam até onde a nossa alma se senta, contemplando o que só o nosso coração consegue alcançar.

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Foi com o dedo entrelaçado nessa pulseira, que ele usava no seu pulso, que eu percorri o meu próprio caminho, pelas ruas da inesquecível Berlim, até aqui, até hoje.

É ela que me vai levar até ao fim de tudo isto.

As coisas, para mim, as pequenas coisas, têm um significado que chega a ser tocante, emocionam-me, apaixonam-me, fazem-me ir mais à frente, aqui, na corrida, na vida, naquilo que eu sou verdadeiramente.

Hoje, o luto caminha, também ele, para o fim, tal como esta longa corrida, a mais bela, na sua dor, na sua alegria, na sua paixão. Foi tudo isto, foi tanto isto e isto é tanto!

Agora falta-me dois quilómetros e mais 195 metros.

Lembro-me perfeitamente do que aconteceu nesta altura.

O sol já aquecia, era hora de almoço, tinham passado quase cinco horas desde que começámos a correr, as ruas continuavam cheias de gente, estávamos no coração de Berlim, as pessoas continuavam a gritar os nossos nomes, como se fossemos velhos conhecidos.

Não, éramos apenas uns guerreiros, numa longa batalha, que ia-mos ganhar, nem que fossemos os últimos a chegar ao fim da linha. As pessoas, desconhecidas, queriam isso, queriam tanto quanto nós. Senti-o. E, quem sente, raramente se engana.

Caraças, lembro-me de tudo, como se fosse agora.

O que faz um simples corte de uma pulseira!

Faz-nos viajar no tempo, faz-nos sentir super-heróis, outra vez, faz-nos acreditar em nós próprios, como nunca o havíamos feito, faz-nos olhar o futuro e o horizonte como se fossem apenas uma inevitabilidade.

Começar, correr e acabar uma maratona faz-nos tudo isso.

Faz-nos entrar num verdadeiro período de luto.

Um ciclo. Começa. Acaba.

Mas, faz mais do que isso, porque nos obriga, definitivamente, a colocar os pés bem assentes no chão.

Por pouco tempo, que a corrida faz-se de passos e os passos fazem-se de movimentos.

Tal e qual a vida de cada um de nós.

Mas, faz tudo isso. Provoca-nos tudo isso. Tudo isto.

Faz de nós pessoas diferentes.

Por isso, eu luto.

Por isso, eu estou a terminar o meu luto.

Os homônimos perfeitos.

O que aí vem nestes últimos instantes desta incrível corrida será tão intenso quanto aquilo que eu senti nesses últimos instantes.

É assim que tem que ser.

De outra forma não fazia qualquer sentido.

E, fez, fez todo o sentido.

Entrámos no quilómetro 41!

 

24.02.19

O QUILÓMETRO 39 - O BOSQUE DOS ESQUIMÓS - (DIA 96 DA MARATONA)


The Cat Runner

 

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Se eu fosse um doce era uma mulher.

Era uma Barriga de Freira, não tenho a menor dúvida.

Há ali qualquer coisa de exótico, de pecaminosamente irrecusável, de anti-natura, até.

Anti-natura, porque por estes dias eu devia estar a perder gordura corporal, que não é formosura coisa nenhuma.

Como sou uma espécie de prima dona, em gajo, acho que em vez de estar a perder estou a ganhar.

Inconscientemente, o lado bom das coisas.

A felicidade.

O problema é que a felicidade às vezes cruza-se com o pecado.

Eu sou e tenho uma Barriga de Freira.

Não me custa a admitir. Foi premeditado. Foi desejado. Foi brutal.

Só que tudo tem um preço e há coisas que fazemos em consciência, sabemos que estamos a fazer da forma menos correcta mas, caraças, é tão bom. Tão doce.

Eu, pecador-pagador.

Sinto-me como no primeiro dia em que comecei a correr regularmente, foi há seis anos, mais ou menos.

Pesado, pesado, pesado.

Claro que sinto, estou pesado, havia de sentir o quê, levezinho?

Tento desculpar-me com o passar do tempo por mim mas nem eu próprio acredito nas minhas desculpas.

Ainda ontem comi uma Barriga de Freira. Sou um predador-delico-canibalesco. Se me arrependo?

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(A foto é do pudim de castanhas que comi hoje, mas dá igual)

Por partes,

Arrependo-me, porque a penitência faz parte daqueles que acreditam em forças superiores e eu sei o que vou sofrer para atingir a redenção. Nesse sentido, arrependo-me. Penitencio-me, mais ainda.

Esta comiseração levou-me a tomar uma decisão que vai ser quase um mantra.

A partir de terça-feira, daqui a dois dias, começo um regime assente no défice calórico.

Ingerir menos calorias, gastar mais calorias.

Não como dar a volta a isto.

Já corremos trinta e nove - por extenso - quilómetros.

Tem a noção do que é correr trinta e nove quilómetros, a escrever ?

Pois, do alto das minhas cinco horas e cinco na maratona lhe digo;

correr trinta e nove quilómetros é qualquer coisa que nos faz sentir como uns auto-sobre-dotados.

Nesta altura, meu caro(a) leitor(a) já todos acreditam que vamos chegar ao fim da corrida.

Mas, o que eu acrescento é que alguns pensam em como chegar ao fim da corrida.

Quero, não sei se consigo, quero. Consigo.

Três quilómetros são como a paixão, são muito e depois são nada. Ou, são nada e tornam-se muito.

Em Berlim, num domingo como este, quando entrei no quilómetro trinta e nove pensei nos dois cenários.

Falta um quilómetro para a Carla saltar a barreira e se juntar a nós, com as bandeiras de Portugal. Faltam dois quilómetros para ver os meus amigos e a minha família.

Duzentos metros depois, a meta. O sonho materializado em dificuldades em caminhar, em sentar, em estar de pé, em estar parado.

Tantas horas depois.

Chegar aqui implicou, em mim, brutais doses de stress físico e mental.

Por esta altura já visualizava a meta, na minha cabeça, mas não imaginava, na verdade, como é que ela era.

Serão os próximos quilómetros.

Por outro lado, dei comigo a pensar;

se eu agora só consigo caminhar e arrastar-me, em passo mais acelerado, cheio de dores por todo o lado, como é que vou passar a meta a correr?

Eu nunca cortei uma meta a caminhar, mesmo que tenha caminhado toda uma corrida.

Em circunstância alguma na vida.

Falta uns três quilómetros.

Nem que rasteje até lá.

Eu nunca tinha chegado a este ponto, em nada, não podia falhar-me, porque isso era trair-me.

Nesse domingo parecido com este eu fui para lá daquilo que julgava ser possível.

Foi para esse lugar exclusivo que eu me quis transportar.

Lá cheguei.

Lá chegarei.

Vir até aqui e acabar o que falta é uma obrigação, já não é um objectivo, quando já vais a correr trinta e nove quilómetros e tem faltam mais três.

Fácil perceber o que toda esta aventura provocou:

Um quase colapso dos chacras.

Baralharam-se todos.

Isto, estamos em Setembro do ano passado.

Cinco meses passaram.

E, a minha consciência tornou-se, igualmente, pesada. É-me fiel, fiel às trends do seu dono.

Eu pequei.

Caraças, eu não pequei, eu fui violado pelo próprio Satanás.

O diabo, descobri, adora Barrigas de Freiras, assim como os ursos adoram salmão.

E encarna em nós, o diabo e o urso, a Barriga de Freira e o salmão.

Eu sou um little pecador, alguém que determina em si mesmo alguma coisa, que atinge o que pretende e, depois, delicia-se, deitado no seu próprio doce pecado.

Tudo isto para dizer que é a primeira vez que me lesiono, desde que comecei a ter actividade física regular, leia-se, a correr, desde há seis anos.

Não deve ser nada de grave, nada que uma corrida não cure, mas parece ser um pequeno “rasgão” no gémeo, o que não me dava nada jeito.

Estou overweight, que é como quem diz, estou a sentir-me um esquimó, mas em formato bola de Berlim.

Sempre Berlim.

Nas três últimas semanas perdi dois dos quilos que tenho a mais, mas já os encontrei e estão bem, não houve complicações.

Mal eles sabem que isto  do peso em excesso está a começar a chatear o meu próprio sistema nervoso central.

Aqui, onde me encontro, no alpendre de um iglo, com um sol que se põe, dono do seu nariz, num bosque que não digo onde fica, tomei uma decisão (juro, estou num alpendre de um iglo).

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A partir de terça feira começo o regime alimentar. Eu sei que já tinha dito, mas as técnicas de narrativa sugerem que o escritor vá buscar ideias que ficaram lá atrás, para acabar o texto e ele ter uma lógica.

Eu gosto de caminhar no beiral do telhado, onde os gatos contemplam o que se passa cá em baixo.

Gosto de ir ao limite, perder-me no momento, voltar à base e repetir.

Mas, não me dava nada jeito esta pequena lesão, numa altura quem que eu me sinto um verdadeiro esquimó, no que ao volume diz respeito.

Acredite no que lhe digo, se não, não vinha passar uns dias a um iglo, num bosque como este.

Isto vai lá.

Também havia quem não acreditasse que eu conseguia correr uma maratona.

Gente que não sabe o que eu faço só para ter uma Barriga de Freira.

Entrámos no quilómetro quarenta.

 

14.02.19

O QUILÓMETRO 38 - TERRA FRANCA - (DIA 95 DA MARATONA)


The Cat Runner

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( Fotos by ZGQ)

A vila está diferente.

Desde logo, a vila é uma cidade.

A vila só é vila para os da vila, será eternamente a vila.

Coisas calcificadas no espírito de cada um de nós;

Os mergulhos, junto à fábrica do arroz, quando nos deixávamos ir, nas correntes do nosso rio.

Há muitos de nós que ainda hoje olham para si, mergulhos descuidados, tardes quentes, e os avieiros.

A fábrica do arroz nunca o soube, mas ela sempre foi a fábrica de vidas.

Tenho algumas dificuldades em construir frases que espalhem a minha ideia, aqui, quando falo da vila.

Tenho pena de não lhe dar mais, dou quase nada. Gosto de escrever. E, de correr. Só isso.

O pai da Leonor, que andou comigo ao colo, deve estar com um orgulho do tamanho do céu.

O céu. A noite.

A Leonor é uma miúda, como eu era um miúdo, naquele tempo em que a minha avó se sentava, em gigantes rolos de carpetes, que lá se vendiam, autênticos sofás, enormes, tardes inteiras, na loja da avó da Leonor, em conversas que eu não ouvi.

A Leonor não é, propriamente, da minha geração. Bem mais nova.

A mãe, mulher linda, inteligente, corajosa, hei-de saber como se sente, um dia que me cruze com ela, na vila.

A Leonor é realizadora, produtora, argumentista, o que quer que seja, mas ela é da vila.

Passeia-se na cena internacional com a mesma humildade e naturalidade como quando está na vila, o que deve ser raro, nesta altura, dado o sucesso do seu trabalho.

Todas as pessoas da vila que viram o seu documentário “Terra Franca” sairam das salas invadidas pelo mesma viagem que eu fiz.

Naquele documentário estava a vila.

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O rio, a família de avieiros, o mercado, as festas, as dificuldades, a esperança, a nostalgia.

“Terra Franca” impregna-nos de nostalgia, de tal modo, que não volta a sair de dentro de nós.

Resta-me dizer que a Leonor Teles é brilhantemente premiada e o seu trabalho.

Foi a mais nova realizadora a receber um prémio de curta-metragem no festival de Berlim, com a curta “Balada de um Batráquio”.

O filme de 11 minutos que retrata a tradição portuguesa de colocar sapos à porta das lojas para evitar a entrada de ciganos,

No final Leonor, filha de pai cigano e mãe não cigana parte os sapos à porta das lojas, num acto de vandalismo. Tabú. Não tabú!

Voltando ao Albertino Lobo, avieiro, da vila, ele é o fio condutor da história, mas também desta história.

Desde que vi o documentário, e sempre que vou correr para o Jardim e para o Passeio Ribeirinho, ao lado do rio, para lá da fábrica do arroz, lembro-me da Leonor e do Albertino.

E das suas famílias.

Encho-me de coragem e tiro sempre uma foto aquela rua, virada para o rio, à saída do Jardim, terra franca.

Mas, nunca uso essas fotografias.

Elas são sempre tiradas à noite, no fim da minha corrida, à luz de candeeiros lampiões, amarelos, que dão uma tonalidade ouro-fosco ao que se sente.

Cria-se um arco de luz, desenhado por um iluminador comum - leu bem - que contorna o alcatrão, quase como uma enguia, até à casa da família Lobo e para lá, mas cerca do rio, das redes e das bateiras.

Sempre que tiro a fotografia, no fim de cada corrida, sinto-me como que a invadir o recato daquela gente que é minha também.

Ali, onde é a casa do Albertino, onde ele projecta as suas mágoas e as suas pequenas alegrias, onde vive e partilha afectos e crença os estores estão quase sempre corridos, as luzes apagadas, silêncio.

Como um intruso.

E, de todas as vezes, apago as fotos do telemóvel.

Por respeito.

E é isso que ser da vila nos incute;

respeito!

E mais uma mão cheia de coisas, pó DNA de memória.

 

Na segunda feira saí para fazer 12 quilómetros, da entrada do jardim, com a rua do Albertino ali ao meu lado esquerdo, iluminada no ponto certo, mais o rio, à esquerda, a linha do combóio e o casario, à direita, até para lá da fábrica do arroz e da fábrica do cimento.

Custou-me imenso, mas tive, como tenho sempre, os meus momentos exclusivos, viagem por muitas vidas, como um gato, umas sete, muito mais.

A fábrica do arroz deixou de ser a fábrica do arroz, cedeu o seu lugar à Fábrica das Palavras.

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( Foto by CMVFX )

Dizem que é uma das bibliotecas mais modernas da Europa e eu acredito, pelo menos será das mais bonitas, ali, ali mesmo, em cima do rio.

É a linha de chegada, se quisermos, depois só mais uns 400 metros, Jardim dentro, até ao carro.

Quando passei por ali, na volta,  já o Jardim se tinha tapado, com a noite, apenas uma, duas, três pessoas que saíam da estação em direcção aos carros.

Esperei que todos se fossem embora, aproveitei para alongar. Estava frio. A mesma névoa cor de ouro-fosco.

Enquanto alongava, junto ao pavilhão do União, onde há muitos anos jogávamos bola e assistíamos a grandes jogos de hóquei em patins, foi lá que vi o Livramento jogar, pela primeira vez, onde outrora era o ringue dos avieiros, dei comigo a olhar para o lado esquerdo.

Em frente o pavilhão, o mural em tributo a Alves Redol e,

a rua do Albertino.

Não havia ninguém à volta, comecei a correr, liguei o modo vídeo no telemóvel e, num acto de puro vandalismo sentimental filmei durante meia dúzia de segundos, passo de corrida comprometido.

Mostro o vídeo, aqui, por são imagens exactamente idênticas às da “Terra Franca”, da Leonor e porque, sobretudo, é apenas uma rua. Uma homenagem. Uma viagem. Uma corrida mais.

 

Uma das coisas que tenho mais saudade, na vila, é das ruas.

Era nas ruas que vivíamos os nossos sonhos de toureiros, de detectives, de jogadores de futebol, de organizadores de venda de senhas para angariar dinheiro para as festas.

E, a casa da Associação de Moradores do bairro, onde fazíamos peças de teatro só para nós, na cave da casa, que ficava junto ao depósito da água.

Fazia um mundo de coisas.

E, cresci ali, na vila, assim.

Nessa altura só não corria nas ruas da vila.

É a única coisa que reescrevia na história de um amor.

A não ser no Colete Encarnado. Aí, também corria.

Acho que rua do Albertino, no bairro dos avieiros, vai deixar-me fazer-lhe uma visita, sempre que acabar de correr, sem que eu me sinta um intruso, na minha própria rua.

Porque a rua do Albertino, aos olhos da Leonor, e dos meus, é a vila, na sua beleza mais intensa.

E porque hoje é Dia dos Namorados.

A vila será sempre a minha namorada.

Entrámos no quilómetro 39!

09.02.19

O QUILÓMETRO 37 - NEVER TOO OLD TO BE YOUNG - (DIA 94 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Não gosto de estar a envelhecer.

É um dado adquirido, que não gosto, que estou a envelhecer.

Tenho pensado sobre a velocidade do tempo e o que ela provoca, nos últimos anos, desde que passei os 45. Ao contrário da multidão que diz em voz alta que convive bem com isso, eu não, adapto-me, apenas.

Tenho 49 anos, curiosamente, a minha idade real é igual à idade metabólica, mas quando me olho ao espelho não vejo um tipo com quase 50 anos, meu caro(a) é meio século, não é uma coisa qualquer.

Não vejo, não porque o evite, mas porque vejo alguém que não é este eu.

Tenho (como o poeta) em mim todos os sonhos do mundo, ainda.

Tantos que quero realizar, tantos desafios que quero abraçar, tantos objectivos para atingir, tantos sorrisos para oferecer, só não tenho paciência para envelhecer.

Acho uma profunda injustiça, uma pessoa querer que o relógio páre, que o relógio dê voltas para trás e o que vê e sente é que ele avança que nem um doido. Implacável. Cruel.

Relógio descontrolado que me inflige perplexidade, ansiedade, angústia, até.

Já vou dando sinais da idade, coisas que antes não me aconteciam, por exemplo, dou por mim a conduzir o meu carro já com aquela postura de quem tem que rodar o volante com as duas mãos, tipo táxista, em movimentos soluçantes, ou quando tenho conversas com os meus filhos, sobre a vida, por vezes sinto que estou a falar “à cota”, ou quando vejo os amigos que andaram comigo na escola, sem cabelo, gordos, desfigurados, mas tudo isto passa, quando estou sozinho.

Quando estou sózinho tenho 10, 15, 20, 25, 30 anos, nunca 49, quase 50.

Depois, depois volta a mão dura do tempo que passa.

Quem me manda ter a mania de fazer actividade física com regularidade?

É aqui que o peso da idade me cai, verdadeiramente, em cima. As coisas já não são como eram. Nesta altura entro num quase mini-processo de revolta.

Desde Berlim, onde corri a minha primeira e única maratona, e que motiva todos estes quilómetros aqui, como já o escrevi, engordei 11 quilos.

Há duas semanas iniciei um novo plano, como o Mário Sá, o meu novo treinador, ou PT, ou amigo, como queria.

Estou a gostar, treino com níveis de intensidade altos, mas são treinos que me permitem treinar com prazer, a ritmos e com dinâmicas que correspondem ao meu excesso de peso e défice de forma.

SIm, andei a portar-me menos bem, ou talvez a treinar de forma errada, ou as duas coisas juntas.

Actualmente, corro três vezes por semana, treino Muay Thai duas vezes por semana, descanso dois dias.

É aqui que me revolto contra o relógio, pelo simples facto de que já não consigo recuperar como recuperava. Sinto isso de forma acentuada neste último ano, sobretudo, depois de ter corrido  a maratona, em Berlim.

Um dia já não me chega, embora quando volto a treinar no dia seguinte a carga alívia durante o treino. Há-de haver alguma explicação científica. Ficção, científica.

Ontem fiz mais uma corrida, 10 quilómetros a um ritmo lento (6.30”/6.45”) como estava planeado no programa de treino desta semana. Foi penoso, dada a fadiga, embora tenha corrido a uma média mais elevada (06.11”), talvez por isso, alguém que explique.

Como faço sempre, todos os dias, dei o meu feedback ao meu treinador, disse-lhe que “o tempo da app, provavelmente, não é o tempo correcto dado o esforço e a fadiga que senti, tive que parar alguns segundos na maioria dos quilómetros para recuperar as pernas e seguir”.

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Não me posso enganar, nem a ele, até porque começo a ver resultados, duas semanas depois de termos começado a nossa parceria.

O Mário diz-me que a fadiga muscular é normal nesta fase e eu acredito, mas ele já percebeu que na minha cabeça a equação é outra: a idade começa a pesar e eu não estou a gostar.

O Mário não respondeu à minha mensagem com texto, limitou-se a enviar-me este vídeo, acredito que com o objectivo de eu me rever nele.

Afinal, vai-me conhecendo cada vez melhor.

Sim, Mário, revi-me e fez-me repensar.

Porque não?

 

Agarrei a mensagem.

Momentos antes de escrever este texto, mais este quilómetro, mais um quilómetro, agora que nos aproximamos do fim desta maratona, tomei conhecimento de uma notícia que, a par do vídeo que acabou de ver, obrigou-me a estar aqui a fazer introspecções de fim de semana.

É em vídeos como o que viu e em notícias como esta, em pessoas assim, que eu vou buscar a minha inspiração e força para continuar, até ao fim. Sim, porque eu vou continuar...

Não conheço o João Neto, apenas sei que é mais velho do que eu, posto assim nada de relevante, mas se eu disser que o João acabou de fazer a “maratona das maratonas”, a World Marathon Challenge, 7 maratonas, em 7 dias, em 7 continentes, tudo passa a ter mais significado.

Todos nós temos que ter algo ou alguém que nos inspire, para provocar a nossa própria inspiração.

A Maratona das Maratonas

Agora, vou terminar este texto, porque depois do vídeo do grisalho do Muay Thai e das maratonas do João tenho que mandar uma mensagem ao meu treinador.

Há- de ser qualquer coisa como:
“Mário, isto é para ir até ao fim, porque eu tenho o foco, tenho a vontade, tenho a coragem, tenho a capacidade de superar dores e fadiga, altos e baixos.

Tu tens os conhecimentos e a estratégia”.

E, acredito, vou terminar a mensagem assim: “Por muito que vergue, não parto”.

Nunca parti, a não ser no ínicio de cada corrida, em cada tiro de partida.

Tenha eu a idade que tiver, tenho sempre muito para viver, para correr, para conquistar.

Inspirações e introspecções.

Entrámos no quilómetro 38!

04.02.19

O QUILÓMETRO 36 - O CAMALEÃO, O CICLISTA E OUTRAS COISAS BONITAS - (DIA 93 DA MARATONA)


The Cat Runner

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A maratona de Berlim mostrou-me todo um admirável mundo novo.

Não exagero, nem um bocadinho.

Foi a "experiência" completa.

Foi marcante a nível pessoal, foi marcante a nível físico, foi marcante a nível intelectual, não fosse Berlim, ela mesmo, uma cidade profundamente marcante.

Foi a quarta vez que estive em Berlim, mas em nenhuma das anteriores tinha lá estado sem ser em trabalho.

Tive tempo, bastante tempo, para a saborear.

Por isso, recordo-me de um pensamento que tive, aliás, dois pensamentos, naqueles dias mágicos.

O primeiro apareceu-me enquanto corria a maratona, ao passar pelo histórico bairro Schoneberg.

Eis a história que me assaltou a memória e os passos;

Em 1976, David Robert Jones tinha-se mudado de Los Angels para Berlim e passou a viver no bairro Schoneberg. Tinha 29 anos.

A cidade continuava dividida pelo muro, mas boémia nunca de lá saiu, até hoje.

David tentava relançar a carreira e era em Berlim que muitas das influências a que se sujeitou estavam em ebulição.

O prédio onde David viveu aguentou duas guerras mundiais, coisa pouca.

Em Berlim ele tinha uma rotina quase sagrada: caminhava a pé entre lojas de antiguidades e livrarias e tomava cafés (quase sempre tardios) com outros intelectuais.

Há dois anos, no dia dez de Janeiro, o mundo acordava em comoção:

“David Bowie morreu tranquilamente hoje, rodeado da família, depois de uma dura batalha que durou um ano e meio”.

Foi por me ter lembrado de David Bowie, quando passei a correr pelo bairro onde viveu que, um dia depois, antes de deixar Berlim, logo a seguir às compras da praxe, sentámo-nos, eu, a Carla e a Maria para almoçar naquele que é, provavelmente, um dos restaurantes que mais me fez viajar no tempo.

Berlim foi isso, uma viagem.

 

Lembrei-me de Bowie e dos seus cafés, naquele café, moderno, mas cheio de memórias.

O espírito de Édouard Louis Merckx pairava no ar.

O “Steel Vintage Bikes Café” é um espaço totalmente decorado com bicicletas de corrida, equipamentos de ciclistas, tudo o que esteja relacionado, mas tudo “vintage”.

Havia várias bicicletas (como o vídeo mostra) com aquele nome mítico inscrito nelas:

Eddy Merckx !

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Eddy Merckx é considerado, por muita gente, por mim também, como o maior ciclista de todos os tempos. Ele era belga, mas naquela tarde ele, como eu, como Bowie, era de Berlim.

Estive um quarto de hora a maravilhar-me com aquela decoração, tudo era novo, menos o estilo.

Tinha conseguido correr uma maratona, na véspera.

Estava feliz, estávamos felizes e quase de regresso a casa.

Lembro-me de que, enquanto almoçávamos umas maravilhosas sandes de salmão, expliquei à minha mulher e à minha filha que tinha sido Eddy Merckx, porque Bowie já elas sabiam quem era. Quem não sabe?

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E, pela milésima vez demos connosco a viajar pelo tempo fora, compilando nomes de gente grande que amou Berlim, por isto e por aquilo. Como nós amamos.

A lista é infindável.

Cidade eterna.

O almoço foi memorável.

Aqueles dias únicos foram memoráveis.

O que mais me dói a alma é saber que a história não se repete.

Se eu tivesse a lâmpada mágica guardava um dos três segredos para o fim:

“Quero ser feliz, como fui em Berlim”, para sempre.

Como o Eddy e como o David.

Entrámos no quilómetro 37!