O QUILÓMETRO 40 - LUTO - (DIA 97 DA MARATONA)
Os homônimos perfeitos.
Perfeito.
Luto.
Luto.
A mesma palavra, a mesma grafia, significados diferentes.
Tudo tem um significado, voluntário ou involuntário.
Eu sei qual foi, eu sei qual é o significado daquilo que eu consegui, daquilo que eu quis conseguir, sem ter a certeza que o conseguisse.
Essa foi a luta. Agora, o fim do luto.
Estou a caminhar para o fim desta monumental e brutal aventura, que começou há mais de um ano, dentro da minha cabeça, que ganhou forma e se materializou já lá vão cinco longos meses.
Aqui, no meu blog, também, quilómetro a quilómetro, eu sei agora que vou terminar mais esta luta, porque eu luto.
Eu luto, sem medo de perder, luto com coragem para ganhar, luto, por isso tomei essa decisão brutal, que foi colocar-me à prova, em provação, física e mental e ver no que dava.
Eu quis, pela primeira vez em toda a minha vida colocar-me numa situação muito difícil, lidar com o excesso de sofrimento que testa a capacidade de superação, a fé viva ela como viver dentro de nós, seus preceitos morais, suas convicções: cada um tem a provação que é capaz de superar.
Eu fui e fiz. Eu vi e cheguei.
Depois de correr 42 quilómetros, mais 195 metros (no final vai perceber a importância desses últimos metros), no instante em que cortei a meta, aquela meta, nas portas de Bradenburgo, em Berlim, nesse exacto momento, ainda que, inconscientemente, comecei a fazer o luto de uma história que será para sempre a minha.
O luto de uma luta.
Passaram cinco meses desde que tomei consciência absoluta de que eu luto, luto pelo que eu quero, luto pelo que eu defendo, luto por mim, luto pelos outros.
É o maior dos ensinamentos.
A pulseira que cortei do meu pulso é, provavelmente, o objecto que mais se colou a mim, em todo o sempre.
A pulseira que cortei do meu pulso foi-me colocada em Berlim, na véspera da maratona, aquela coisa que mudou a minha vida, em muitos sentidos.
Quando me a colocaram, não imagina a alegria que senti, um miúdo a quem ofereceram o mais belo dos brinquedos, eu estava, finalmente, à porta daquilo pelo qual lutei. Eu era um deles. Faltava-me tudo o resto.
O resto era chegar ao fim, vivo, são, salvo.
Faltava-me tanto.
Hoje, depois de cortar a pulseira, chegou a hora de acabar o meu luto.
A história está a chegar ao fim, eu sei que daqui a dois quarteirões há um momento mágico à minha espera. O momento pelo qual eu lutei tanto, até à exaustão, literalmente.
Daqui a dois quarteirões chegamos ao fim.
São dois quarteirões carregados de intensidade, de dores incríveis, de suor já seco, de sorrisos doridos, de esperanças incrédulas, dois quarteirões que me separam do fim do início de uma das mais bonitas páginas que escrevi no meu livro, o livro que é a minha vida.
Cortar aquela pulseira do meu pulso foi como cortar o meu cordão umbilical emocional, uma catarse que te deixa com a cabeça vazia, os olhos a arder e as recordações, as memórias tão presentes como se tivesse sido ontem, mais presentes e vivas do que se tivesse sido ontem.
Durante muitos quilómetros o Francisco ofereceu-me o seu pulso e foi com o meu dedo entrelaçado na sua pulseira que eu corri os quilómetros mais brutais da minha vida.
Jamais esquecerei esse pedaço de tempo, não tenho como algum dia esquecer, nem quero.
Mas, não, não era esta pulseira.
Era uma pulseira, que guardo no meu pulso, religiosamente.
Ele tinha-me oferecido uma pulseira igual à sua, um dia antes da maratona, enquanto esperávamos pelo autocarro.
Uma pulseira carregada de simbolismo, de energia e de crença, em mim e nos outros, uma pulseira dos Caminhos de Santiago, que nos guiam até onde a nossa alma se senta, contemplando o que só o nosso coração consegue alcançar.
Foi com o dedo entrelaçado nessa pulseira, que ele usava no seu pulso, que eu percorri o meu próprio caminho, pelas ruas da inesquecível Berlim, até aqui, até hoje.
É ela que me vai levar até ao fim de tudo isto.
As coisas, para mim, as pequenas coisas, têm um significado que chega a ser tocante, emocionam-me, apaixonam-me, fazem-me ir mais à frente, aqui, na corrida, na vida, naquilo que eu sou verdadeiramente.
Hoje, o luto caminha, também ele, para o fim, tal como esta longa corrida, a mais bela, na sua dor, na sua alegria, na sua paixão. Foi tudo isto, foi tanto isto e isto é tanto!
Agora falta-me dois quilómetros e mais 195 metros.
Lembro-me perfeitamente do que aconteceu nesta altura.
O sol já aquecia, era hora de almoço, tinham passado quase cinco horas desde que começámos a correr, as ruas continuavam cheias de gente, estávamos no coração de Berlim, as pessoas continuavam a gritar os nossos nomes, como se fossemos velhos conhecidos.
Não, éramos apenas uns guerreiros, numa longa batalha, que ia-mos ganhar, nem que fossemos os últimos a chegar ao fim da linha. As pessoas, desconhecidas, queriam isso, queriam tanto quanto nós. Senti-o. E, quem sente, raramente se engana.
Caraças, lembro-me de tudo, como se fosse agora.
O que faz um simples corte de uma pulseira!
Faz-nos viajar no tempo, faz-nos sentir super-heróis, outra vez, faz-nos acreditar em nós próprios, como nunca o havíamos feito, faz-nos olhar o futuro e o horizonte como se fossem apenas uma inevitabilidade.
Começar, correr e acabar uma maratona faz-nos tudo isso.
Faz-nos entrar num verdadeiro período de luto.
Um ciclo. Começa. Acaba.
Mas, faz mais do que isso, porque nos obriga, definitivamente, a colocar os pés bem assentes no chão.
Por pouco tempo, que a corrida faz-se de passos e os passos fazem-se de movimentos.
Tal e qual a vida de cada um de nós.
Mas, faz tudo isso. Provoca-nos tudo isso. Tudo isto.
Faz de nós pessoas diferentes.
Por isso, eu luto.
Por isso, eu estou a terminar o meu luto.
Os homônimos perfeitos.
O que aí vem nestes últimos instantes desta incrível corrida será tão intenso quanto aquilo que eu senti nesses últimos instantes.
É assim que tem que ser.
De outra forma não fazia qualquer sentido.
E, fez, fez todo o sentido.
Entrámos no quilómetro 41!