OS MISERÁVEIS ( DIA 46 DA MARATONA)
A solidariedade anda na boca de toda a gente, mas tão pouca gente faz uso dela.
Sobretudo, quem devia conhecer o seu significado.
Este texto é sobre duas viagens que fiz na mesma cidade, separadas por poucos dias, por muitos quilómetros.
Lisboa, século vinte e um.
A mesma cidade, duas caras.
As minhas duas corridas longas foram feitas com um espaço de sete dias.
Domingo-a-domingo.
Deixei o carro no parque de estacionamento, junto à Casa dos Bicos.
É um parque de estacionamento recente, embora os turistas pouco ou nada andem de carro na cidade, preferem os tuk-tuk, como numa selva.
Tudo pensado para eles.
Antigamente ninguém conseguia estacionar por ali, não havia lugares, só pobres caídos pelos cantos.
Saí a correr, ainda de dia, em direcção ao outro lado.
Ali pela zona do Terreiro do Paço creio não ter escutado uma única palavra em português (chupa Camões), a não ser dos moços dos carrinhos que vendem frutas e sumos, ou nos quiosques que vendem garrafas de água, das pequenas, a dois euros, com uma cara de pau impune.
Está-lhes na cara.
A Praça do Comércio está fechada ao trânsito, aos fins de semana.
Faz lembrar que Lisboa é uma cidade que não deve nada a nenhuma outra.
Barrada a Norte e a Sul, por barricadas feitas de peças metálicas, apontadas ao céu, em bico e ferro forte, que impedem qualquer filho da puta de entrar com um carro por ali fora e matar uma dúzia de pessoas.
A polícia controla os movimentos.
De noite e de dia, que eu sou testemunha.
Nessa altura já eu tinha deixado a Praça do Comérico, fina, cara, sentada, no Cais das Colunas, a contemplar o Tejo.
A Praça dos turistas - não tenho nada contra eles, antes pelo contrário, mas tenho conta o pedantismo, daí o tom caustico e pesado da escrita.
Pedantes, os políticos, grosso modo são pedantes e repugnam-me imenso, porque não olham os seus, apenas os outros e a si próprios.
Saí da Casa dos Bicos, fui até para lá de Algés.
Voltei, já noite escura, vinte e quatro quilómetros depois. Isso!
Que viagem!
Duas horas e meia a correr.
E, ali, mesmo à minha frente, já com a noite a chegar, a miséria.
Ali, já um tudo nada longe dos olhares dos turistas pé-descalço ( que em Portugal, em Lisboa, fazem vida de lordes), os sem-abrigo, e os voluntários, que os ajudam, todas as noites.
Estranha cidade!
No Cais do Sodré a Lisboa suja.
Quilómetro a quilómetro.
Na Praça do Comércio a Lisboa limpa e cheirosa.
Chego a Santos.
Corro entre restaurantes e esplanadas, abre-me o apetite, ver aquela gente toda a dar ao dente, sorridente, longe daquela gente pobre, os outros.
O cheiro a grelhados, puta que pariu!
Detenho-me debaixo da ponte 25 de Abril.
Pergunto ao rapaz do bar, o bar do Clube de Padel ( lamento a má publicidade, senhores) se há onde beber água, por ali.
Olha para mim, cara de otário, que não, “acho que não”.
Sim, basta perguntar-me se queria um copo de água.
Não perguntou, nem deve ter dado conta do que não fez.
Continuou agararado ao ecrã do computador a ver o jogo da bola.
Fotografei a ponte, linda, livre, por não ser de ninguém.
Pensei no Grilo, pensei nele nas últimas corridas que fiz, em quase toda a corrida, até mesmo quando me detinha para fotografar, não resisto a uma boa fotografia.
Vou pensar nele em Berlim.
Não me sai da cabeça.
Tirei um retrato ao amor, esquecendo-me do pobre otário que não me ofereceu água, olhando para mim, seco até à medula, com um "não sei", na ponta da língua.
O Amor, com Á grande, é isso que me importa na vida, amar.
Senti-os felizes, indiferentes a mim, a tudo, menos ao rio.
Seguindo os meus próprios passos, por aquela altura, já a noite cobria a cidade, a ponte cada vez mais bonita, toda a corrida feita junto ao rio, valha-me isso.
Nunca tinha visto tanta gente a correr, às dez da noite, era domingo, pareciam formigas, algumas pareciam formigas atómicas.
Percebi depois que pertenciam a uma “crew” (euqipa amadora) de atletismo, os Run Tejo.
Gente boa.
O otário, funcionário do bar do Clube de Padel - tenho o direto de o ofender, pois então - sabe lá o que é a solidariedade, dava um bom político, aposto até que, se conhecer a palavra a escreve com cê de cedilha;
Çolidariedade.
É quando, do nada, escuto uma voz, junto a um banco,“ quer uma agua? Vai aí todo transpirado”.
Era dois elementos da equipa Run Tejo que estavam a dar apoio aos colegas que treinavam que, ao verem-me nauqele estado, a passar, atiraram-me a pergunta.
Só que corre sabe como os corredores são solidários, eles conhecem a palavra que se escreve com um ésse.
Que sim, respondi.
Dádiva dos deuses.
Pedi para os fotografar, para este texto, e agradeci-lhes.
Devia ter-lhes perguntado o nome.
Passei Belém, uma parte da outra Lisboa, a Lisboa bonita, sem pobres, sem miséria visível.
Uma hora e um quarto depois voltei.
Já não vi os miseráveis, já dormiam, entre pacotes de vinho e pontas de cigarros fumados até ao tutano, filtro e tudo.
A noite escondeu-os.
À minha vista, no regresso, apenas turistas, que o peixe grelhado é únicoe a a vista do rio, à noite, é algo único.
Até sete dias depois.
Fim da manhã, arranquei para o último “longão” da minha longa preparação.
São nove meses de dedicação total a uma ideia louca, vinda da cabeça de um gajo louco, eu!
Estava muito quente, o sol queimava—me os ombros, senti-o durante vinte quilómetros, durante duas horas, para lá e para cá.
Tirei a camisola de alças, mal saí do centro comercial Vasco da Gama.
Ficam a saber que do Parque das Nações à estação de comboios de Santos, ir e vir, são vinte quilómetros, queime o sol os ombros, haja água ou não.
Sete dias depois lembrei-me do barista otário.
Se sete dias antes corri ao fim do dia, sete dias depois corri com o dia no seu esplendor.
A manhã preparava-se para se sentar à mesa e almoçar.
Longe dali, a miséria escondida, continuava escondida, adormecida, debaixo de um viaduto qualquer, longe dos olhares dos políticos, dos turistas e dos otários desta vida.
Bastava-lhes darem as sapatilhas, correr um pouco, para verem a miséria que eles próprios são, por se permitirem ter na sua cidade tamanho cenário de horror, sim, é horroroso o ser humano desprezar o seu semelhante, só porque ele está longe dos olhares dos casais altos e louros, com unhas dos pés por cortar, mas com a carteira cheia de euros.
Gente, numa manhã de domingo, escondida, em quatro paredes de papelão, junto ao rio.
Sempre o rio.
A corrida de um domingo confundiu-se com a corrida de outro domingo, noite, dia.
Lá fui eu, pela mesma Praça do Comércio, pelo mesmo Cais do Sodré que, pela manhã de domingo está inundado de garrafas e copos vazios, das noite de loucura e muita branca na cabeça, urina seca, pelos cantos, despojos de gente com dinheiro.
Ali, ali lembrei-me do rapaz otário e do casal da Run Tejo.
Foi quando parei e perguntei ao segurança da estação do cais do Sodré se havia WC.
“Há, mas tens que pagar, e a TVI, como vai?”, perguntou-me.
"Não sei, estou de baixa há meses, não sei, mesmo, estou desligado, como a televisão".
“Tens que me levar para lá”, atirou, meio a brincar.
Mais a sério, perguntou-me se queria água fresca.
“Vou lá dentro e encho-te a garrafa, na boa”.
Com tom mais sério pediu-me; "Tens que me tirar daqui da porta da estação".
Apertou-se-me o peito, deu-se-me um nó na garganta seca.
Coincidências, alguém que me dá agua, como no domingo anterior, alguém a quem eu “pago” com uma foto.
“Pede-me amizade, no Facebook, para eu te identificar na foto”, apelei.
Até hoje, nada de pedido.
Devia ter-lhe perguntado o nome.
Não o fiz no domingo anterior, de noite, não o fiz naquele domingo, de dia.
Sou um otário.
Nem nome, nem pedido no Facebook, apenas a água que me deu, e que me permitiu continuar e voltar para trás, para acabar o treino.
Estavam 35 graus e muita humidade.
De repente, dou comigo a fazer treinos tão ou mais longos do que uma meia maratona e eu sei o quanto me custo correr as 16 meias-maratonas que já levo nas pernas, nestes anos ( quatro).
Acabei os dois últimos quilómetros da minha última corrida longa, antes da maratona, a caminhar.
Estava tanto calor que os meus pés quase coseram dentro dos ténis, de nada me valeram os “Boost” e o seu sistema de refrigeração, mais a sua solo tecnologicamente avançada .
Mal tentava correr, eles sobre-aqueciam, de tal forma que só consegui caminhar.
Em casa, junto à piscina, esperava-me a família, e um fantástico almoço de peixe grelhado, bem melhor do que aquele que os turistas comem, nos restaurantes junto ao ri.
O relógio batia, praticamente, nas três da tarde.
O dia continuava estupidamente quente.
Pensei neles, em como é que eles aguentam, o calor, a pobreza, a fome, com um pacote de vinho na mão, logo pela manhã.
Os miseráveis ( que vivem na miséria) ainda dormiam, entre quatro paredes de papelão, longe dos olhares dos outros, os que bebem água a dois euros a garrafa, no meu regresso ao Vasco da Gama, onde tinha o carro.
Duas horas depois passei, de novo, por baixo do viaduto de Santa Apolónia, mas já não tive coragem de tirar mais fotos.
Tenho a certeza que sim, tenho a certeza que dormiam.
A vida para eles parou.
Não há domingos, debaixo do viaduto.
Passei por lá no regresso.
Tudo igual.
Senti-me tão otário, mais do que o outro.
É que a água não se nega a ninguém.
O direito a viver também não.
Muito menos àqueles que foram arrumados debaixo de um viaduto qualquer, junto a uma qualquer linha de combóio.
Um remédio venenoso.
Longe dos olhares dos que nunca correram.