CORREDOR COM COROA (DIA 15 DA MARATONA)
Lancei-me a escrever, sem ter uma ideia para explorar.
Dentro da cabeça um vazio.
Dentro da medula a vontade, sem uma ideia para explorar.
Ainda não lhe falei do novo mesociclo (que isto já está quase a entrar no quarto mês de preparação), nem das primeiras rampas, não lhe falei de nada que só a mim importa. Não gosto de maçar as pessoas com coisas que nada lhes dizem.
Facto é que comecei há uma semana os treinos específicos.
Core à segunda, rampas à terça, descanso à quarta, corrida à quinta, pernas à sexta, descanso ao sábado, corrida ao domingo.
É isto, por agora.
Isto, nada lhe diz mas, se eu lhe disser que isto tem sido o meu escudo protector achará que estou em desequilíbrio mental, nada mais errado.
É, justamente, o contrário.
É uma preciosa, diria, fundamental terapia para manter o foco e a cabeça alta, de modo a respirar e seguir.
Um amigo dizia-me que tinha três níveis de vida, a privada, a social e a digital.
Aprendo com os meus amigos.
A vida privada é isso mesmo, por isso, não vem ao caso o motivo, mas nos próximos dias terei mais tempo para os meus, para mim, para olhar o sol e senti-lo no rosto, para saborear a brisa que passa, sem destino, para escrever, para ler, para treinar, tempo meu.
Há decisões que, se adiadas, podem fazer com que a nossa coroa caia no chão, e todos sabemos quanto difícil é vergarmo-nos, mesmo que seja para apanhar a coroa e voltar a colocá-la, aprumada, na cabeça.
O vime verga, mas não parte e inspira.
A analogia inspirou-me e tomei uma dessas decisões.
Vem isto a propósito do meu treino de domingo.
Desde o momento em que decidi parar e viver, almocei com a minha filha, lanchei com a minha mãe, jantei com a minha mulher e com os meus filhos e, corri, com o meu irmão. Só ainda não estive com o meu pai, mas este fim de semana não falha o almoço.
Tanto, em apenas dois dias, quase uma vida inteira, pareceu-me.
E, com os amigos.
Vê-los, revê-los, escutá-los.
O meu treino de domingo era simples, apenas 50 minutos de corrida dentro de um determinado patamar cardíaco.
O meu irmão, Ricardo, tem as pernas longas.
O João apareceu, ele tem as pernas ainda mais longas que as do meu irmão.
- “Miúdos, não posso passar as 135BMP, pelo que ou vão os dois ou vão comigo”.
Os pernas-longas nem responderam.
- “Vamos lá”, disse o mais velho, eu.
Começámos junto à biblioteca, provavelmente, a mais bela da Europa.
- “Quanto é que fazem até Alhandra, vinte minutos ?”.
- “Mais ou menos isso…”.
Da biblioteca ao cais de Alhandra são uns quatro quilómetros, sempre junto ao rio, o nosso rio.
O rio é importante nesta caminhada que é a minha vida. Nele brinquei, saltei, nadei, andei de barco, o rio é aquilo que me transporta para qualquer viagem que queria fazer para dentro de mim.
Vou muitas vezes junto ao rio, mesmo quando não vou correr.
Chegados a Alhandra, o meu irmão mais à frente, o João a meu lado - percebi a sua intenção de ajudar a manter o ritmo - eu segui um pouco mais, para fazer metade do treino, enquanto eles voltaram e pararam, para alongar, enquanto aguardavam por mim.
Enquanto corria, já de volta, contemplei o rio, pela milésima vez.
Via o Ricardo e o João lá à frente junto, à marina.
O rio.
Como que a conversar comigo.
Que não me conseguia entender, que nem eu me conseguia entender, que aquele momento em que corro liberta-me, mas não me cura.
Ele, sereno.
Que não conseguia encontrar o caminho, que não conseguia sorrir como antigamente, que aquele momento em que corro liberta-me, mas não me cura.
Ele, sereno.
Quando está sereno, o rio, transmite-me esse veludo da alma, permite-me cheirar os eucaliptos da antiga Escola da Armada, como se entrasse num túnel mágico.
Dali em diante foi por esse túnel mágico adentro que fui.
O rio, sereno, ensina-me, quando teimo em não querer perceber.
É ali, é aqui, com eles, comigo que pertenço, porto de abrigo, mais forte que o porto da antiga Escola da Armada que, por esta altura triste se limita apenas a adornar a paisagem.
A serenidade do rio, que é meu, mostrou-me, já quase no fim da pista, quase no último quilómetro, que ainda há muita corrida para correr.
Era hora de acabar a corrida de domingo.
Pedimos à miúda do bar da biblioteca, que contempla o rio, para nos tirar uma foto, aos três.
- “É só clicares no meio, para focar e depois dispara várias, alguma ficará boa”, pedi-lhe.
A minha corrida de domingo foi-me especial, porque o rio ensinou-me a olhar de novo para o caminho.
Ali, mesmo, junto dos meus, que é ali mesmo que pertenço.
Ao tempo que não corria com o meu irmão
Ao tempo que não dizia ao meu irmão que o amava.
Disse-o no domingo.
No domingo de corrida.