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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

26.03.18

CORREDOR COM COROA (DIA 15 DA MARATONA)


The Cat Runner

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Lancei-me a escrever, sem ter uma ideia para explorar.

Dentro da cabeça um vazio.

Dentro da medula a vontade, sem uma ideia para explorar.

Ainda não lhe falei do novo mesociclo (que isto já está quase a entrar no quarto mês de preparação), nem das primeiras rampas, não lhe falei de nada que só a mim importa. Não gosto de maçar as pessoas com coisas que nada lhes dizem.

Facto é que comecei há uma semana os treinos específicos.

Core à segunda, rampas à terça, descanso à quarta, corrida à quinta, pernas à sexta, descanso ao sábado, corrida ao domingo.

É isto, por agora.

Isto, nada lhe diz mas, se eu lhe disser que isto tem sido o meu escudo protector achará que estou em desequilíbrio mental, nada mais errado.

É, justamente, o contrário.

É uma preciosa, diria, fundamental terapia para manter o foco e a cabeça alta, de modo a respirar e seguir.

Um amigo dizia-me que tinha três níveis de vida, a privada, a social e a digital.

Aprendo com os meus amigos.

A vida privada é isso mesmo, por isso, não vem ao caso o motivo, mas nos próximos dias terei mais tempo para os meus, para mim, para olhar o sol e senti-lo no rosto, para saborear a brisa que passa, sem destino, para escrever, para ler, para treinar, tempo meu.

Há decisões que, se adiadas, podem fazer com que a nossa coroa caia no chão, e todos sabemos quanto difícil é vergarmo-nos, mesmo que seja para apanhar a coroa e voltar a colocá-la, aprumada, na cabeça.

O vime verga, mas não parte e inspira.

A analogia inspirou-me e tomei uma dessas decisões.

Vem isto a propósito do meu treino de domingo.

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Desde o momento em que decidi parar e viver, almocei com a minha filha, lanchei com a minha mãe, jantei com a minha mulher e com os meus filhos e, corri, com o meu irmão. Só ainda não estive com o meu pai, mas este fim de semana não falha o almoço.

Tanto, em apenas dois dias, quase uma vida inteira, pareceu-me.

E, com os amigos.

Vê-los, revê-los, escutá-los.

O meu treino de domingo era simples, apenas 50 minutos de corrida dentro de um determinado patamar cardíaco.

O meu irmão, Ricardo, tem as pernas longas.

O João apareceu, ele tem as pernas ainda mais longas que as do meu irmão.

  • “Miúdos, não posso passar as 135BMP, pelo que ou vão os dois ou vão comigo”.

Os pernas-longas nem responderam.

  • “Vamos lá”, disse o mais velho, eu.

Começámos junto à biblioteca, provavelmente, a mais bela da Europa.

  • “Quanto é que fazem até Alhandra, vinte minutos ?”.
  • “Mais ou menos isso…”.

Da biblioteca ao cais de Alhandra são uns quatro quilómetros, sempre junto ao rio, o nosso rio.

O rio é importante nesta caminhada que é a minha vida. Nele brinquei, saltei, nadei, andei de barco, o rio é aquilo que me transporta para qualquer viagem que queria fazer para dentro de mim.

Vou muitas vezes junto ao rio, mesmo quando não vou correr.

Chegados a Alhandra, o meu irmão mais à frente, o João a meu lado - percebi a sua intenção de ajudar a manter o ritmo - eu segui um pouco mais, para fazer metade do treino, enquanto eles voltaram e pararam, para alongar, enquanto aguardavam por mim.

Enquanto corria, já de volta, contemplei o rio, pela milésima vez.

Via o Ricardo e o João lá à frente junto, à marina.

O rio.

Como que a conversar comigo.

Que não me conseguia entender, que nem eu me conseguia entender, que aquele momento em que corro liberta-me, mas não me cura.

Ele, sereno.

Que não conseguia encontrar o caminho, que não conseguia sorrir como antigamente, que aquele momento em que corro liberta-me, mas não me cura.

Ele, sereno.

Quando está sereno, o rio, transmite-me esse veludo da alma, permite-me cheirar os eucaliptos da antiga Escola da Armada, como se entrasse num túnel mágico.

Dali em diante foi por esse túnel mágico adentro que fui.

O rio, sereno, ensina-me, quando teimo em não querer perceber.

É ali, é aqui, com eles, comigo que pertenço, porto de abrigo, mais forte que o porto da antiga Escola da Armada que, por esta altura triste se limita apenas a adornar a paisagem.

A serenidade do rio, que é meu, mostrou-me, já quase no fim da pista, quase no último quilómetro, que ainda há muita corrida para correr.

Era hora de acabar a corrida de domingo.

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Pedimos à miúda do bar da biblioteca, que contempla o rio, para nos tirar uma foto, aos três.

  • “É só clicares no meio, para focar e depois dispara várias, alguma ficará boa”, pedi-lhe.

A minha corrida de domingo foi-me especial, porque o rio ensinou-me a olhar de novo para o caminho.

Ali, mesmo, junto dos meus, que é ali mesmo que pertenço.

Ao tempo que não corria com o meu irmão

Ao tempo que não dizia ao meu irmão que o amava.

Disse-o no domingo.

No domingo de corrida.

14.03.18

COISAS DA VIDA E DA CORRIDA (DIA 14 DA MARATONA)


The Cat Runner

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A corrida tem-me ensinado algumas coisas.

Coisas sobre ser, sobre ver, sobre a vida, até sobre a morte, que já corri, para poder gritar, sózinho, eu e o céu.

Olhe, ensinou-me, recentemente que devo comer com regularidade e sempre antes de treinar, ao contrário do que fiz durante anos.

Olhe, ensinou-me que faz sentido a teoria da cabeça;

"Corpo são em mente sã".

Quando a cabeça está ausente, o corpo perde-se, tal como a vontade.

Se és resiliente e vestes o equipamento e sais para treinar, daí até ao fim, sabes bem, será um brutal pesadelo.

Tudo te pesa, tudo te dói, tudo te irrita, tudo te impede, mas tu vais.

"Se a cabeça não estiver bem, esquece, Zé, nada funciona", disse-me o meu treinador. Confirmei.

Tenho treinado, nos últimos dias, como sempre, desde o dia em que me coloquei este desafio, com a certeza que vou cruzar a meta, em Berlim.

Mas, tem havido dias muito difíceis, que só me vieram comprovar a teoria.

Isto fez-me pensar em algumas coisas da vida.

É, a vida, um processo de transformação, resume-se quase a isso. Então olha-a de frente, José.

Ontem fiz o melhor treino, desde que esta aventura começou.

Quando sentes o cansaço, mas ele sabe bem, em vez de te prender ao chão, quando corres mais rádio, quase sem te dares conta, não fossem os registo do relógio, quando terminas, transpirado até dizer não, quando acordas no dia seguinte e sentes que estás vivo.

Corri abaixo dos seis minutos por quilómetro, sem qualquer dor, sem qualquer desconforto, gozando em pleno a corrida.

Nestes últimos dias, uma das muitas coisas da vida em que tenho pensado é na forma de ser feliz. Isso passa pela corrida, haja cabeça.

Desde Janeiro que questiono diariamente se, de facto, isto irá até ao fim.

Confesso, por vezes sinto-me tão em baixo que questiono tudo.

O que não faz uma corrida.

Ontem, depois de correr, voltei a sentir-me leve, em paz, feliz. Hoje acordei assim, a acreditar que a vida tem aquele lado sereno, embora demore, por vezes, a encontrar. Tamanhos conflitos interiores.

Quero poder dizer: sou maratonista, isso quero, mas a minha aventura já valeu a pena e mal começou.

O que não faz uma corrida, um momento mágico, um instante.

Há, depois, mais coisas da vida, como a emoção, os sentimentos, os afectos.

Tenho tido a sorte de ter encontrado, nestes dias de Inverno, pessoas que não saem do meu lado, pessoas que me empurraram para aqui, até aqui.

É também por elas que vou continuar, porque naquele sábado que tanto desejo, quando passar a linha de chegada é para estas pessoas, tão especiais na minha vida, que irei levantar os braços, olhá-las de frente, para que vejam o rosto do esforço, para que saibam que a minha amizade é eterna, incondicional.

Voltei a acreditar.

Em mim, na vida, na minha corrida.

É de maratonas que gosto.

É por isso que gosto da vida.

Lutar ou vencer.

Não há outra hipótese, apenas uma escapatória:

amar, muito.

04.03.18

A TEMPESTADE DENTRO DE MIM ( DIA 13 DA MARATONA)


The Cat Runner

 

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Porque há domingos assim...

 

 

Chovia a potes.

Foi de repente, de repente, assim que me despedi dos meus dois amigos começou a chover a potes. Uma daquelas chuvadas que nos empurram porta de casa dentro, para um sofá reconfortante.

Pegar ou largar !

O rio mostrava-se-me bravo, mas eu conheço-o, desde miúdo, entendo-lhe a cor escura, nem vivalma no horizonte, nem barcos a subir em direcção à ponte, nem namorados sentados nos bancos decorados pela história dos heróis da vila, grandes, nada, ninguém.

Apertei os cordões do carapuço azul, bem apertados, aconcheguei os phones nas orelhas, fiz play e fui.

Nos primeiros quilómetros vi os meus próprios passos. Só eles.

Tanta era a chuva que, não podia levantar a cabeça, apenas os meus passos. De tempos a tempos desapertava os cordões do carapuço azul e olhava de frente para o meu caminho, ninguém. Nada.

Aprendi que, afinal, não baixo a cabeça apenas para apertar os atacadores, também baixo a cabeça para ver os meus próprios passos, toc-toc-toc-toc, assim, a este ritmo.

Tenho-me obrigado a isso, a olhar os meus passos. Como se tudo estivesse prestes a recomeçar.

Já não me lembrava de como era correr à chuva. Há quem dance, há quem cante, há quem corra à chuva, eu corro à chuva.

Corro contra o vento, contra o tempo, contra aquilo, contra isto, corro, mesmo quando sinto puxar-me para trás.

Agora que corro sem dores nas pernas, finalmente, continuo a fazer tempos de corrida idênticos. A diferença está no facto de, agora, ter voltado a desfrutar do prazer de correr, o prazer de sentir as gotas de suor a cair nos olhos, misturadas com as notas da chuva, sim, consigo diferenciar, o prazer de sentir a temperatura do corpo a subir, e a cabeça a viajar, as pernas a responderem.

O prazer de correr sem ter que parar, só a porcaria do relógio parou, a aplicação também, a meio da corrida. Chateou-me, claro que chateou. Vou mudar, de relógio e de aplicação.

Vou mudar tudo, ou quase tudo, depois da maratona que vou correr, pela primeira vez.

Cada vez mais o sinto.

Tenho vivido momentos difíceis, coisas minhas mas, nos últimos dias têm-me acontecido coisas boas, pessoas. As pessoas fazem-me bem, ao sorriso.

Hoje, pela primeira vez, fui a uma corrida e não corri. Foi nesta corrida que me estreei, há quase cinco anos, sozinho, como sempre, como eu próprio. Fui lá só para dar um abraço, a dois amigos, que me estimam, que estimo, amigos feitos a correr, porque a vida é isso mesmo, uma corrida de fundo, como a maratona.

É este o meu desafio, a minha corrida, a minha experiência. Toda a vida desafiei a vida.

Estamos cara-a-cara, eu e ela, de novo, eu e ela.

A minha maratona não é só uma corrida grande, a minha maratona é a metáfora de toda a minha vida. É agora que preciso, muito, de saber se sou capaz, de saber quem sou eu, de saber como irei ser, dali em diante, porque é perder ou ganhar.

Já não há mais tempo. É o meu tempo, o meu confronto, perder ou ganhar.

Não é apenas uma maratona, é a minha maratona.

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Estive com estes dois amigos, depois da corrida, ele de Guimarães, ela de Arruda dos Vinhos, vieram correr à minha terra, ao meu sítio.

Foi, orgulhoso, que lhes falei do caminho onde corro, onde me reencontro, onde sinto e vivo, “é ali em frente, fantástico, não é?”, perguntei, enquanto tomávamos um café, olhando o rio, bravo, o rio.

“Estás a ver a praça de touros? O meu primeiro restaurante era logo a seguir...”.

Falei-lhes imenso de tudo, como sempre, falo imenso, ninguém é perfeito.

Metemos a conversa em dia. O Francisco vai correr a maratona, comigo, em Setembro, a Alice, provavelmente.

Falámos sobre os apoios que estamos a tentar, para suportar esta aventura, falámos da família, amigos.

Tenho tido, nestes dias de temporal, amigos que fazem questão de entrar dentro da metáfora que estou a construir.

Se escrevo este texto, hoje, devo-o à Petra, um ser humano como nunca conheci, não que me tenha feito nada, a não ser empurrar-me para a escrita, de novo, e o tanto que isso é.

Amigos.

E, se ao Francisco e à Alice devo o abraço - há um ano, exactamente, estava em Moçambique, nas aldeias do abraço - à Petra devo o sorriso, e se à Petra devo o sorriso, ao Rui devo um mundo inteiro.

Não contem a ninguém, mas eles não sabem que lhes devo tanto.

Amigos.

Assim que me despedi deles começou a chover a potes.

Foi quando comecei a correr !