A cabeça é tramada.
Passaram praticamente dois anos.
Meses e meses, dias e dias, semanas e semanas, dois anos.
Nos últimos dois anos corri sempre com lesões crónicas nas pernas, uma perfeita inconsciência, que apenas tem a ver com a resiliência e com a vontade de não atirar a toalha ao tapete.
Mas, tinha que parar e tratar-me.
Finalmente, livrei-me das dores, tenho as pernas curadas.
Mas, a cabeça é tramada.
Hoje, quando recebi o telefonema do meu treinador (falamos todas as semanas), para combinarmos o plano de treino das próximas semanas até os meus olhos brilharam e, de alguma forma, até a minha alma sorriu, ela que tem andado tão cabisbaixa, com coisas da vida.
“Viste o plano que te enviei? Ainda não é um plano detalhado, agora é para avaliar, vamos ver como reagem as tuas pernas à corrida”.
Corrida, a palavra mágica.
Não corro há cinco semanas, por ordem do meu treinador.
Sinto as pernas descansadas, mas a cabeça inquieta, como se fosse a primeira vez.
Já assumi que é como que começar do zero. Recomeçar.
Gosto de recomeços, com toda a inquietação que eles encerram em si.
“Vi, sim, mas estou a ter um bloqueio…”
“Eu sei”, respondeu-me ráido, do outro lado da linha.
“Aquilo que eu quero é que corras solto, livre, confortável, para vermos como é que os teus gémeos se comportam, estão curados, já só tens um ou outro ponto de desconforto que vai desaparecer, não estiques e cumpre as regras todas”.
As regras (de treino) não são propriamente fáceis, não sendo um bicho de sete cabeças.
Lá está, a cabeça, a cabeça é tramada.
“Sabes, estou inquieto”, disparei.
“Eu sei, foram dois anos a defenderes as pernas, instintivamente. Ganhaste vícios, posições incorrectas, por isso não penses nesses dois anos, vai correr, com prazer, e regista os dados todos”.
O registo de dados passa por anotar os meus batimentos cardíacos - PM, (Pulsações Matinais) mal acordo, por registar os quilómetros que vou correndo, de acordo com as instruções de corrida e, no final, de acordo com uma escala determinada registo a minha (PE) Percepção de Esforço.
Isso, até com o Excel eu vou ter que trabalhar, e que confusão que aquilo sempre me fez.
A escala vai de 0 a 10; zero é totalmente confortável, dez é insuportavelmente desconfortável.
Nas próximas semanas o plano obriga-me a treinar cinco vezes em cada semana.
Basicamente são três treinos de corrida e dois de fortalecimento, em ginásio.
A corrida será feita de preferência na rua.
A maratona está agora a oito meses de distância. Passou um mês.
Foi então que aprendi o significado da palavra "mesociclo".
Na verdade é um ciclo que pode ir das duas às seis semanas.
No meu caso este terá duas semanas, para reavaliação mental e física, os próximos, já mais a sério terão a duração de quatro semanas, até ao dia 15 de Setembro, férias incluídas (o treino não vai parar).
São planos de treino específicos e personalizados, podem servir para adquirir picos de forma, para recuperação ou para pré-preparação. Tudo detalhado, comparado e anotado.
Bendita palavra estranha; "mesociclo", soube-me tão bem ouvi-la, aprendê-la, entendê-la, de a interpretar.
Estas duas semanas vão servir, nesta segunda fase do plano, para avaliar a minha condição total, para avaliar a resposta das minhas pernas a eventuais lesões como as que tive e para, a partir daqui, entrarmos na terceira fase, a preparação específica e minuciosa da maratona.
Nessa altura já o plano de treino será personalizado ao detalhe, em função da minha capacidade aeróbica, da minha coragem e da resposta das minhas pernas.
Mas, a cabeça é tramada.
O regresso à corrida está agendado para terça feira, faltam dias.
Serão dez minutos de corrida, quase caminhada, para aquecer, mais quinze minutos de corrida lenta e mais dez minutos de “desaquecimento”, com os obrigatórios alongamentos, no final.
“Nos últimos dois anos nunca correste mais de dez minutos de seguida, quando foste ter comigo a primeira vez, ao fim de dez minutos estavas a alongar, por isso vamos fazer tudo com calma, com muita calma”.
Vai ser assim três vezes por semana, nas próximas duas, porque pelo que já vi, quando o plano for definitivo, com as variáveis todas ponderadas, a coisa tornar-se-à bastante dura, diria.
Numa altura em que devia estar preocupado se vou aguentar, se a queda de forma foi grande, se vou conseguir, na minha cabeça só ecoa aquela sensação que me acompanhou nos últimos anos.
Enquanto escrevo isto parece que aquela bola maldita, no gémeo direito, que já não existe, a bola (contractura maior) está a latejar, quer saltar para fora da perna, obriga-me a parar, a mim que estou no sofá.
A cabeça é tramada.
“Estás obrigado a não pensar nos últimos dois anos, não te deixes condicionar por isso”.
A minha relação com o meu treinador começa a adensar-se, para além de ser um bom homem, o José Carlos Santos é um profundo conhecedor do treino e da recuperação e essa sabedoria transmite-me segurança.
Mas, não chega. O grosso do trabalho tenho que ser eu a fazer.
Todos nós temos dias melhores e dias piores, nesta vida.
Confesso, não ando a a travessar a fase mais animada, antes pelo contrário.
E, se noutras alturas era ao desporto que ia buscar forças, neste momento é dentro da minha cabeça que se guarda a minha capacidade de superação, de apanhar a toalha do chão e limpar o suor do rosto.
Correr a maratona é mais que superação, é ir além daquilo em que acredito, bem além, até.
É prova de vida e de compromisso.
Estou-me a provar isso mesmo.
Faltam oito meses e os desafios são sucessivos.
Primeiro recuperar das lesões, agora ver como vai ser o recomeço, depois o cumprimento escrupuloso das indicações de treino, com toda a ausência física da família, até por força dos meus horários de trabalho, com a rigidez da alimentação, com todo o investimento financeiro que estou a fazer.
Tenho a consciência que são desafios quase diários.
Estou cá para isso !
Quanto ao corpo, desde que os gémeos não voltem a gritar de dor, tudo se arranja, é para enfrentar o desafio que me estou a preparar.
Quanto à cabeça, ela é tramada, mas eu sou mais tramado do que ela.
Bem sei que há desafios que perdemos, mas também há desafios que ganhamos.
E, se afinal as vacas voam, também eu posso correr uma maratona.
E vou corrê-la, disso ninguém tenha dúvidas.
Venha a terça feira, que quero matar os fantasmas todos que tenho dentro de mim.
Venha a terça feira, que quero voltar a sentir os cheiros, descodificar os sons, olhar as cores do rio e das flores, enquanto corro, enquanto respiro, enquanto vivo, como antigamente.
Quero ser feliz, outra vez.
Vou ser feliz, outra vez.
Volto já.