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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

16.05.17

CORRIDA A CORES


The Cat Runner

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(Huwaei P10 & Leica)

 

 

Dois dias sem correr é o suficiente para me deixar cheio de comichões, a sentir-me inchar, deixa-me inquieto, ao mesmo tempo sinto as pernas a aliviar.

É uma sensação de bem-estar disfarçada, que eu sei.

Dois dias sem correr é o meu limite.

Vem isto a propósito da foto que acompanha este texto, lá em cima.

 

12.05.17

EU, CORREDOR, ME CONFESSO


The Cat Runner

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Encontrei muitos peregrinos nestas duas últimas semanas.

Quando digo muitos quero dizer muitos mesmo.

Vinham todos da Estrela do Sul, lá do lado longe, que lhes oferece a caminhada obstinada, que se-me atravessam ao caminho, de frente, fé.

Durantes as duas últimas semanas encontrei e cruzei-me com muitos peregrinos, todos os dias, enquanto corria no meu santuário espiritual, junto ao meu rio de afectos. Via-lhes no rosto, afecto, felicidade, ou quando saía da auto-estrada, para entrar no meu mundo secreto, casa, família, trilhos.

Todos os dias, nas duas últimas semanas.

As imagens que guardo são dos dias de corrida.

 

 

 

 

09.05.17

AO DOMINGO NÃO SE CORRE


The Cat Runner

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( HUAWEI P10 & LEICA) 

 

Os domingos são dias mágicos, por isso corro quase todos os domingos, como que por magia.

Mas, aos domingos não se corre, porque o céu de domingo não se compadece com coisas mundanas.

O domingo é o dia litúrgico, o mais de todos, o dia da celebração da brisa que nos toca o rosto, do mar de peregrinos que se te atravessam na pista, o louco que te obriga a ser parte da sua própria e solitária loucura.

Como o sagrado e o profano.

Um mar de peregrinos, no teu caminho, que te engole a cada passada, em contra-mão.

Um mar que abres, enquanto corres por ele adentro, com movimentos das mãos, como Moisés, eventualmente, terá feito, quando abriu o Mar Vermelho durante o Êxodo.

Os peregrinos, em contra-mão, afastam-se abrindo caminho pelo centro da corrente.

Deixei-me, continuei, as mãos em movimento, por eles adentro, como se a pista fosse um mar e eu apenas «o mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra» .

Aquele momento recordou-me outros momentos. Alterei o trajecto, na volta do caminho, impelido para aquela rua onde brinquei, lá mesmo no fim da volta do caminho, onde tudo também começa.

As minhas corridas são também as minhas peregrinações.

De quando em vez mudo de rumo e deixo-me viajar pelos sítios que me fizeram, e revivo.

É aos domingos que eu faço as minhas peregrinações, porque os domingos são dias litúrgicos, os mais de todos, e essa magia transporta-me sempre para memórias que ainda estão por chegar. Só, eu, comigo, em viagem.

Na volta do fim do caminho, segui para o largo da vila.

Detive-me junto da estátua do médico-santo, que é objecto de romaria anual, há muitos anos, mas isso é lá em cima, no castelo, no cemitério, onde dá consultas do outro mundo, a crentes que não eu.

Nem as flores de plástico vivem para sempre, aprendi há muito tempo.

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( HUAWEI P10 & LEICA)

 

Fui com fé, diferente da fé deles.

Meti-me pela rua da morgue, onde, logo ao início, fica o antigo hospital, agora lar da Misericórdia.

Misericórdia. Faltavam-me mais quatro quilómetros para chegar ao carro e a viagem ia a meio.

O antigo hospital mantém as grades e o portão em ferro, que deixam ver o pátio, a portaria, o edifício castanho.

Não parei, apenas olhei, porque olhava sempre, quando era pequeno.

«O mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra» estava agora ali, à minha direita, vi-o através das grades.

Deu para ver.

Inspirei o final de tarde, estava fresco, não estava frio, estava morno, não estava quente, mas ele, ele olhava em frente, em movimentos estudados, lentos.

As pernas, os pés, rodavam, parecia um boneco.

Tinha um sorriso altivamente digno e louco espelhado no rosto.

Dirigiu-me o olhar, sacou de uma muito bem feita continência, como que em câmara lenta, sem qualquer pressa.

Não há pressa aos domingos.

Ao passar pelo portão olhei-o, ele percebeu, mas não desfez a continência.

O muro do hospital velho é baixo e feito com grades largas, não o suficiente para deixar a loucura sair cá para fora, mas o suficiente para permitir uma troca de continências, o acto mais humilde e digno entre dois homens, mágico, como os domingos.

Ao meu segundo virar de cabeça encontrámos os olhares.

Não o escutei, a música não me o permitiu, mas consegui ver claramente que não tinha desfeito a continência, nem mesmo após um direita-volver, que o colocou em linha de fogo comigo.

Li-lhe os trejeitos e os lábios, ao longe. enquanto passava, como se olhasse uma fita do tempo.

Obriguei-me a fazer-lhe continência, enquanto continuava a correr, agora muito lentamente. E

ra eu também uma personagem daquele momento.

“Estava a ver que não me prestava continência”, pareceu-me ter dito, de lá do meio do pátio, atrás das grades que guardam a loucura, que apenas a deixam sentir a brisa do final de tarde, nas tardes de domingo, as únicas que valem a pena.

Levei-o comigo até ao fim da corrida, lá no meu jardim mágico.

 

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( HUAWEI P10 & LEICA)

 

 

O rio não mente. A corrente leva-nos, se quisermos ir.

Peguei na passada de uma miúda gira, deve ser, não consegui passá-la, só seguir-lhe a passada, através daquele perfume de creme Nívea, feito feitiço.

Era morena, apareceu do nada, elegante.

Não a consegui acompanhar, só lhe vi o rosto, já vinha ela de regresso, em sentido contrário.

Era bonita.

Nem tive tempo para mais nada senão ver-lhe o rosto.

Os rostos das pessoas também são diferentes, aos domingos.

Ele usava um boné, tinha uma camisa branca, de manga curta, umas calças bejes, sapatos castanhos, e estava ali, no meio do pátio.

Ela passou e ele prestou-lhe continência, tenho a certeza.

Numa destas corridas vou voltar a ligar a máquina do tempo, para confirmar.

Mas, tenho quase a certeza.