E NO FIM TIRAMOS UM RETRATO
A dois...
Esta tarde demos connosco, no nosso sofá grande, a ver vídeos no Youtube.
Vídeos sobre corrida. Não uns vídeos quaisquer.
Vídeos produzidos por uma marca internacional, da qual não devo revelar o nome que qualquer dia o blog começa a ser comercial e depois todos querem borlas.
Essa marca de desporto produz vídeos construídos com uma linguagem estética, com uma narrativa e com casos que transformam todas as peças em histórias inspiradoras. Vídeos curtos, como vem nas sebentas.
Vídeo a vídeo trocamos impressões, revivemos coisas;
“lembras-te, é isto...”, digo eu, recordando as nossas corridas recentes, tão recentes quanto a sua decisão de começar a correr regulamente.
Esta cena caricata aconteceu no domingo, um dia depois de corrermos juntos os dez quilómetros da Corrida das Nações, em Lisboa.
As pernas podiam estar piores, mas o fim de dia convidava a um sofá, e demos connosco a ver os tais vídeos, recordando a corrida, a dois, um dia antes.
A nossa segunda vez.
No espaço de duas semanas a minha parceira correu dez quilómetros, em prova.
Há duas semanas, com dois terços a correr e um terço a caminhar, fez a sua primeira prova a sério. Uma hora e treze minutos.
Uma conquista. Quem chega ao fim sabe que é uma conquista.
Duas semanas depois, os dez quilómetros foram feitos a correr, metro-a-metro, passo-a-passo, sem nunca caminhar, um milímetro sequer.
Uma hora e nove minutos.
Selámos a carta e mudámos de assunto, como diz o Reininho.
Embalada pela experiência de Viseu, foi ela quem tratou de tudo para a corrida de Lisboa.
Eu fui, imagine-se, convidado.
Uma corrida em tudo diferente da anterior, como são todas as corridas.
Menos pessoas, mais espaço – menos luz, é certo – menos calor, foi ao início da noite, sempre em avenidas fantásticas, ou em caminhos ladeados pelo rio, encimados pela ponte.
Até a partida foi mais tranquila, em passada quase lenta, nada de correrias e de stresses.
Pouco falei com ela durante a corrida.
Aos três quilómetros fiz-lhe sinal, ia bem.
O tempo era mais baixo que o de Viseu.
Bom presságio.
Aos cinco quilómetros repetimos a cena, e lembrei-me do que me tinha dito segundos antes da partida: “não comeces a falar e não comeces a contar os metros no fim...”.
Nem uma palavra.
Aos sete quilómetros olhei para ela, serena, rosto confiante, sorridente, focada, estava no ponto.
Aos oito quilómetros falei pela primeira vez: “vamos tentar fazer mais rápido?”, perguntei.
Que não, que uma súbita dor na perna tinha aparecido, “por isso é preciso cuidado, para chegar ao fim...”.
À entrada para o nono quilómetro, junto ao hotel do Parque das Nações (norte), quase com a meta à vista, parou.
Olhei a aplicação.
Ia fazer um tempo com que nunca sequer tinha sonhado.
Alongou, esticou a perna, relaxou-a, seguimos, mais lentos, até ao fim.
Ia ficar abaixo da hora e dez, o que é um feito gigantesco, sobretudo para quem corre há apenas dois meses. Isso estava garantido, mas não falámos, apenas festejámos, em sorrisos.
Quando falamos em correr dez quilómetros, as palavras saem com uma leveza e com uma velocidade quase naturais.
Mas, não. Garanto que não. Experimentem. Cheguem ao quilómetro cinco e imaginem que têm que fazer o dobro do que fizeram.
Experimentem alimentar esse jogo físico e psicológico durante uma hora e pouco, enquanto se sentem suar, os músculos que vivem, os órgãos que funcionam em ritmo certo, e as contas de cabeça, o quilómetro três, o cinco, o sete, oh, depois só faltam três, e dois, e tudo acontece, ganhas força, coragem, vês pouco, apenas lá ao fundo, e corres, corres que nem um desalmado.
“Vai, vai tu...”.
E, fui, até ao fim, a correr, o mais que consegui.
Fui um mau parceiro, no sábado. Tenho a certeza que ela ficou a pensar isso de mim.
Deixei-te terminar sozinha.
Na verdade, fi-lo de propósito.
Sentir a solidão ao cortar a meta também faz parte do processo.
Do meu e do teu.
E ter alguém à nossa espera é o passe de mágica final.
Évora vem aí, prometo passar a meta de mãos dadas contigo.
Prometo oferecer-te um equipamento novo para lá correres.
E, no fim tiramos um retrato.