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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

11.10.16

E NO FIM TIRAMOS UM RETRATO


The Cat Runner

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A dois...

 

Esta tarde demos connosco, no nosso sofá grande, a ver vídeos no Youtube.

Vídeos sobre corrida. Não uns vídeos quaisquer.

Vídeos produzidos por uma marca internacional, da qual não devo revelar o nome que qualquer dia o blog começa a ser comercial e depois todos querem borlas.

Essa marca de desporto produz vídeos construídos com uma linguagem estética, com uma narrativa e com casos que transformam todas as peças em histórias inspiradoras. Vídeos curtos, como vem nas sebentas.

Vídeo a vídeo trocamos impressões, revivemos coisas;

“lembras-te, é isto...”, digo eu, recordando as nossas corridas recentes, tão recentes quanto a sua decisão de começar a correr regulamente.

Esta cena caricata aconteceu no domingo, um dia depois de corrermos juntos os dez quilómetros da Corrida das Nações, em Lisboa.

As pernas podiam estar piores, mas o fim de dia convidava a um sofá, e demos connosco a ver os tais vídeos, recordando a corrida, a dois, um dia antes.

A nossa segunda vez.

No espaço de duas semanas a minha parceira correu dez quilómetros, em prova.

Há duas semanas, com dois terços a correr e um terço a caminhar, fez a sua primeira prova a sério. Uma hora e treze minutos.

Uma conquista. Quem chega ao fim sabe que é uma conquista.

Duas semanas depois, os dez quilómetros foram feitos a correr, metro-a-metro, passo-a-passo, sem nunca caminhar, um milímetro sequer.

Uma hora e nove minutos.

Selámos a carta e mudámos de assunto, como diz o Reininho.

Embalada pela experiência de Viseu, foi ela quem tratou de tudo para a corrida de Lisboa.

Eu fui, imagine-se, convidado.

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Uma corrida em tudo diferente da anterior, como são todas as corridas.

Menos pessoas, mais espaço – menos luz, é certo – menos calor, foi ao início da noite, sempre em avenidas fantásticas, ou em caminhos ladeados pelo rio, encimados pela ponte.

Até a partida foi mais tranquila, em passada quase lenta, nada de correrias e de stresses.

Pouco falei com ela durante a corrida.

Aos três quilómetros fiz-lhe sinal, ia bem.

O tempo era mais baixo que o de Viseu.

Bom presságio.

Aos cinco quilómetros repetimos a cena, e lembrei-me do que me tinha dito segundos antes da partida: “não comeces a falar e não comeces a contar os metros no fim...”.

Nem uma palavra.

Aos sete quilómetros olhei para ela, serena, rosto confiante, sorridente, focada, estava no ponto.

Aos oito quilómetros falei pela primeira vez: “vamos tentar fazer mais rápido?”, perguntei.

Que não, que uma súbita dor na perna tinha aparecido, “por isso é preciso cuidado, para chegar ao fim...”.

À entrada para o nono quilómetro, junto ao hotel do Parque das Nações (norte), quase com a meta à vista, parou.

Olhei a aplicação.

Ia fazer um tempo com que nunca sequer tinha sonhado.

Alongou, esticou a perna, relaxou-a, seguimos, mais lentos, até ao fim.

Ia ficar abaixo da hora e dez, o que é um feito gigantesco, sobretudo para quem corre há apenas dois meses. Isso estava garantido, mas não falámos, apenas festejámos, em sorrisos.

Quando falamos em correr dez quilómetros, as palavras saem com uma leveza e com uma velocidade quase naturais.

Mas, não. Garanto que não. Experimentem. Cheguem ao quilómetro cinco e imaginem que têm que fazer o dobro do que fizeram.

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Experimentem alimentar esse jogo físico e psicológico durante uma hora e pouco, enquanto se sentem suar, os músculos que vivem, os órgãos que funcionam em ritmo certo, e as contas de cabeça, o quilómetro três, o cinco, o sete, oh, depois só faltam três, e dois, e tudo acontece, ganhas força, coragem, vês pouco, apenas lá ao fundo, e corres, corres que nem um desalmado.

Vai, vai tu...”.

E, fui, até ao fim, a correr, o mais que consegui.

Fui um mau parceiro, no sábado. Tenho a certeza que ela ficou a pensar isso de mim.

Deixei-te terminar sozinha.

Na verdade, fi-lo de propósito.

Sentir a solidão ao cortar a meta também faz parte do processo.

Do meu e do teu.

E ter alguém à nossa espera é o passe de mágica final.

Évora vem aí, prometo passar a meta de mãos dadas contigo.

Prometo oferecer-te um equipamento novo para lá correres.

E, no fim tiramos um retrato.

 

11.10.16

ALICE E A RODA GIGANTE


The Cat Runner

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 Dia 11

11/10/2016

 

 

 Sobre a quietude...

 

Bem aventurados, aqueles que saem às cinco, preenchem o tempo até rumarem a casa a praticar exercício, ou num café com amigos, à conversa, aqueles que às sete já estão em casa, às oito jantam, em família, e o resto da história é fácil de imaginar.

Bem aventurados, aqueles que são fiéis à rotina.

Quando era novo detestava rotinas, agora anseio por elas, daquelas mais básicas, como acordar e dormir sempre à mesma hora.

Cá por casa também temos as nossas rotinas, consequência das nossas profissões, jornalistas e estudantes do secundário, cada qual com a sua própria rotina, que tenta encaixar na rotina diária, que o nosso calendário da vida é ao dia. 

Um após o outro.

E, a coisa vai-se dando.

Difícil imaginar, mas fabricamos sempre pedaços de tempo só para nós, o um e o todo e, nessas alturas, o tempo pára e vivemos dentro dele até querermos, às vezes numa simples manhã de futebol.

Isto para dizer que é complicado ter horários que nos permitam uma vida “normal”.

Não saímos todas as sextas para passar o fim de semana fora, não colamos pontes aos feriados, porque raramente temos feriados, ou pontes, quando um trabalha num período do dia o outro trabalha no outro período, porque trabalhamos no mesmo sítio, exercemos as mesmas tarefas, trabalhamos em fins de semana desencontrados.

A única coisa certa é que os miúdos entram na escola às oito e meia e saem aos fins de semana à noite.

No fim, ou no princípio do dia, de acordo com a rotina de cada um, cada qual vai ter explicações, praticar desporto, ajudar com o jantar, treinar, correr, descansar, ocupar o seu próprio tempo e espaço, aquelas coisas normais de uma família, mesmo que em uma espécie de rotatividade afectiva.

Agora, nesta roda gigante, viva, colorida, muitas vezes, chata, outras, há mais um pedaço de rotina que é de todos, que é de cada um de nós.

Há muito tempo que não estava no horário das nove às dezassete.

Este horário permite-me levar os miúdos à escola, ir buscá-los, ou preparar tudo para quando chegarem (com ajuda, claro). Permite treinar, ficar no sofá a ler, escrever, não fazer nada, fazer imensas coisas rotineiras que sabem tão bem.

Permite, sobretudo, pela primeira vez, nestes primeiros dias de Alice, observar a sua ligação a Maria.

É Maria quem está no nascimento desta história.

Não sou eu. Eu sou apenas o escriba dos dias.

Foi aos braços de Maria que Alice foi parar.

Esperando não cometer inconfidências, que Maria não gosta que a exponha gratuitamente, é sobre elas que falo.

Maria e Alice têm uma ligação mágica, plasticamente maternal.

A forma como Maria pega em Alice ao colo, a agilidade, rapidez, e ao mesmo tempo suavidade com que lhe dá os medicamentos (que nós demoramos montanhas até conseguir dar), a forma como lhe fala, ou a agarra, quando ela está por baixo da mesa, pela barriga, com a mão totalmente aberta.

A forma como se lembra de lhe dar comida, medicamentos, fazer a higiene, de tratar de tudo, a forma como a impede de sair da cozinha, ou de tentar enfiar-se atrás das máquinas, a forma como ambas se relacionam, e que agora posso observar, num contexto normal (falo das rotinas), ensina-me que, há nas gatas aquele instinto que só há também nas mulheres, aquela forma quase mágica de tocar e olhar quem se deixa embalar nos braços.

Todos os dias, desde segunda feira, que observo a personificação da ternura;

Alice está, pelo menos uma vez por dia, nos braços de Maria, na cama de Maria, aninhada, quieta e o que impressiona nesta cena é que é tudo tão natural.

Depois ouvi um barulho.

Fui ver, Maria tinha adormecido.

Alice andava por cima da mesa de cabeceira, a rondar o candeeiro, que caiu.

Posto isto, Alice voltou para os braços de Maria.

Aninhou-se.

Também ela adormeceu.

Apaguei a luz.

Fechei a porta, com cuidado.

11.10.16

ALICE E A CAVERNA


The Cat Runner

 

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 Dia 10

10/10/2016

 

Coisas do coração…

 

Apetecia-me escrever-te um poema. Dedicar-te um poema bonito. Mas, Alice, não o consigo fazer.

Nunca fui bom com as palvras, com a poesia, li poucos autores, escrevi raros poemas, evito assim fazer figuras tristes, mas queria escrever-te um poema.

Um dia, quando cresceres, talvez vás entender (não sei se sim, se não, não sei como funciona a cabeça dos gatos) que em dez dias conquistaste o meu coração, e o corações deles também.

Lá longe, daqui a tempos, estou certo, vais olhar-nos com a mesma ternura e doçura e vais abanar a cauda e dar um pulo no ar, por estares feliz. Tal como costumas fazer.

Acho que me estou a apaixonar por ti. É possível, Alice?

Parece-me!

Já damos por nós, todos os quatro, quando entramos em casa a cumprimentar-te e a saber de ti, mesmo antes de dar-mos um beijo aos outros.

És sempre a última pergunta da chamada telefónica: “como está a Alice”, és o único ser vivo que se permite estar debaixo da mesa onde comemos, até porque não dás descanço aos nossos pés e eu nunca dei comigo a obrigar-me a ir à cozinha, só para te espreitar, só porque sinto saudades de te ver brincar com a bola de prata, que sobrou do embrulho do lanche do Rodrigo.

É a simplicidade que me emociona.

Acho, Alice, que é isso que me fascina em ti; do nada fazes tudo.

Eu, para o Rodrigo:
A nossa cozinha parece um teatro de guerra, olha para o chão”…

Riu-se e concordou.

“Já contaste a quantidade de rolos de papel higiénico acabados, ovelhas e tubarões de borracha, bolas com guizos e bolas sem guizos, coloridas, bolas de papel, de papel-prata…”

“É para aprenderes, pai, queres sempre tudo direitinho, arrumadinho, agora a Alice tramou-te”.

A Alice tramou-nos a todos, em apenas dez dias, desde o primeiro momento.

Alice entrou nas nossas vidas, e com os restantes não sei, a mim, levou-me a viajar, até há uns 14 ou 16 anos, na altura em que nasceram os meus filhos.

Exemplo materializado de amor incondicional.

A luz que me indica o meu próprio caminho.

Alice, com as devidas distâncias, faz-me sentir outra vez pai de uma menina.

Os cuidados. A preocupação.

Dou comigo preocupado, do nada, só por perceber que não sei se está bem, calculo que esteja sempre bem, mas dou comigo a pensar.

Os dias passam, Alice cresce, muda, nós mudamos com ela, por causa dela, por ela e cada vez com mais cuidados.

Agora, agora a preocupação chama-se arca congeladora.

Para além do teatro de guerra que é, actualmente, o chão da minha cozinha, onde descansam ovelhas, tubarões, rolos de cartão e outras coisas com cores e guizos dentro, Alice decidiu que tem que voltar à força ao lugar onde (deve ter sido) foi feliz.

Refiro-me à ficha tripla rectângular, atrás das máquinas, onde já aterrou uma vez.

Para além de tudo o que descrevi, agora tenho não uma, mas duas garrafas de litro e meio no chão da cozinha, junto às maquinas e à parede. A fazer tampão, improvisado.

Uma de cada lado, impedindo assim as investidas de Alice, ou as tentativas de investidas, num espaço onde é impossível passar, onde é gatamente (humanamente para gatos) impossível passar.

Entre a parede e a traseira das máquinas vai menos de metade da largura de Alice, ainda assim ela mete a cabeça, como se não houvesse amanhã, para se passar para o outro lado.

Duas garrafas grandes, uma de cada lado, resolveram a questão, até ver.

Alice já não investe, limita-se a chegar ao pé da garrafa, deita-se no chão e, ali fica, a observar o seu próprio reflexo, espelhado na(s) garrafa(s).

É um assunto ao qual irei dedicar, em breve, umas linhas, a relação de Alice com as sombras, tal como na “Alegoria da Caverna”.

Sou eu, humano, quem tem a visão da realidade distorcida.

Sou eu o meu próprio prisioneiro, porque acredito nos conceitos pré-feitos, nas imagens, na informação que recebo pela vida fora.

O mundo é aquela garrafa, onde Alice se observa numa imagem ampliada, hiperbólica, a “caverna”, o mundo feito de imagens que não representam a realidade.

A realidade.

Só a conseguimos conhecer, como na “Alegoria”, quando saímos da “caverna”, quando nos libertamos do espatilho social e cultural.

Ou, quando de repente, Alice se levanta, dá o seu célebre salto no ar e sai a correr, como um raio fulminante, assustada por aquela imagem de gata bela, mas gigante, só por isso assustadora, para ela. Bela, ainda assim.

A garrafa é a caverna de Alice.

A cozinha, o seu mundo.

E, lá vamos filosofando, um dia atrás do outro, que a realidade distorcida nem sempre é má.

Depende da “caverna” de cada um de nós. Todos temos a nossa caverna.

Depende da imagem gigante que cada um tem de si próprio.

Tenho saudades de Alice e ainda são dez da manhã.

Nunca mais são cinco da tarde!