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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

06.10.16

ALICE A REPUBLICANA


The Cat Runner

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Dia 5

05/10/2016

 

Da consciência...

 

Alice é filha da República.

Lido assim, depressa, quase que parece outra coisa, mas não, filha da República.

É, portanto, uma gata republicana, quer queira, quer não.

Ou então é uma ing(r)ata.

É que eu agradeço o dia que passamos juntos – e acho que ela também.

O primeiro feriado dela, e o meu primeiro, neste século, creio, que os feriados são todos meus, mas a trabalhar, os que o anterior governo acabou e os que não acabaram, e estes que regressaram.

Foi o meu primeiro feriado, em tempos, o primeiro dela, desde que nasceu e chegou à nossa república.

Devemos isso à República, não sejamos ing(r)atos, sejamos apenas gatos, sem érres pelo meio.

Até pode parecer que Alice já tem consciência cívica e política.

Ainda não, ainda só começou agora a confrontar-se com o “raspador”, feito de sizal,  com formato de rato, um estranho rato, achatado, comprido, rectangular, às cores, imóvel, a não ser que o arrastem por um cordel.

Ainda não tem consciência política, nem cívica, é uma jovem gata vadia, mas vai tê-las, com o tempo, que tem tempo. Cada vez mais bonita e inteligente. Uma gata assim até pode ser apartidária, mas nunca será apolítica.

É que, cá em casa, adoptámos desde sempre, a lógica da República;

Somos um país, temos os ministros e a assembleia, gerimos os destinos e os orçamentos, e também somos fustigados pelos castigos que os nossos aliados e amigos da Europa nos infligem, todos os dias, ou tentam, nos últimos anos.

Todos, cá em casa, temos as nossas tarefas e objectivos, trabalhamos para o bem comum do nosso país, e recebemos refugiados, como a Alice, como se tivesse sido sempre um de nós.

talvez tenha sido, sim. Num outro tempo.

Recebemos uma refugiada, a Alice.

Não recebemos mais, não passámos a ser activistas acérrimos dos direitos dos animais, ou amantes de gatos, conhecedores, não, nada disso se tornou verdade.

A política, na nossa república, cá em casa, é confrontar o país com a realidade e tomar decisões e medidas.

Alice apareceu pelas mãos do destino, foi recebida, tratada, acarinhada, começa cada vez mais a ser amada, mas apenas ela, a Alice que a Maria salvou. É um caso de amor.

Eu gosto de metáforas, e esta é perfeita.

Agora, novas políticas e novas discussões devem ser pensadas e postas em prática.

É que Alice, ao quinto dia na nossa república, viveu o seu primeiro feriado, o 5 de Outubro, e isso permitiu-lhe começar a perseguir tudo o que mexe na sua, por agora, cidade, a cozinha.

É lá que ela vive.

O nosso país trata como deve a organização do território.

O conselho de ministros decidiu que Alice só terá acesso ao resto da casa, sozinha, quando estiverem reunidas as condições para avançar com a medida.

Dia 5 de Outubro, feriado nacional. A Républica voltou a fazer anos.

Renasceu, pode dizer-se.

A República, e a Alice, essa gata republicana.

Cá em casa até nos vestimos a rigor para comemorar o feriado.

Há t-shirts muito giras.

Há gatas muito giras.

Viva a República.

 

06.10.16

O SABEDOR DAS COISAS DA VIDA


The Cat Runner

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A minha profissão tem-me dado o privilégio de ter conhecido muitos homens bons, homens grandes, homens sérios, gente com carácter, sabedoria, com quem aprendi, ao longo destes mais de vinte e quatro anos de jornalismo. Não sei se farei vinte e cinco.

Fruto de ter passado mais de metade desse tempo a trabalhar na área do desporto, privei com muitos homens desse calibre, raros, dos quais pouco é dado a conhecer, para lá da sua intimidade.

Assim era Mário Wilson.

Discreto.

Um senhor.

Um conhecedor, do futebol, dos afectos, das relações, mas um profundo conhecedor das coisas do coração, e que belo era ouvi-lo dissertar, ora sobre futebol, ora sobre a vida. E o que ele amava a vida.

Mário Wilson era um senhor, com um enorme coração.

Conheci outros, o senhor Nuno Ferrari, o senhor Capela, o senhor Eusébio, o senhor, o senhor...

Naquele tempo eles eram tratados por senhor, senhor Nuno, ou senhor Capela.

Mário Wilson era tratado por capitão.

Ponto.

Por todos.

Conheci-o em 1995, no século passado.

Estava eu a dar os primeiros passos na profissão, era ele já doutor de Coimbra, campeão português, melhor marcador, treinador, seleccionador de Portugal, uma figura, por todos respeitada, de trato fácil, mas convincente, à sua maneira, quando era preciso.

Sempre com um sorriso e aquele olhar esguio, que costumava fazer, quando confrontado com alguma pergunta mais desconfortável. Respondia a todas.

Passei a ser admirador confesso do “velho capitão”, do homem, sobretudo, mas também do profissional, com quem tive que (felizmente) conviver alguns anos.

Entrevistei-o umas dezenas de vezes. Escutei-o outras tantas. E, era isso que me prendia; ele prendia-me, escutá-lo, escutava-o, e bebia todas as suas palavras, como se fossem a última gota de sabedoria.

As histórias que se contam são verdadeiras, menos uma, que nunca alguém provou.

Aquela história em que ele terá adormecido no banco, por confirmar, e alguém lhe terá dito: “mister, o marcelo...”.

“O Marcelo, mete o Marcelo...”.

“Mas, mister, o Marcelo está a jogar...”.

“Então tira o Marcelo...”.

Essa história contou-se toda a vida, mas nunca ninguém a atestou.

Agora, vi e ouvi, eu, com estes que o fogo há-de transformar em cinzas – que eu quero ser cremado, é mais higiénico – mestre Mário Wilson (também o tratávamos assim) virar-se para o Deco, um dos melhores, na altura no Alverca, ia-mos no ano de 1998, e dizer-lhe:

“ Deco, vai tomar banho...”, ao que Deco tentou formular uma frase, mas foi interrompido, “ jogadores como tu, comigo, não treinam, só jogam...”.

Era esta capacidade de mexer com o consciente e com o sub-consciente, que fazia dele um expert em coisas do coração, porque é o coração que conquista, a razão é outro assunto.

Quando o treino acabava e o abordávamos, naquela altura era assim, falávamos com os treinadores , a caminho do, ou no fim do treino, e lhe perguntávamos se o jogador “A” ou “B” tinha recuperado, se ia jogar, ele respondia, sem se deter na caminhada.

Sempre.

Às vezes limitava-se a passar a mão no rosto do jornalista, detinha-a no seu pescoço, olhava-nos, a todos, e dizia: “meu filho...”, fazia uma pausa, “eu sei que esta é a tua profissão, e deves orgulhar-te dela, mas se eu te responder estou a dormir com o inimigo, não me interprete mal”, a meio das frases mestre Mário Wilson tinha a mania de trocar o tu pelo você, conforme assim o entendia, e continuava, “tu tens que fazer o teu trabalho, eu tenho que fazer o meu, meus senhores, muito bom dia”.

E, seguia o seu caminho, mestre do seu destino, capitão da sua alma.

Hoje, depois da sua morte, há quem queira deter a sua quota-parte na vida deste homem, que era um homem livre, porque Mário Wilson também era uma homem da Liberdade, da paz, da união. Era um homem feliz.

Mas, não era de ninguém, nem do Benfica, nem do Sporting, nem do Alverca, nem do Águeda, nem do Olhanense, nem do Belenenses, nem do Torreense, nem do Cova da Piedade, nem do Boavista, nem do Estoril-Praia, nem do Vitória de Setúbal, nem da sua Académica, nem do Tirsense, nem do Rabat, tudo clubes onde jogou ou treinou.

Chamavam-lhe o “bombeiro do Benfica”, aquele que substituía sempre o treinador que ia embora, que naquela altura era mês-sim-mês não.

Ele nunca se importou, fosse um mês, um anos, fosse o que fosse, ele sabia que era assim.

Mas, não lhe façam isto.

Mestre Mário Wilson, o nosso “Velho Capitão” era simplesmente um homem livre, que tinha a coragem de nos dizer, aos mais novos, às vezes, e disse-me-o algumas:

Essa tua atitude, agora, calou-me fundo”.

Homens destes nunca morrem, são almas livres.

Capitão Mário Wilson, era assim que eu o tratava.