ALICE E AS TAREFAS DA CASA
Dia 4
04/10/2016
Instintos...
Nos últimos quatro dias tenho aprendido verdadeiras lições de sobrevivência.
Alice, aos poucos, começa habituar-se às pessoas, aos barulhos e a tudo o que lhe é estranho, e que é praticamente tudo.
Tenho dado comigo, deitado no chão da cozinha, ao nível do seu olhar, não vá achar-me um gigante medonho, a observar o seu comportamento.
Tanto quanto o pêlo escuro raiado de sol, o focinho ternurento, é o comportamento de Alice que me fascina.
Ela dá saltos no ar, como os drones quando levantam.
Ela dá voltas e mais voltas com o rabo, ela provoca a sua própria sombra, ele coloca-se debaixo do perigo (debaixo da mesa da cozinha, debaixo dos pés grandes, da mesa e de quem se senta à mesa), ela pára, ela senta-se, ela observa.
E a reacção é ao milésimo de segundo.
Alguém que se mexa, um barulho que se faça, e Alice reage.
Instinto. Instintos.
Creio que foi isso que a fez sobreviver.
O instinto, não se ensina, não se treina, não se aprende, o instinto é uma arma para sobreviver, e não só, obviamente.
Não vai ser fácil enganarem Alice.
Ainda esta noite, um susto. Enorme.
Estava a escrever um texto pra um blog com o qual colaboro ( eu faço o meu próprio serviço comunitário e cívico, escrevo no blog Insónias – para além de escrever no The Cat Run - e ajudo na comunicaçãoo da escola de Muay Thai, pro bono, entre outras coisas que faço), quando ouvi um enorme estrondo vindo da cozinha.
A primeira coisa em que não pensei foi: “Alice está a fazer exercício”.
A primeira coisa que pensei foi: “a tábua de engomar caiu em cima da Alice”.
“Não se passa nada, tudo tranquilo”, disseram-me do lado de lá da casa, do lado da cozinha.
A tábua tinha mesmo caído.
Desde o segundo dia cá em casa, e só passaram quatro que, Alice, na descoberta do espaço, rondava a tábua de passar a ferro.
Sempre pensei que quisesse começar já a contribuir para as tarefas domésticas, que vai chegar o momento, porque cá em casa todos contribuem.
Nunca imaginei que a conseguisse deitar abaixo, à tábua de passar a ferro.
É o mesmo que eu me colocar em frente a um arranha-céus e o empurrar.
Vai-se a ver e eu deito arranha-céus abaixo, se tentar.
Assustei-me.
Não tanto quanto Alice.
Se não morreu na rua, não será uma simples tábua de passar a ferro que a vai levar daqui.
O seu instinto voltou a salvar-lhe a vida, como foi no último mês e pouco, quando estava ao abandono de tudo e de todos.
É uma fracção de segundo;
Imaginem a borboleta, no Oriente, a bater as asas, até que o maremoto chega ao outro lado do mundo.
Assim é Alice, ainda a tábua não fez o primeiro balanço rumo ao chão, já ela se escapou para o outro lado da cozinha.
Mas, o estrondo foi enorme e Alice ficou assustada, tanto quanto eu.
Escondeu-se por baixo do carrinho das batatas e das cebolas, ali mesmo ao lado da cama cor de rosa.
Costuma meter-se lá por baixo, deve pensar que aquele mini-bunker a protege de algo que, aqui, não existe, aqui ninguém lhe fará mal.
Tentámos por todos os meios com que fosse para a cama.
Não nos deitámos enquanto tal não acontecesse.
Fomos à cozinha uma meia dúzia de vezes.
Fiquei com a sensação que teria que recomeçar tudo, de conquistar, de novo, a sua confiança, não fosse ela pensar que eu era um aliado da tábuade passar a ferro.
Durante toda a noite tratou-me como um estranho, a estudar-me, de novo, a testar-me, de novo, sem confiança em mim. Não gostei da sensação.
Deixei-a dormir.
Foi para a cama cor de rosa pelo seu próprio pé.
Agora, tenho mais uma dor de cabeça, tenho que encontrar um lugar para arrumar a tábua de passar a ferro.
Por agora está ali, no hall de entrada.
Até que me passe a aversão às tábuas de engomar.