UM 737 CHAMADO SODADE
Confesso, quando entrei no avião senti-me apreensivo. Não que a hipótese de um atentado a um charter cheio de portugueses tivesse probabilidades de acontecer, não por isso. O que me deixou apreensivo foi ler os avisos, no interior do avião. Estou habituado a ler "porta de emergência", por exemplo, em línguas que me são familiares. Nunca tinha viajado num 737 sem saber a que companhia pertencia o avião, muito menos havia feito alguma viagem num avião, com avisos da praxe, numa língua que, três dias depois, ainda não consegui identificar. Reparei na cara do comandante, através da janela do cockpit, quando subi a escada, cabelo claro, como a pele, reparei na hospedeira, que nos saudou em castelhano, em uma outra, que nos indicou os lugares, em português. Uma espécie de nações unidas, dentro de um avião rumo à ilha. Na verdade, a apreensão passou assim que deixámos Lisboa para trás. Ela só me voltou a assaltar a poucos metros da placa, no momento em que já se sentia o chão, ou imaginava sentir, e a sacana da asa do lado esquerdo inclinada, desalinhada. Pensei que a coisa não ia resultar - mas que sei eu de aviação? A coisa deu-se. Dá-se assim, todos os dias. É curioso. Todos os dias levantam e aterram aviões cheios de gente, que acha que vai para o paraíso. Somos aos magotes. Num dia chega um avião e deixa gente, o mesmo avião que leva gente de volta, nesse mesmo dia. No dia seguinte o mesmo. O fim de semana é uma espécie de placa giratória que leva e traz. O filme repete-se sete dias depois. Sete dias no paraíso, com tudo incluído. Mas, o paraíso é mais que belas praias, muito mais que o sol, que fazer nada dos dias. O paraíso é sempre onde estamos, quando somos, porque queremos. Eu gosto de andar aos magotes, sai mais em conta, até porque, diz-me a experiência de turista acidental que, mal chegados, cada qual vai à sua vida. Cruzamo-nos aqui ou ali, no bar ou no restaurante, no lóbie, no lóbie cruza-se muita gente. Muitos daqueles que, chegados a casa, vão ao Trip Advisor deixar a sua pegada ecológica e crítica. "O wi-fi falha em muitas zonas do hotel". "A comida tem pouca variedade, embora sejam asseados e simpáticos". "O pessoal é muito simpático, mas deviam cuidar melhor do deck da piscina, e garantir mais internet, em todas as zonas". O Trip Advisor é como as caixas de comentários dos jornais online, onde cada qual diz o que lhe apetece, por mais idiota que seja, sem se dar disso conta.
O mundo está pejado de idiotas, eu sou um deles, daqueles sem ideias, mas com opiniões sobre tudo, como se tudo soubessem sobre a vida, a sua e a dos outros. É a mais pura das verdades, o wi-fi praticamente não funciona. Obrigam as pessoas a desligarem-se do mundo, afinal não lhes chega os quatro canais portugueses, em sinal aberto, mais um ou dois canais cabo também portugueses. A internet está-lhes-nos na medula, nestes dias que correm. Como se a internet - que existe, lá iremos, e funciona bem - fosse um bem de primeira necessidade. Como se uma ilha, no meio do oceano, tivesse a obrigação de ter internet para todos, quando a ilha, no meio do oceano, tem uma única estrada alcatroada. Duas, vá!
Esta ausência do mundo, contradição suprema de quem procura desligar-se do mundo, era a crítica principal, o que me tranquilizou.
As outras (principais) críticas centravam-se na simpatia de todos os empregados do hotel, dos hotéis.
E, faz sentido, sem turistas os hotéis estariam vazios, agradar-lhes é o mínimo. Mas, eles vão mais além, agradam e são profissionais, orgulhosos profissionais, o Modu, do Senegal, o Luis, a Angelic, o José, todos da Boa Vista.
A estes retive os nomes.
Impossível ficar com os nomes do todos os que connosco se têm cruzado, nestes dias, quentes e sem gente no horizonte.
O lóbie do hotel tem horas de ponta, em duas ocasiões; quando chegam os magotes e partem os outros, e quando os magotes se sentam - até no chão - para apanhar rede.
Ainda anteontem, depois do jantar, sentei-me num outro ponto do hotel, onde alguém me segredou que internet funcionava mais rápida.
É por isso que ainda não publiquei nenhum texto, dos três que estou a escrever; não tenho como os partilhar, porque não tenho internet suficiente. Essa é a mais pura das verdades.
A que tenho gasta-me dez porcento de bateria para publicar uma simples foto no Facebook. E, até isto faz sentido.
Sendo que, bastou-me olhar para cima, e lá estava ele, por cima do sofá em que me tinha deitado; o router, ele existe!
Mas, porra, que raio de críticas vão vocês escrever, no Trip Advisor, sobre a falta de internet no paraíso, quando o router tem mais ferrugem à volta que o Tolan, anos depois de ter naufragado em frente ao Cais das Colunas, em Lisboa.
Ainda ri sózinho, depois de desviar o olhar do router em direcção ao lóbie, onde um magote de viciados dava chutos de internet a conta-gotas.
A culpa era de uma senhora alta e loura que estava a fazer Facetime, e de uma miúda morena, que falava com alguém, através do Skype.
Pelo menos deu para escutar a queda d casal de irmãos, pré-adolescentes, experientes nestas coisas das comunicações digitais, presumo.
Segundo eles a culpa da internet não funcionar era daquelas duas pessoas, que sugavam o sinal todo.
Não sei se tinham razão, mas também não me dei ao trabalho de lhes explicar que, se já é difícil ter internet no meio do oceano, numa ilha onde muitas pessoas te pedem uma camisola, os calções, por não terem roupa, onde a palavra smartphone até assusta, apesar de ouvirem NGA e Valete, apesar de serem do Benfica, do Porto e do Sporting (de Portugal), apesar de terem festejado o título de campeão da europa, como se também eles fossem portugueses; basta reparar no cachecol da selecção, no tablier do táxi-combie, e não lhes expliquei, porque eles não têm nada que saber que o hotel tem routers espalhados, porque, apesar de tudo, o hotel não quer que falte nada aos hóspedes, só que o ar do mar translúcido e o vento Harmattan, que sopra seco e quente, vindo do deserto, dão cabo de qualquer router, por muito boa vontade e passwords que existam.
Aqui, respira-se calor, vento, mar, areia fina, alegria, confiança, segurança, só não há internet, no hotel, bem entendido.
Aqui, há 55 quilómetros de praias desertas, com dunas e águas cristalinas (posso confirmá-lo), como no paraíso.
O vento Harmattan encaixa como uma luva, no calor persistente e tórrido, a ilha é árida, pouco povoada, desprovida de bens materiais, apenas rica em harmonia, e em internet, fora do hotel.
"Ali é o hospital, o centro de saúde da vila, mas é melhor não ficar doente", disse-me o motorista do táxi que me levou a conhecer a terra.
E, a quantidade de outdoors, a caminho da vila, a que chamam cidade, com publicidade à internet 4G! Aos magotes.
Mas, aqui, o aeroporto só funciona durante o dia, enquanto há luz do sol.
Os hotéis (ainda só três), construídos em extensão ( e não em altura), contrastam com o lado de dentro da costa, agreste, vulcânico, onde pastam cabras e vacas - que se contam pelos dedos, ao ponto de, ao fim de alguns dias, já lhes conhecemos o focinho -, em pastos de terra seca.
A quantidade de vezes que já tentei imaginar o que pastam as cabras e as vacas, no meio de tanta rocha.
Deixei as cabras a pastar erva seca e fui visitar a vila.
A minha visita à vila incluiu um jogo de cinco contra cinco, numa praia mais pequena que a minha sala de estar, roda-bota-fora, areia misturada com pedras, campo com um poste no meio, e dezenas de crianças a banhos, ali ao lado, outras simplesmente deitadas na areia, a observar os "mais velhos", num torneio improvisado, daqueles em que há sempre três ou quatro equipas de fora, à espera, em que os jogos acabam quando uma equipa marca um golo.
Ficou o convite para voltar, em troca das duas garrafas de água que tinhamos.
Aquele livre, com a bola ao post impressionou. Eu tinha a certeza que ela ia entrar...
Quanto à internet, falem com o José, da Boa Vista, ou com o Modu, do Senegal, eles estão na recepção do hotel.
Um deles que vai ajudar, de certeza.
O José trouxe-me dois cartões lá da vila, quando o turno mudou, às quatro da tarde.
Fez uma chamada, activou os cartões, carregou-os com 1500 escudos ( 5 gigas), e ligou-me ao mundo.
Por isso é que só agora escrevo. Não tenho tido internet.
O José matou a minha ideia do paraíso.
O José matou-me o vício.
Quando voltar a casa hei-de escrever uma crítica no Trip Advisor.
Vou escrever que a internet funciona, porque é ela que leva e traz a sodade, dentro de um 737, carregado com magotes de gente, que acha que o paraíso existe.
Acho que amanhã volto à vila, a ver se aquela bola ao poste entra na baliza.
Falta-me só festejar um golo com eles, naquele campo, na praia, mais pequena que a minha sala de estar!