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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

03.04.15

A MINHA MÃE NÃO CORRE


The Cat Runner

 

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Sinceramente, quando comecei a correr a minha preocupação prioritária passava por perder a barriga. Já corro há dois anos, já perdi doze quilos e alguma barriga.

Há uma espécie de almofada que teima em ficar, quiçá pensando no meu próprio bem - estar, se bem que antes eu conseguia descansar os braços em cima da barriga e agora já não, mas ela insiste.

Não há aqui qualquer mistério. Não há perda de gordura localizada, portanto, a enorme quantidade de gordura que perdi, que queimei, foi toda ela generalizada. Era fácil agora fazer uma lipo, mas isso era desvirtuar as coisas. Fat Burner´s é outra hipótese, já esteve mais longe, enquanto não tomo tão vital decisão continuo a correr e a ler sobre corrida.

Hoje fui correr de manhã antes de vir para a televisão. Quando saí para correr levava na cabeça uma ideia: já sabes como perder a barriga – os cerca de dois quilos de pneu premium que estão em minha posse e em excesso assumido - talvez se parar com as coca-colas resulte.

A corrida é uma das melhores actividades para queimar gordura.

Uma fogueira também, mas no caso não se aplica.

Correr acelera o metabolismo, fazendo com que a queima de calorias aconteça mais depressa. Não há aqui qualquer ciência nova.

Cada qual faz o seu treino, aposta nas suas técnicas, cumpre os seus objectivos.

Garantido é que não é porque se corre mais rápido ou mais lento, mais quilómetros ou menos quilómetros que se fica elegante, naquele ponto de rebuçado. É a regularidade que conta.

Até porque não é só enquanto se corre que se perdem calorias, acontece durante todo o dia. A vantagem da corrida é que o metabolismo fica acelerado durante mais tempo, após o exercício.

Se deixarmos de lado a gordura de forma geral e apontarmos o foco para a gordura abdominal, sim, a dos pneus, então a história é diferente. Neste caso correr ou caminhar deve estar assente na variação da intensidade do treino.

São os chamados picos que obrigam à queima de gordura nas zonas mais complicadas.

Eu falo pelos cotovelos, tanto quanto corro. Falo mais rápido, corro mais lentamente.

Tentei explicar isto á minha mãe.

Ela tem 62 anos.

Porque começou a gostar de ver o seu gato mais gato, também ela começou a caminhar. Fá-lo todos os dias. Cerca de oito quilómetros por dia. Não deixou de fumar, mas o cigarro dá-lhe um certo charme. Um dia deixará.

Que sim, que percebia, que sim, que um dia deixará de fumar, que sim, que gosta muito de mim e assim. Percebeu tudo.

No fim mandou-me correr.

Antes disso disse-me:

- Estavas a chamar-me gorda?

- Achas mãe?

- Acho bem.

- Claro que não. Gorda não. És apenas a minha almofada preferida.

 

Amo ver o sorriso da minha mãe.

 

 

Um destes dias vou caminhar com a minha mãe e falaremos da sua doença, que a faz perder a visão dia após dia, de outra doença que lhe provoca dores no braço, na mão e da outra que lhe provoca dores no pescoço, falaremos dos patrões que recusaram negociar a sua saída da empresa – que valia uns tostões – porque não tinham condições financeiras – estranho num enorme grupo empresarial, ou nem por isso. Há sádicos prazeres.

Quando caminharmos juntos falaremos da corrida, tenho a certeza e do meu pai que está longe e que chega no mês que vem. Falaremos da vida, enquanto caminhamos. Nunca lhe pedirei para correr. Mas, caminhar a seu lado passou a ser um objectivo. Acho que vou convidá-la para irmos a Fátima. Eu não sou católico particante nem a minha mãe, mas a fé que tenho na vida é nela, na minha mãe, que vou beber essa fé.

Ainda ontem levei-a a lanchar a uma esplanada junto à pista onde corro, junto ao rio. Fim de tarde cheio de sol, cheiro a Primavera, gente que corre, que caminha, o rio. O nosso rio. E, rimos imenso.

Qualquer dia vou caminhar com a minha mãe, está feita a promessa. Sem preocupação com ritmos, médias, calorias.

Vamos meter a conversa em dia.

E, no fim, ensino-a a alongar.

Que se lixe a barriga, a gordura e os pneus.

Gosto à brava da minha mãe. Quase tanto quanto gosto de correr.

(Esta parte é mentira, gosto mais dela que da corrida).

Gosto tanto dela que tenho saudades de nós.

Iremos a pé a Fátima. Quando regressarmos seremos na mesma mãe e filho, mas seremos seguramente duas pessoas melhores. E viremos com um rasgado sorriso da ponta da minha cara à ponta da cara dela.

Eu sei que ela aceitará o desafio.

Tenho fé!


 

03.04.15

A CORRIDA NÃO PÁRA


The Cat Runner

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Coloco as mãos nas maçanetas das duas portas do armário do hall de entrada.

Faz-se silêncio.

Aperto ambas as maçanetas com ambas as mãos antes de abrir as duas portas e encarar aquelas criaturas de frente. Manda quem pode.

Aperto-as com mais força e num quase golpe marcial puxo-as e largo-as deixando abrirem-se livremente. Quase uma cena de filme.

Os seis, ali, olhares espantados, olhos abertos, doze olhos, seis pares de olhos, seis ténis, três pares. Bah!

Lancei-lhes um sorriso rasgado, como que a dizer: tenham tino, boys.

- Tenho estado a ouvir-vos. Gostava que esta conversa terminasse aqui.

Há uma coisa que queria que ficasse bem clara; vocês são importantes para mim, todos, os seis. São vocês que me permitem e permitiram fazer uma das coisas que mais gosto que é correr.

Os cor de laranja iam para abrir a boca. Os amarelos deram-lhe um ligeiro toque com o cotovelo. Os novos eram a noite depois de terem sido o dia. Caladinhos, assustados, via-se nos olhares, como um estagiário em início de carreira. Ninguém abriu a boca.

- Correr é aquilo que nos une. É por isso que escrevo e me dou ao capricho de o fazer sobre vocês.

Meus caros cor de laranja, não me esqueço da vossa coragem, naquela tarde em que chovia e cada passada atascava na lama. O que vocês sofreram quando a lama secou o tecido. O que vocês se divertiram quando vos lavei com a mangueira, lá em baixo no jardim do condomínio. O vosso valor, a vossa lealdade serão para sempre.

Os amarelos já pressentiam que vinha aí uma onda de elogios mas, via-lhes nas linguetas franzidas alguma preocupação, não fosse eu rasgá-los de alto a baixo.

- Meus caros amarelos, lembro-me bem daquela noite de Natal...

- Aniversário, gato.

- Desculpem, aquela noite de aniversário, não foi nada, foi noite de Natal.

- Aniversário, gato.

- Natal. Lembro-me bem dessa noite. Não começámos logo a correr. Em primeiro lugar pelo respeito que os laranjas me/nos mereciam. Em segundo lugar porque vocês eram tão deslumbrantes que não podia cometer tal sacrilégio...

- Nós lembramo-nos, andaste um mês connosco, não foi?

- Um pouco menos. Vivemos momentos fantásticos.

- Bom, já que tiveste que abrir as portas e colocar a conversa no seu devido lugar, deixa-nos aproveitar e pedir-te desculpa. Aquela corrida na praia...

- A culpa não foi vossa. Não lembra a ninguém correr sem meias.

- Mas, o sentimento de culpa acompanhou-nos, até hoje.

- Lembro-me dessa corrida na praia e das últimas que fizemos. A vossa sola já gasta fazia-me sentir todas as pedras pequenas na planta do pé que por acaso é aquela que tem dores, vocês sabem porquê.

- Não fizemos de propósito.

- Eu sei, também por isso tenho uma profunda estima por vocês.

Os ténis novos estavam pálidos. Entraram de peito feito e agora não passavam de um simples par de ténis novos.

- Vocês, vocês são a minha paixão. Eles são o meu amor. Pode amar-se de várias formas, há várias formas de amor, algumas inventam-se. As corridas também são assim.

No dia em que deixarem de correr lembrem-se desta conversa. Não é porque as atenções se viram para vocês que são melhores, por isso. No dia em que deixarem de correr têm que ter corrido mais um quilómetro que os cor de laranja e mais um quilómetro que os amarelos. Nesse dia serão - detesto usar este tipo de tempo verbal - dignos de ficar nesse armário, junto a esses dois fantásticos pares que comigo sofreram, riram, correram, saltaram, tomaram banho de piscina e de praia, apanharam sol, choraram em alguns casos, dignos.

Os novos tinham agora os atacadores completamente desapertados. Quase que lhes faltava o ar. Dava para perceber.

- Por isso, saltem daí. Entrem na mochila, se faz favor, que amanhã temos oito quilómetros para correr.

- Podemos dizer uma coisa?

- Podem.

- Cor de laranja, amarelos, desculpas são pouco. Uma vénia. Vamos embora.

- E vocês portem-se bem. Eles voltam daqui a 1.501 quilómetros, têm ar de quem vai aguentar, de quem vai perceber os valores com que se escreve a tal palavra que dá direito à prateleira dourada; dignidade.
Há muito vento, muita chuva, muito sol, muita areia, muita lama, muita vida para correr.

Fechei as duas portas. Dentro do armário ficaram dezenas de histórias corridas a pé que um dia contarei, outras que fui contando.

Cá fora eu e os novos.

Amarelos, verdes, cinza prata, pretos, tudo muito colorido. Como a vida. Agora é hora de provar. A vida é uma prova constante. Não é para ser vivida a correr. Correr é estar vivo. Coisas diferentes.

As portas estão fechadas. Fez-se silêncio. Finalmente.

Amanhã há mais, porque quando pensas em desistir lembras-te porque começaste.

É por isso que a corrida não pára.