Agora, era fácil dizer que gosto de correr desde sempre - toda a gente sabe que é mentira - ou que o atletismo sempre foi qualquer coisa que me apaixonou desde que me conheço - atletismo é desporto, não é correr, correr é ocuparmo-nos das questões últimas e em última análise é desporto, como o atletismo, é assim que vejo a coisa.
Contra mim falo.
Quando era miúdo a televisão transmitia muitas provas de atletismo, mas aquilo nunca me puxou. Ver uns tipos a fazerem sempre o mesmo era chato.
Parava, quando calhava, para ver as finais dos Jogos Olímpicos e era uma sorte.
É um bocado como ser jornalista. Eu nunca quis ser jornalista. Não era um sonho de pequenino, não era uma meta. Só tomei a decisão de ser técnico instalador de palavras, de correr linhas de escrita, como ofício, já homenzinho. Calhou. Um dia conto essa história.
Aqui chegados, dizer que quem corre também sofre.
Há algo metafísico aqui: sofrer e ter prazer. Sádico? Masoquista? Ambos?
Como será fácil imaginar, tenho, desde há dois anos os músculos das pernas constantemente inflamados, cansados, rijos. Austeros.
Mesmo quem não corre e está a ler este texto percebe com facilidade que quem corre regularmente, com pouco tempo de descanso pelo meio, - ao contrário do que é aconselhado - passe a vida a mergulhar as pernas em água fria, a besuntar os gémeos com loções chinesas ou a fazer alongamentos involuntários sempre que o sub-consciente descobre um degrau imaginário para colocar as pontas dos pés e esticar as pernas. Alongamentos quase imaginários.
Faz parte.
As bolhas que já não existem nos pés, as virilhas assadas em corridas passadas, as quebras de açúcar em agonia, as tonturas, as securas, tudo isso ficou na linha de partida. Lá atrás, já longe.
Mas, cada vez que parto sei que volto e por vezes voltar custa mais que partir.
A meio da viagem arrependo-me, por vezes.
É a meio da viagem que concluo que devia ter visto mais provas de atletismo quando era miúdo. Como não vi e como já não vou para novo, sempre que corro, sempre que o corpo embirra comigo a correr e a cabeça embirra com o corpo que corre, vem-me à memória a única corrida que guardei.
Em cada momento que decido parar vejo Carlos Lopes. Jogos Olímpicos. Los Angeles, Agosto. 1984.
O homem que foi atropelado - involuntariamente - por um comandante da TAP, enquanto treinava, na Segunda Circular, em Lisboa, uma semana antes de ganhar a medalha de ouro na maratona, uma semana antes de bater o recorde olímpico e tornar-se um dos melhores do mundo, da história, de sempre.
É tão simples:
Basta recordar aquela imagem, a entrada no estádio, a camisola branca com buraquinhos, o verde e o vermelho, basta olhar de novo os traços do rosto suado, as pernas torneadas e rígidas, a passada leve mas sofrida e aquele sorriso no final, já nem falo quando todos nos levantámos e cantámos o nosso hino, em todo o mundo!
É tão simples:
Carlos Lopes foi o nosso "mais grande". Eu não sou nada.
Mas penso nele sempre que quero parar, sempre que as pernas se transformam em pesados blocos de cimento.
Cerro os dentes e imagino-me a cortar a meta, em LA, a sorrir como ele, quando coloco a minha própria medalha de ouro ao peito e tiro a foto com a bandeira portuguesa a meu lado. Só para a foto!
É tão simples:
Bate os teus próprios recordes.
Bate os teus medos mais profundos e serás sempre um campeão.
A selfie vem no fim.