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The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

The Cat Run

Uma cena sobre corrida em geral e running em particular e também sobre a vida que passa a correr. Aqui corre-se. Aqui só não se escreve a correr. Este não era um blog sobre gatos. A culpa é da Alice.

14.11.14

FOI UM DIA FELIZ (em letras pequeninas)


The Cat Runner

 


SABADO


 


 


Pela primeira vez na vida celebrei o meu aniversário a correr. À meia noite em ponto. Com um foto e tudo.


Fiz de propósito.


Corri à meia noite e corri antes de terminar o meu dia de aniversário. Quis que fosse especial. Há um motivo para estas duas corridas.


Um jogo tem noventa minutos dividido em duas partes de quarenta e cinco minutos cada.


Cheguei ao intervalo. Recolhi à cabines. Descansei. Retemperei forças. Escutei as minhas indicações para a segunda parte. O jogo vai recomeçar sem que eu tenha ideia de quem está a ganhar ou a perder ao intervalo.


Quero viver até aos noventa anos. Lúcido, feliz, rodeado de afecto. Quero morrer de repente. Que me concedam apenas cinco minutos; para me despedir em condições e para encerrar as minhas contas nas redes sociais, que não gosto cá de rip´s. Apenas isso. Feliz, e de repente, com um pré-aviso de cinco minutos - desde que exista wi-fi.


É chegado aqui que penso na segunda parte da vida.


O que está para vir - uma pessoa em quem confio diz que virão mudanças - como virá, se virá, quando virá, porque virá.


Não estou certo que quarenta e cinco anos tenham sido tempo.


Foram meia-vida apenas. Não foram tempo. O tempo obriga a viagens muitos rápidas.


Viagens que vão desde os carrinhos de rolamentos, aos mergulhos no Tejo, às namoradas, passam pelo Liceu e pelos amigos, e por aquilo tudo que tanto temos vivido juntos, longe uns dos outros, unidos quando a dor nos chama ou a alegria nos convence.


Que raio, metade de uma vida não é tempo. Uns acordes que rasgam linhas escritas com ternura, talvez. Tempo. O que é o tempo?


Terei tempo para ver sonhos? Porque eu sonho. Terei tempo para ver o mundo ideal? Porque eu acredito nesse mundo. Terei tempo para fazer tudo o que não fiz?


E, afinal, o tempo invade-me o espaço, ele que é pouco mais que tempo, invade-me o espaço na ânsia de travar a viagem.


Meia vida.


O ir, sem conseguir voltar. O voltar, com toda a incerteza dentro da mala. A aventura que foi. Tu. Tudo.


E escalar a montanha e chegar ao cume da montanha e ficar no cume da montanha e levantar uma perna e ficar sustentado na outra perna e o vento mais forte e o equilíbrio. Finalmente, o equilíbrio.


Meia vida é uma viagem para trás e para a frente. Tenho outra meia vida pela frente.


As forças. A armadura. A coragem. A determinação. Saber. Conhecer. Viver. Ter vivido. Tudo isso ajuda, mas a segunda parte deste jogo, talvez, não sei, talvez mais desafiante, será por isso mais desgastante. Até que um dia pára. Um dia pára.


Hoje fiz quarenta e cinco anos. Quero viver até aos noventa, já tinha dito.


Não gosto de assinalar datas. Só algumas. Poucas. As que gosto de assinalar tem muito a ver comigo. O meu aniversário tem muito a ver comigo. Auto-assinalo-o, se é que posso escrever assim.


No Natal, no Natal convivo com a família, mas tenho um Natal só meu. Como na corrida. Corro com muita gente, mas a corrida que corro, corro a minha.


Eu não faço a mínima ideia se vou viver mais um segundo, quanto mais quarenta e cinco anos. Não faço eu nem faz ninguém. Meto um almoço?!


Mas sei que vou viver todos os segundos, segundo-a-segundo, até chegar aos noventa, ou antes, se antes for para um lado qualquer.


Este ano não contei as mensagens, nem os comentários, nem os likes, que me foram deixando nas redes sociais.


Foram muitos.


Sou uma pessoa que tem alguma exposição pública, algum reconhecimento profissional e pessoal e, é natural nestes momentos haver sinais mais intensos desse eventual reconhecimento.


Não é relevante a quantidade de coisas que me escreveram. Foram boas, todas, e tocaram-me, todas.


Este meu dia cresceu, sobretudo com curtas mensagens de algumas pessoas, longas mensagens de outras, mensagens de outras que não imaginaria receber, mensagens que me tocaram, um vídeo, uma frase, uma foto.


Cresceu, este meu dia. Sou um tipo de afectos, criticado por ser muito aberto, muito exposto, como se os afectos devam estar selados e isolados do mundo que são os outros.


Se não aponto o dedo a quem assim é feliz, parece-me de mau tom apontarem-me o dedo assim. Mas, ao intervalo da vida, no balneário, o mister foi claro: "aqueles que não te deram os parabéns, que convivem contigo todos os dias, que não te cumprimentam sequer, que olham para ti com arrogância, algum desprezo misturado, frustração, porque não, aqueles que não te conhecem, nem ao teu verdadeiro jogo, aqueles que só te vêem nos treinos e pouco, a esses oferece-lhes um sorriso. Por um lado és tu. Por outro vais fazer com que te detestem ainda mais, o que é óptimo, senão onde vais buscar adrenalina?".


Não contei as mensagens, comentários nem likes, no dia de hoje.


Nem contei aqueles que nem sequer um abraço enviaram. Gostam assim.


Hoje, fixei nomes, quase todos, frases, músicas, imagens. Tenho as frases na cabeça, tipo pop-up´s...


Vocês, um a um, sabem quem são.


Foram vocês que escreveram, que enviaram mensagens, que dedicaram um pouco da vossa atenção.


É para vocês que dedico todo o meu respeito profundo.


Agora que vai começar a segunda parte, há no topo norte, uma tarja que diz, em letras grandes, pretas: " Não é porque tu não gostas de mim que eu não gosto de ti!". Quarenta e cinco intensos, distantes, longos, cheios, apaixonantes, desafiantes, arriscados, loucos, sérios, felizes e tristes anos.


Começou a segunda parte. Já é dia 14.


Nunca ninguém saberá o resultado final.


Logo hoje. Hoje partiu mais um bravo. Tive com ele as maiores divergências. Em momentos fui desagradável, nas suas costas.


Um momento bastou para percebermos quem éramos, na verdade é é isso que falta a quase todo o mundo. Olhar nos olhos. Pedir desculpa. Perdoar. Eu dei esse passo. Era a mim que cabia dar esse passo.


Hoje, partiu o Filipe Mendonça. Ainda bem que não o vi por estar em casa, afinal fiz anos. Partiu um enorme jornalista. Alguém que eu estava a começar a aprender a conhecer, dentro do pouco em que ele me deixava penetrar. Pacientemente.


As feridas curadas.


Nunca, mesmo quando nem sequer nos cumprimentávamos nos corredores, deixei de ver no Filipe um bravo. Um enorme jornalista. Que arrisca na escrita, que ousa, que cheira o detalhe, saboreia o pormenor, brilhante. Às vezes penso em coisas que fiz, que quero fazer.


Por isso gosto do trabalho do Filipe. Estava a aprender a gostar do Filipe e ele foi-se embora. Despediu-se hoje. Asfixiou. Abriu a porta do mundo e saiu. Sem nada, mas com tudo o que tem nas mãos. Tudo.


Não vou conhecer o Filipe. Não vou lamentar a sua decisão.


Apenas não me reconheço.


Não reconheço as caras, as vozes, os olhares, o chão, os cheiros, não reconheço a vida assim.


Há jogadas muito rasteiras, mas há uma segunda vida inteira para jogar.


Hoje fiz quarenta e cinco anos. Quero viver até aos noventa, já tinha dito.


Vou só ali mudar a táctica.


Digamos que a partir de agora é à séria. É que neste jogo não há prolongamento, pelo menos que se saiba.


Se conhecer alguém que tenha voltado para contar, por favor, deixe o seu comentário e contacto.